Esta é minha estreia no Portal Deviante, do qual me tornei fã e muito motivado a apoiar. E, chego apresentando um tema que, em diversas nuances, conflita diretamente com o juramento de formatura de um novo Engenheiro. O tema é a Obsolescência de Produtos, uma abordagem criada pela própria engenharia para tratar diversos interesses e necessidades oriundos da indústria e do mercado.

Tal abordagem contrasta por completo com o juramento de um recém-formado em Engenharia, que diz: “Prometo que, no cumprimento do meu dever de engenheiro, não me deixarei cegar pelo brilho excessivo da tecnologia, jamais me esquecendo de que trabalho para o bem do Homem e não da máquina. Respeitarei a natureza, evitando projetar ou construir equipamentos que destruam ou poluam o equilíbrio ecológico. Colocarei todo o meu conhecimento científico a serviço do conforto e desenvolvimento da Humanidade. Assim sendo estarei em paz comigo e com Deus”.

Pensando friamente, se levado ao pé da letra, sem qualquer interpretação secundária, podemos afirmar que a Engenharia “se vendeu”. O conceito de Obsolescência, tão importante para a indústria não faria sentido algum. Sobretudo a chamada “obsolescência programada”, da qual muitos já ouviram falar.

Em poucas palavras, podemos definir a obsolescência como um atributo (característica) de partes, componentes ou softwares de sistemas que, por diversas razões, não se encontram mais disponíveis no mercado a partir de seu fabricante original. Assim, quando te disserem que seu iPhone 8 ou Galaxy 10 está obsoleto somente porque lançaram um novo, pense bem. Na verdade, no que tange aos produtos atualmente no mercado, principalmente os de apelo de consumo (como celulares, computadores, eletrônicos em geral, etc) a questão é muito mais complexa e perigosa.

Pra começar (é, ainda estamos começando, depois de 4 parágrafos…) imagine que existem diversos tipos de obsolescência. Isso mesmo! Não é somente “está obsoleto e pronto”. Existem quatro tipos de obsolescência: Logística, Tecnológica, Funcional e por Necessidade de Melhorias.

A Obsolescência Logística é aquele caso em que não se pode mais adquirir determinado produto por alguma perda de capacidade de fornecimento por parte do próprio fabricante. Como exemplo, imagine uma empresa fabricante única de determinado componente. De repente, ela vai à falência e toda a “receita de bolo” de como fabricar esse componente desaparece. Neste exato momento, todo mundo que precisava dos componentes deste fabricante para fazer manutenção ou fabricar algum produto próprio passa a sofrer com um item obsoleto (e isso pode destruir uma indústria inteira).

A Obsolescência Funcional é aquela em que determinado produto não perde a capacidade original, mas, como os requisitos do cliente mudaram, ele passa a não servir mais. Exemplo: todas as caixas d’água das casas e prédios dos anos 80/90 eram feitas de amianto. Todo mundo fabricava caixa d’água de amianto. E, de repente, o amianto foi proibido por força de lei. Não se pode mais usar amianto, todas as caixas devem ser de plástico atóxico. Toda a indústria que produzia caixas d’água neste material passou a ter, em seus estoques, um produto que não mais atenderia aos requisitos do mercado. Seus estoques estavam obsoletos.

A Obsolescência Tecnológica é aquela em que produtos mais avançados tecnologicamente são disponibilizados no mercado e os fabricantes deixam de produzir versões anteriores para dar espaço à produção dos novos produtos. A exemplo, podemos citar um produto conhecidíssimo e ainda muito utilizado em modernos sistemas industriais, sistemas de defesa e sistemas espaciais: a CPU Intel Atom. Isso mesmo: AINDA MUITO UTILIZADO, você não leu mal. Essa CPU foi produzida em diversas versões entre os anos de 2008 e 2016 e tinha como principal destino os dispositivos de baixo consumo de bateria ou baixo desempenho (como smartphones, laptops do tipo “netbook”, tablets etc). Mas, por ser um sistema de arquitetura bastante robusta, tinha importantes aplicações também em sistemas militares e aeronáuticos (onde se espera elevada confiabilidade e disponibilidade). E estes sistemas estão em operação até hoje, custam caro e precisam de manutenção. Um desafio…

A Obsolescência por Necessidade de Melhorias é aquela que vem da necessidade dos fabricantes em lançarem novos produtos ou versões de um mesmo produto como forma de melhorá-los e, assim, se manterem competitivos no mercado.

