O termo deficiência física é estigmatizante, no dicionário da língua portuguesa significa falta ou perda de algo que irá invariavelmente levar ao prejuízo da “eficiência” físico-motora de um indivíduo. Porém o termo acima traduz o sentimento de impotência pelo menos inicial de todos que infelizmente passam por um processo de perda, deformidade ou paralisia de um ou mais membros, ou de todo o corpo. Muito tem sido feito pela reintegração social destas pessoas, de modo que mesmo com a limitação física, consigam todos ser autossuficientes em suas atividades e necessidades da melhor maneira possível. Isso é o que a política social pode fazer por esses cidadãos. E a ciência? O que a nossa mais poderosa ferramenta de ir além de qualquer limite dito natural anda fazendo nesta área? Neste texto discutiremos como a ciência pretende substituir o deficiente físico pelo homem biônico.

A primeira questão é como conectar o homem à máquina. Atualmente a maneira mais usada é a interpretação dos sinais mioelétricos do coto amputado. Você, leitor, ao pensar em fechar a mão ou até mesmo ao andar sem se atentar muito aos seus passos, está disparando vários sinais elétricos dos nervos para os músculos. Esses são os sinais mioelétricos. Eles seguem vários padrões que podem ser decodificados.

Já há alguns anos os cientistas estão aprendendo a traduzir estes padrões para a linguagem digital. Isso impactou na forma como esses pacientes são operados, tendo sido desenvolvidas técnicas cirúrgicas inovadoras no século XXI para que os sinais nervosos de um membro amputado não sejam perdidos. Desde 2002 cirurgiões habilidosos conseguem reimplantar os nervos do coto amputado em grupos musculares remanescentes, de forma que esses nervos reintegrados ao músculo têm seus sinais elétricos não só preservados, mas também amplificados. Isso facilita a leitura e interpretação desses padrões pelas próteses modernas, além de permitir uma variedade maior de sinais disparados dependendo do grupo muscular ativado, o que permite uma maior variedade de movimentos executados pela prótese.

Vale ressaltar que esse reimplante não só ocorre em relação aos feixes nervosos motores, mas também com os feixes sensitivos. Porém, para que o paciente tenha sensibilidade através da prótese, é necessário transmitir informações no sentido inverso, da prótese para os feixes nervosos. E isso tem limitado o avanço conseguido com a preservação destes terminais sensórios, já que, para que se iguale ao membro natural, é necessária uma transmissão nervo a nervo. Estamos falando de milhares de feixes nervosos que dão diferentes tipos de respostas sensoriais e em diferentes graduações.

Atualmente só conseguimos transmitir um sinal a feixes nervosos agrupados e separados em algumas dezenas. Gerando uma resposta grosseira, sem a diferenciação e a graduação da sensibilidade natural. Em uma analogia com resolução de telas eletrônicas, é como se o sistema sensório natural fosse em 4K e o nosso sistema sensório artificial atual fosse VGA. Outra limitação na interação homem-máquina ocorre ao lidarmos com pacientes com paralisias por interrupção da comunicação do sistema nervoso central e periférico. Tetra ou paraplégicos na sua maioria não possuem sinais mioelétricos voluntários nos membros, mesmo íntegros, com padrões adequados para serem utilizados em comandos para próteses, o que tem levado os pesquisadores a desbravar uma interface direto no cérebro, na sua área motora, com resultados promissores. Porém, apesar da ótima qualidade da leitura e transmissão de comandos através de sensores implantados diretamente no córtex cerebral, o sistema nervoso é mais sensível que o músculo a corpos estranhos, e rapidamente rejeita os implantes. O sistema imune literalmente isola os eletrodos em cápsulas de fibrose fazendo com que se perca a leitura em poucos meses ou anos. Atualmente isso requer uma troca e reimplante de sensores novos, algo que é arriscado e complexo já que envolve uma cirurgia no cérebro.

