Eu lembro que, quando eu resolvia as equações mais terríveis do ensino médio, eu odiava quando o resultado era zero. Simples assim, 0. Eu ficava muito brava. Afinal de contas, eu tinha tido aquele trabalho todo para dar ZERO? Um número tão insignificante, que representa a falta de tudo. Não é nem positivo nem negativo. Representa um conjunto vazio que nem a si mesmo pertence. Existe até uma ofensa em sua homenagem: “você é um zero à esquerda!”. Mas acredite, esse símbolo redondo inventado para representar o nada tem um enorme efeito no que você faz todos os dias – e o pior é que você nem se dá conta.

Uma breve história do zero

Os babilônios foram os primeiros a inventar o zero para ocupar um espaço necessário na álgebra, mas essa invenção foi renegada por Pitágoras, Aristóteles e seus contemporâneos – que acreditavam que Deus era infinito e que o zero não era “compatível” com essa noção de mundo. Os gregos não viam necessidade de um algarismo que significasse nada, já que a matemática deles era vinculada à geometria. O zero chega às Índias pelas mãos de Alexandre, o Grande, onde a álgebra era uma esfera separada da geometria, e por isso o algarismo 0 era de grande valia. Acelere a história alguns séculos e chegamos a um mundo onde eu só posso escrever (e você só consegue ler) devido a uma combinação infinita de zeros (e uns).

O zero e as suas compras

Você pode estar pensando que eu vou falar dos zeros na conta bancária (seja para te deixar rico ou pobre), mas vou mostrar resultados surpreendentes do comportamento humano quando o zero representa “grátis”. A teoria tradicional da economia considera o $0 como qualquer outro preço e entende que as decisões de consumo das pessoas são baseadas em escolhas de custo/benefício. Mas diversos pesquisadores, entre eles Dan Ariely, Nina Mazar e Kristina Shaman’er (2007) fizeram experimentos demonstrando que o preço $0 tem um poder de atração que, na realidade, desequilibra a demanda por um produto.

Dentre os experimentos de Ariely e Shaman’er há um envolvendo chocolates: eles montaram uma tenda onde vendiam Hershey’s Kisses e trufas Lindt e cada aluno poderia comprar apenas um chocolate. Na primeira fase, o chocolate Hershey custava $0,02 e o Lindt $0,15. Na segunda, ambos os preços foram reduzidos em $0,01 – o Hershey’s passou para $0,01 e o Lindt para $0,14 – e finalmente os preços foram descontados mais uma vez em $0,01, sendo que o Hershey’s agora era grátis e a trufa Lindt $0,13.

Segundo a teoria tradicional, a demanda deveria se manter estável nos três cenários já que a relação de custo/benefício não foi alterada quando ambos os produtos foram descontados na mesma proporção. Mas o que Ariely e Shaman’er descobriram é que, quando o Hershey’s Kiss ficou grátis, sua demanda deu um enorme salto (de 21% quando custava $0,01 para 71% quando era grátis). Os resultados corroboram a ideia do chamado modelo de preço zero: ao se tornar grátis, o produto não só tem seu custo reduzido, mas também ganha benefícios aos olhos do consumidor.

Segundo Ariely e Shaman’er, isso pode ser explicado pela heurística da afetividade, que acontece quando deixamos nossas percepções positivas ou negativas sobre determinada questão afetar nosso processo decisório, ignorando o custo de oportunidade daquela escolha. Como existe uma certa afetividade “social” sobre o zero, a escolha do grátis é mais óbvia e fácil, afinal, mesmo que a decisão se mostre equivocada, você não pagou nada por ela.

E essas descobertas da economia comportamental podem ter um enorme impacto nas nossas vidas como consumidores: promoções de “compre um, ganhe outro grátis” tendem a ter um enorme apelo psicológico. E se o efeito zero for tão forte em outras circunstâncias, ele pode nos influenciar a comprar produtos zero açúcar, zero gordura, zero sódio…