Aí, você deve se perguntar: “Tenho um celular aqui comigo que tem menos de dois anos de uso, tá com uma cara boa ainda… e o fabricante já avisou que eu não vou ter atualização de sistema operacional. Ele ficou obsoleto?”. A resposta é: depende.

“Depende” é sempre uma resposta irritante, mas na maioria das vezes é uma excelente resposta pra quase tudo.

Se o seu celular ficou obsoleto, espera-se poder demonstrar esse fato enquadrando o caso em ao menos um dos quatro tipos de obsolescência. Vamos tentar:

Obsolescência Logística? Não. O fornecedor não perdeu a capacidade de fabricar ou prestar suporte. Ele optou, por uma questão de mercado (te forçar a comprar um novo modelo), não mais oferecer suporte. Mas ele poderia? Talvez… difícil responder, isso depende de muitos fatores, inclusive o econômico.

Obsolescência Funcional? Não parece ser o caso… em hipótese, o produto ainda lhe atende. Ele tem as funções que, ao menos até você ser comunicado de que não vai receber a atualização do sistema operacional, desempenhavam seus objetivos sem problema algum.

Obsolescência Tecnológica? Talvez não… muitas vezes o novo produto só tem uma diferença estética e três câmeras em vez de duas. E as fotos nem melhoraram tanto. Na verdade, você mais usa a câmera de selfie e ela não muda a duas gerações do produto. Nada que represente um grande impacto tecnológico.

Obsolescência por Necessidade de Melhoria? Bem, essa talvez sim. Talvez. E isso, muitas vezes, não vem por uma demanda do cliente, mas do fabricante em consertar ou melhorar algo que ele poderia ter feito na versão anterior mas preferiu correr, não perder o “time to Market” e decidiu corrigir depois. Mas ainda assim, isso não faz do item anterior obsoleto.

Então, por três votos a um, podemos dizer que, no caso do seu telefone de duas gerações atrás, ele ficou obsoletos não porque ele “deixou de servir para você”, mas porque o fabricante definiu um caminho, baseado no que ele julga como sendo a melhor estratégia para perpetuar o negócio (business, não thing). E, se você é alguém ligado em novidades tecnológicas, já deve ter ouvido falar na expressão “obsolescência programada”.

Essa expressão traz um falso entendimento pra quem a ouve. Muitas vezes as pessoas acham que determinado produto parou de funcionar porque o fabricante fez o produto “para quebrar”. E, muito frequentemente, quando seu produto deixa de funcionar, já existe outro no mercado, mais moderno, mais novo… aí você pensa: “Foi de propósito. É pra eu comprar um novo! Isso foi programado!” Bem, novamente, sim e não.

Em engenharia de produto, algumas coisas podem ser de fato feitas para ter determinada “validade”, mas, normalmente, essa validade é mínima (“vai viver pelo menos X tempo”) e não máxima (“vai viver no máximo X”).

Como exemplo, podemos citar as peças mecânicas. Algumas peças em sistemas mecânicos trabalham sob elevada temperatura, ou em condição de desgaste por atrito, ou sob cargas variáveis… ou tudo ao mesmo tempo. Esses componentes devem ser capazes de trabalhar por um tempo mínimo (ditado pelos requisitos), fixado no momento do projeto por ações tomadas para seu dimensionamento.

Componentes eletrônicos, por sua vez, são um pouco diferentes. Eles têm uma curva de vida conhecida como “curva da banheira” (Figuras 1 e 2). Ela diz que a chance de um componente falhar diminui com o passar do tempo a partir do início do uso. A partir de então, a probabilidade de ocorrência de alguma falha permanece constante (vida operacional normal) e, em determinado momento, ele apresenta algum aumento na taxa de falha. A partir desse momento, as chances de ocorrerem falhas que inutilizem por completo o componente aumentam, até que ele deixe de funcionar.

Figura 1: Curva da Banheira – Qualquer semelhança não é mera coincidência

Figura 2: Faz total sentido empírico 😊

Em ambos os casos, para o componente mecânico e para o eletrônico, contudo, podemos assegurar, por projeto e com base em testes (quando executados segundo norma e corretamente), que determinado produto tem uma “vida mínima de X ciclos/horas/etc”.

Mas, o que o fabricante faz por você quando o produto falha (ou o que ele NÃO FAZ POR VOCÊ), isso sim, é a verdadeira Obsolescência Programada. O fabricante decide, por questões de mercado, não lhe dar mais suporte, ou mesmo cobrar um preço artificialmente impeditivo para realizar o reparo do item, estimulando sua decisão por adquirir um outro (e agora, dificilmente será na versão anterior, mas uma ou duas à frente da que você tinha). E assim, faz girar e proteger seu fluxo de vendas.