Cirurgia para reimplante de nervos.
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Formas de implantar sensores
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Os sensores responsáveis pela interface tanto motora quanto sensorial são atualmente feitos de material 100% inorgânico. Devido a isso a maioria dos atuais modelos comercializados são posicionados na pele sobre o coto. O que diminui as chances de rejeição pelo sistema imune. Principalmente as implantadas no sistema nervoso periférico ou central que têm uma durabilidade atualmente bem limitada. Porém a captação e transmissão de informações é significativamente inferior aos implantáveis, seja os que são implantados no músculo, quanto os implantados diretamente nos nervos ou no cérebro. Assim estão em desenvolvimento sensores de materiais mistos que são modelados em impressoras 3D. Estes são compostos de materiais condutores inorgânicos em uma matriz estrutural orgânica com proteínas ou células do próprio pacientes com o objetivo de diminuir as taxas de rejeição.

Sobre as próteses em si, já possuímos uma tecnologia digna dos livros e filmes de ficção científica. O primeiro grande avanço foram nos materiais e no advento do design e impressão 3D.

Scanner 3D do membro amputado
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Impressora 3D
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Comecemos pelos sockets, que são o encaixe da prótese com o coto amputado. Feitos com polímero e ligas metálicas especiais, com designs desenvolvidos digitalmente a partir de simulações virtuais após scanner 3D do membro amputado, hoje é possível fabricar sockets extremamente personalizados, que acompanham mínimas variações diárias do tamanho do coto e, portanto, muito mais confortáveis e seguros no encaixe com o membro amputado. Apesar disso, assim como os sensores, os pesquisadores buscam uma integração maior ainda entre o socket e o paciente. A meta é conseguir isso através de implante do socket intraósseo. Um socket intraósseo permite que a prótese tenha mais estabilidade, que o coto amputado suporte mais carga e que o paciente tenha uma propriocepção grosseira da prótese através do osso. Fora que um socket fixo implantado permitiria algo como uma “porta usb” para próteses de diferentes funcionalidades, facilitando a especialização e a troca das mesmas ao longo de um dia comum.

Esses implantes intraósseos já são feitos com materiais altamente biocompatíveis que permitem que o osso inclusive cresça através dos poros do material, sendo totalmente integrados com baixíssima taxa de rejeição. Porém, por se tratar de um implante que rompe a defesa natural da pele, servindo como uma ponte direta entre o osso e o ar ambiente, possui taxas de infecção de até 30% dos pacientes. O que ainda impede a sua ampla utilização. Mas avanços incríveis têm sido feitos com a vedação dessa ruptura permanente na pele com elastômeros que, por sua vez, serviriam como uma “cicatriz” ao redor do implante, não permitindo que bactérias do ar usem o material como ponte para chegar até o interior do corpo.

Tipos de sockets modernos.
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Para além dos sockets, o avanço nos materiais e na impressão 3D hoje permite que as próteses tenham qualquer formato e cor. Trazendo resistência, capacidade mecânica e estética que contribuem muito para a autoestima dos pacientes, principalmente crianças. Uma empresa britânica chamada Open Bionics, costuma fabricar suas próteses em homenagem a cultura pop, tendo próteses que emulam desde os braços do Homem de Ferro até os da Alita “anjo de combate”.

Homem de ferro da vida real
fonte: https://openbionics.com/hero-arm/

Quanto a funcionalidade, já possuímos o “Luke Arm” uma prótese que, assim como a do herói de Star Wars, possui todos os movimentos possíveis de um braço orgânico. A liberdade de projetar em qualquer formato permitiu a fabricação de próteses especificas para cada atividade esportiva como as incríveis próteses em arco para corrida que possuem aproveitamento da energia cinética até superior ao de uma perna orgânica.