Porém, Ariely chama a atenção que nem sempre o “grátis” é a melhor escolha. O preço zero parece ser bem mais valioso do que realmente é no momento da decisão, no afã do momento, mas, quando racionalizamos as opções, podemos chegar à conclusão de que não é bem assim. Repetindo o experimento dos chocolates, os pesquisadores substituíram os doces por gift cards da Amazon – com valores de $10 e de $20. No primeiro cenário, os participantes poderiam escolher entre comprar o cartão de $10 por $3 ou o de $20 por $10. Para outro grupo a opção era receber o cartão de $10 de graça e ou comprar o de $20 por $7. Se olharmos a matemática das opções, o ganho financeiro é sempre maior no cartão de $20 ($7 contra $10 no primeiro caso – e $10 contra $13 no segundo) e a diferença entre os preços se mantém constante em $7. Mas, assim como no chocolate, os participantes preferiram muito mais cartões de $10 grátis do que ganhar $3 a mais ao optar pelo cartão mais caro. Logo, quem saiu de lá com algo “grátis” se deu pior do que quem desembolsou algum dinheiro.

Quer outra prova de quanto somos atraídos pelo grátis? Quanto tempo você já gastou em filas para ganhar algo “grátis”? Quem nunca pegou um bloquinho/ lápis/ caderno/ copo grátis num evento só para jogar fora no dia seguinte que atire a primeira caneta com logo de empresa!

O zero como influenciador social

Uma outra explicação da economia comportamental mostra que as pessoas funcionam segundo dois sistemas de normas: social e de mercado. Por exemplo, você é convidado para um jantar e não sabe o que dar a seu anfitrião como agradecimento. Se ao final o jantar você oferece $50 para ajudar nas despesas, provavelmente será visto com insensível e grosseiro e pode nunca mais ser convidado. Mas, se você comprar uma garrafa de vinho no mesmo valor e presenteá-la ao dono da casa, será visto como um excelente convidado! Isso tudo mesmo que todos saíssem ganhando com a troca direta dos $50 – você não teria trabalho de ir comprar o vinho e o anfitrião poderia gastar com algo que o agrade mais que o vinho. Esse é um exemplo em que as normas sociais se sobressaem – o presente e o gesto valem mais do que seu preço monetário.

Agora, quando pensamos em um trabalho ou tarefa paga, normalmente pensamos em termos financeiros: quanto estou recebendo pelo tempo que estou dedicando a isso? Nesses casos, pessoas com remunerações maiores tendem a se dedicar mais a tarefas por perceberem que “estão recebendo para isso”. Mas, então, como explicar que pessoas que não recebem nenhuma recompensa têm resultados melhores do que aqueles que recebem recompensas pequenas? Neste caso, o “zero” leva as pessoas a pensarem segundo as normas sociais: “se eu aceitei fazer isso de graça, estou ajudando, voluntariando meu tempo e sou recompensado de outras formas socialmente aceitas” (retribuição, por exemplo). Mas, se dinheiro entra na jogada como forma de pagamento, as normas de mercado entram em campo e você começa a fazer as coisas de mal humor, sem vontade e questionando por que aceitou receber tão pouco por aquele trabalho.

Nesses meus exemplos, a compensação “zero” leva não só a uma produção maior por parte das pessoas, mas também a uma maior sensação de realização pessoal. Isso é completamente estranho se pensarmos que nos sentimos melhor fazendo (algumas) coisas de graça do que recebendo qualquer valor monetário em troca. Mas é importante lembrar que o mundo não é feito de seres perfeitamente racionais, e sim de pessoas, como eu e você, que têm dimensões muito além as econômicas.

O zero na hora de salvar vidas

Pensando no efeito do zero no processo de decisão das pessoas, Zhang e Slovic (2019) decidiram estudar como o zero influenciava a capacidade das pessoas analisarem estatísticas que envolvam salvar vidas humanas. Para este estudo, foi organizado um experimento em que as pessoas tinham que analisar o seguinte cenário: “Dez pessoas ficaram feridas em um acidente e você tem duas opções de salvamento: A) 50% de chance de que 4 pessoas morram e 50% de chance que 3 pessoas morram; ou B) 50% de chance que 5 pessoas morram e 50% de chance que 2 pessoas morram”. Para analisar o comportamento humano nessa situação, os pesquisadores mantiveram a opção A inalterada em todos os cenários, e trocaram a opção B de diversas formas, como abaixo:

Opção B1: 50% de chance de que 5 pessoas morram e 50% de chance de que 2 pessoas morram.

Opção B2: 50% de chance de que 6 pessoas morram e 50% de chance de que 1 pessoa morra.

Opção B3: 50% de chance de que 7 pessoas morram e 50% de chance que ninguém morra.