A Obsolescência Programada é um tipo corrompido de Obsolescência por Necessidade de Melhoria.

Onde isso tudo vai de encontro ao que o engenheiro jurou fazer? Bem, leia novamente o juramento e pensemos juntos. Nesta cadeia de decisões estratégicas em obsoletar um item que poderia ser mantido em vida:

  • Houve favorecimento ao apelo pela tecnologia?
  • Houve respeito aos recursos do cliente?
  • Houve desperdício de material?
  • O material produzido pode destruir o meio ambiente à nossa volta?

Vale a pena refletirmos.

O apelo pela tecnologia é uma importante alavanca para o sucesso de um produto no mercado. Inconscientemente, para muitas pessoas, o simples fato de alguma coisa ser mais moderna cria a imagem de que é melhor em relação à versão anterior. A esta sensação, vem junto o sentimento primitivo de se destacar em “relação ao bando”, traduzido no interesse por possuir o produto mais moderno (esse ponto é um prato cheio pra biólogos, antropólogos e diversos especialistas em evolução do pensamento humano, totalmente fora do escopo desse texto). Isto tudo é um processo mental, portanto não é concreto. O fato do apelo pela tecnologia existir, não significa que seja algo real. É tudo coisa da sua cabeça :P

Quanto ao respeito pelos recursos do cliente, entenda como “respeito por sua vida”. Em uma sociedade pautada pelas relações comerciais, trocamos produtos que temos por dinheiro para, depois, converter este dinheiro em produtos que queremos e precisamos. O principal produto que trocamos, atualmente, é a força de trabalho. De todos os produtos em negociação, é o mais vendido diariamente, a todo tempo, no mundo todo. Essa força de trabalho é o nosso produto, que tem por matéria prima o tempo de nossas vidas. Toda vez que entregamos tempo de nossas vidas, recebemos dinheiro por ele e, toda vez que sentimos que “temos de comprar um novo produto, mais moderno, mesmo que não precisemos verdadeiramente”, estamos trocando tempo de nossas vidas por aquele produto. Um caminho comumente utilizado pelas indústrias para estimular o consumo de seus produtos é fazer o cliente ter a percepção de que precisa adquirir uma versão mais moderna para substituir o produto que acabamos de obsoletar artificialmente.

Se houve desperdício de material, essa resposta é simples: sim. A pergunta difícil de se responder é: quanto material foi desperdiçado? E para esta resposta, necessita-se realizar o mapeamento do ciclo de vida do produto. Em engenharia, define-se como ciclo de vida do produto o intervalo de tempo entre o momento em que se cria o projeto para desenvolver um novo produto e o momento em que o item é retirado do mercado. Mas é bem mais que isso e esta discussão é ENORME (de verdade! Os livros sobre Ciclo de Vida de Produtos têm sua massa medida em quilogramas!). Resumidamente falando, podemos apontar como principais fontes de desperdício: os materiais empregados na produção do item obsoletado, os custos incorridos em sua produção, os custos para colocar o produto antigo no mercado (quando ele era novo) e os custos para retirá-lo de circulação. Agora, imagine o mesmo fluxo de custos para cada nova versão de produto obsoleto.

Enfim, temos o custo ambiental, advindo do impacto da transformação de recursos naturais em produto acabado, além do impacto oriundo do nosso recorrente fracasso em retornar à natureza os materiais que retiramos dela e os que inventamos para conseguir resultados que não conseguiríamos com materiais disponíveis naturalmente.

Por todas estas razões, devemos entender que a Obsolescência Programada foi mal batizada e deveria se chamar Obsolescência de Percepção.  Dentre todas elas, é a única que o cliente consegue contornar com uma mudança de comportamento ou de opinião, aumentando a demanda pela manutenção de vida operacional do produto que já detém, deixando claro seu interesse pelo produto no qual já investiu.


Renato Caldas Vasconcellos de Almeida. Engenheiro Mecânico pela UFRJ, Mestre em Engenharia pelo ITA, entusiasta de Projeto de Produto, novas tecnologias, rock, samba, bicicleta e fotografia. Não sei o que seria de mim se não fosse a minha família. Sou a prova viva de que pesadelos com matérias escabrosas da faculdade são pra sempre.

Twitter: @renatocaldas