Prótese de corrida
fonte: https://www.ossur.com.br/solucoes-proteticas/produtos/sport-solutions/cheetah-xtend

 

“Luke arm”
fonte:http://www.mobiusbionics.com/luke-arm/

Apesar de uma prótese ser mecanicamente similar a um membro orgânico, ainda precisa interpretar os comandos do usuário para desempenhar suas funções. Nesse aspecto tivemos outro grande avanço na confecção das próteses com a redução do tamanho dos microchips, associados ao estupendo avanço de software envolvendo machine learning e inteligência artificial (A.I.). Isso promoveu o surgimento de próteses “inteligentes”. Estas utilizam de algoritmos de aprendizado para se adaptar ao usuário ao mesmo tempo que este se adapta a ela. Para próteses de membros superiores estamos falando de pacientes que conseguem realizar atividades cotidianas como segurar um talher ou digitar em um celular com apenas alguns dias ou até horas de treino. Tudo porque a prótese analisa, interpreta e memoriza, utilizando de A.I., os padrões de ativação mioeletricos únicos do paciente, além da forma de segurar e manipular determinados objetos e realizar determinadas atividades.

Para as próteses de membros inferiores estamos falando de membros artificiais que tentam reproduzir a autonomia da passada natural. Elas executam todo o movimento praticamente sozinhas, apenas iniciando a passada a partir do comando do usuário. Conseguem modular o ritmo, a força e a altura da passada, inclusive para subir escadas e ultrapassar obstáculos. Dessa maneira conseguem ser confortáveis, economizar energia do paciente, e não sobrecarregar as articulações do membro contralateral. Além de não dependerem de excessivas horas de treinamento por sua autonomia inteligente.

Prótese de membro inferior “inteligente”
fonte: https://www.ingenia.org.uk/Ingenia/Articles/ac3f5f77-0023-4416-9d10-ea1ffaf712bc

Com próteses tão avançadas já possuímos então membros artificiais tão eficientes quantos os naturais? Depende. Para a maioria das atividades cotidianas e para algumas atividades desportivas sim. Porém para atividades que requerem movimentos finos, como descascar um ovo de codorna, ainda temos uma limitação a vencer: a sensibilidade. Sem as nossas variadas formas de sensibilidade presentes na pele é extremamente difícil regular movimentos milimétricos e precisos como o da mão orgânica.

Já adiantei a principal dificuldade em se reproduzir o sensório natural ao falar sobre a interface prótese-paciente. Porém as próteses também ainda não possuem tecnologia suficiente para reproduzir a variedade e a riqueza de graduação dos sensores naturais da pele, principalmente os ligados a dor, mas já possuem formas de captar variações de pressão, variações térmicas e atrito de forma grosseira. São capazes de transferir informação como pequenos choques elétricos ou pequenas sensações vibratórias através das interfaces disponíveis, estejam elas conectadas ao sistema nervoso periférico ou central. Também já temos projetos de câmeras instaladas nas próteses que serviriam como um sentido adicional não existente no orgânico. Permitindo que o membro artificial identifique objetos ou obstáculos e, a partir de algoritmos inteligentes utilize aprendizados prévios para manipular ou caminhar muito próximo do membro orgânico.

Pela tecnologia que já temos hoje o conceito de deficiência física já merecia ser repensado. Talvez até trocado por um termo mais contemporâneo que contemple a eficiência que ganhou-se com as novas próteses (aguardo sugestões nos comentários). O futuro homem biônico ainda será visto nesta geração. Porém como toda tecnologia médica de ponta, todos os exemplos já em situação comercial aqui citados são de altíssimo custo, restritos a pacientes privilegiados de países desenvolvidos. O que não podemos permitir é que no futuro coexistam o homem biônico, aquele capaz de pagar por sua plenitude física, e o deficiente físico, pobre, excluído de toda superação de limites e barreiras que tornam a ciência e a medicina tão fascinantes.

 

REFERÊNCIAS:

1-https://www.medicaldevice-network.com/features/future-prosthetics/

2-https://www.theengineer.co.uk/future-prosthetic/

3-Ngan, C.G.; Kapsa, R.M.; Choong, P.F. Strategies for neural control of prosthetic limbs: from electrode interfacing to 3D printing. Materials 201912, 1927.

4-https://doi.org/10.1016/j.pmr.2018.12.013

5-https://doi.org/10.1111/aor.13422