Opção B4: 50% de chance de que 8 pessoas morram e 50% de chance que ninguém morra.

Opção B5: 50% de chance de que 9 pessoas morram e 50% de chance que ninguém morra.

Opção B6: 50% de chance de que 10 pessoas morram e 50% de chance que ninguém morra.

Nas formas 1 e 2, ambas as opções tinham as mesmas expectativas matemáticas de mortes, isto é, elas tinham resultados esperados idênticos (3,5). Na forma 3, o resultado esperado também era 3,5, mas a opção B contava com o zero – objeto da observação. Nas condições 4, 5 e 6, foi incluída a opção de 50% de chance de que ninguém morreria, mas o resultado esperado de mortes era sempre mais alto que a opção A. Pessoas perfeitamente racionais sempre escolhem a opção que minimiza o resultado esperado de mortes, mas será que o fato de haver a possibilidade de 0 mortes afetaria a escolhas as pessoas? Sim, nos casos 3, 4 e 5 as pessoas preferiram a opção sem mortes em 67%, 71% e 58% respectivamente, demonstrando que a possibilidade de não matar ninguém influenciou suas decisões, mesmo quando poderiam acabar matando mais pessoas como consequência.

Outro estudo de Zhang e Slavic mostrou que não é só o zero que influencia a decisão de salvar vidas, mas a forma como ela é colocada no problema também tem enorme impacto sobre os tomadores de decisão. Quando confrontados com a possibilidade de adotar um sistema de segurança para aeroportos que poderia salvar até 150 vidas em caso de acidente, os resultados foram muito diferentes dependendo da redação do problema. Aqueles que viram a possibilidade de salvar 100% das vidas não tiveram reação muito maior do que aqueles que poderiam salvar 98% dos passageiros, mas, curiosamente, o salvar 98% teve apoio consideravelmente maior do que salvar 150 passageiros. Mas como? A alta porcentagem de 98% tem mais apelo emocional quando se trata de salvar vidas do que o número absoluto de 150 – mesmo quando está claro que 150 significa 100% no caso em questão.

Quando as pessoas viam possibilidades de perder 0% ou nenhum passageiro, elas a escolhiam com muito mais frequência do que a chance de perder 2% das pessoas. Se pararmos para pensar, perder 0% é igual a salvar 100% e perder 2% é igual a salvar 98% – quando a palavra salvar foi colocada, 100% e 98% tiveram resultados parecidos, mas quando falamos de perda, os 2% tiveram um resultado consideravelmente pior! Estaríamos todos loucos?

Não, este é o feito do framing (a forma como as opções são apresentadas) sobre perdas e ganhos. As pessoas são naturalmente mais sensíveis às perdas. A chance de salvar 98% parece bem interessante por estar bem próximo dos 100%, mas, como já discutimos aqui, o zero tem um valor muito forte em si mesmo, e os 2% de perda são vistos com muito mais peso do que realmente o tem. É mais uma vez a afetividade entrando em jogo: salvar 98% parece um resultado muito bom emocionalmente, melhor do que perder 2%.

E qual é a conclusão?

Para um número que sozinho significa literalmente nada, o zero tem uma influência muito forte sobre nosso poder de decisão. Quando as promoções usam o termo “grátis”, os especialistas em marketing estão ativando nossa sensibilidade e afetividade ao zero e isso pode ter consequências mais sérias do que aquelas roupas acumuladas no fundo armário. Quando usado em situações de vida ou morte, a forma como o zero é apresentado no problema pode ter grande influência na decisão final. E nem o mais racional dos economistas está imune: Dan Ariely (o pesquisador dos chocolates) comprou um carro mais caro e menos interessante ao seu estilo de vida porque ganhou troca de óleo grátis por 3 anos.

 

Fontes:

Zhang Y, Slovic P. Much ado about nothing: The zero effect in life‐saving decisions. Journal of Behavioural Decision Making. 2019;32:30–37. Disponível em: https://doi.org/10.1002/bdm.2089
Shampanier, K., Mazar, N., & Ariely, D. (2007). Zero as a special price: The true value of free products. Marketing Science, 26, 742–757. Disponível em: https://doi.org/10.1287/mksc.1060.0254
Ariely, Dan. Predictably Irrational: The Hidden Forces That Shape Our Decisions. New York: Harper Perennial, 2010. (livro)