Nessa semana estamos fazendo um grande contrafactual textual: e se o ser humano inventasse a viagem no tempo? Bom, teríamos vários problemas pra lidar. Os filmes mostram alguns, mas as mudanças seriam tantas que nem dá pra imaginar todo o pepino que existira pra resolver.

Um ponto pra se resolver seria qual direito aplicar em casos que envolvessem pessoas de tempos diferentes. Vamos pensar dois casos nesse texto:

(1) se uma pessoa do ano 2059 fosse no ano 2033 e matasse uma pessoa do ano de 2027?

(2) se uma pessoa de 2099 fosse até 1998 para fazer um contrato com uma pessoa de 2143 para adquirir, a partir de 2031, a parte de uma empresa fundada em 2025 em troca de um pagamento a ser realizado em 2101?

Pra ter uma base pra responder essas pergunta vamos usar dois conceitos que já existem: o direito no tempo, obviamente, e o direito no espaço.

Direito no tempo

O direito no tempo vem pra resolver o problema de situações jurídicas (contratos, crimes) que atravessem uma mudança de lei. Vamos ver como isso funciona no Direito Processual, no Direito Civil e no Direito Penal.

Direito processual no tempo

O direito processual é aquele ramo do direito que rege os processos judiciais. Abrange leis que falam como se entra com uma ação, o prazo para apresentar a defesa, os requisitos para recorrer de uma decisão e assim por diante.

A controvérsia da vigência do Código de Processo Civil

Em 2016 tivemos uma controvérsia bizarra envolvendo o direito processual no tempo. Tudo aconteceu a partir da publicação do novo Código de Processo Civil (CPC) em 17 de março de 2015. O artigo 1.045 do código diz que ele entraria em vigor, ou seja, só começaria a valer após 1 ano da data de sua publicação. Esse prazo é pra dar tempo de as pessoas estudarem a nova lei e aplicá-la corretamente.

Não convém entrar nos detalhes técnicos dos argumentos (podem ler sobre eles aqui), mas surgiram três correntes principais sobre quando seria essa data de vigência, dia 16, 17 ou 18 de março de 2021. Acabou vencendo o dia 18.

Por que toda essa discussão de colocar 1 dia a mais ou a menos é tão relevante e deixou os processualistas em polvorosa? Bom, pra maioria dos casos, 1 dia a mais ou a menos não traria tantos problemas, mas a depender de uma lei ou outra sendo aplicada aos atos a serem praticados nesses dias poderia significar a exigência ou não de uma forma ou mesmo um prazo maior ou menor.

As regras sobre o direito processual no tempo

Isso acontece porque o direito no tempo tem duas regras básicas: a lei não retroage (não se aplica para os atos do passado) e a lei se aplica imediatamente (vale pra todos os atos do futuro). O problema maior é entender os prazos que começaram na lei antiga mas que acabam na lei nova.

Vamos pensar que estamos fazendo uma ação coletiva contra a Debbie, alegando que a cada momento que ela não está compartilhando sua risada na podosfera, está nos tirando um direito fundamental.

Se a petição inicial (aquela que abre o processo) foi feita na lei antiga, ela não é afetada pela lei nova, então deve obedecer os requisitos da lei antiga mesmo que a lei entre e vigor logo após ela ter sido protocolada.

Agora vamos supor que a Debbie foi citada para apresentar sua defesa ainda na vigência da lei antiga, mas que seu prazo vá acabar na lei nova. Pensando na mudança do CPC, o prazo antigo era de 15 dias corridos. Já com o CPC novo, passa a ser de 15 dias úteis.

Bom, nesse caso, entende-se que se o prazo já começou a correr, o ato já está acontecendo. Como o direito não retroage, vale a lei antiga. Portanto, a Debbie não vai ter o benefício de contagem em dias úteis em favor dela (não que isso ajude muito, porque ela não tem como ganhar essa causa).

Direito Civil no tempo

O Direito Civil no tempo tem as duas mesmas regrinhas básicas sobre qual lei aplicar: o direito se aplica imediatamente na sua vigência, mas não retroage.

Ocorre que ele tem algumas coisinhas a mais que podem ser importadas pelo Direito na viagem do tempo, em especial para os contratos.

A regra

O artigo 2.035 do Código Civil (CC)  estabelece algumas regras para contratos que iniciaram antes de uma mudança na lei. A validade de um contrato deve ser sempre verificada a partir da lei vigente quando ele foi feito. Porém, os efeitos que esse contrato gera são regidos pela lei de quando ocorre. Vamos entender melhor.

Digamos que o Fencas alugue um prédio para funcionar como a Torre Deviante por um período de 30 anos. Porém, com 10 anos a lei muda e diz que pessoas com mais de 2m30 são incapazes para os atos da vida civil. Isso quer dizer que se o Fencas fizesse o contrato agora, ele não seria válido, mas como ele fez na lei anterior, o contrato continua em pé.

Porém, como os efeitos seguem a lei nova se ocorrerem em sua vigência, os aluguéis que vierem depois da lei devem obedecê-la.

Vamos supor que a lei antiga dizia que os aluguéis devem ser pagos no domicílio do devedor, ou seja, que é o nosso Seu Barriga que deve procurar o Fencas pra receber o dinheiro. Nesse caso, é vantagem pro Fencas, pois se o Seu Barriga não for receber, não há atraso do aluguel ou multa, já que o errado é o credor.

Contudo, caso a lei nova diga que o pagamento deva ser feito no domicílio do credor. Pela regra, é o Fencas quem tem o dever de ir até o Seu Barriga pra pagar.

A exceção

Isso tudo, porém, só vale se o próprio contrato não tinha determinado como deveria ser feito o pagamento. Do contrário, se já havia uma cláusula prevendo que, todo mês, o Guaxa é quem deveria levar o dinheiro fantasiado de Guaxinim, a mudança da lei não interfere no contrato.

A exceção da exceção

Porém, pode ser que alguma cláusula do contrato não possa prevalecer na nova lei, mesmo que fosse totalmente válida na antiga. Isso porque o parágrafo único do artigo 2.025 do CC diz que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública estabelecidos para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

Vamos supor que a nova lei estabeleça um valor máximo do aluguel em prédios utilizados para divulgação científica. Como o contrato falava sobre valores de aluguel, pela exceção isso não se aplicaria a ele. Entretanto, como a regra que visa a fomentar a divulgação científica, sem dúvidas, atende a uma função social, ela prevalece sobre a convenção.

Direito Penal no tempo

O direito penal no tempo é bem mais tranquilo de entender. A lei penal não retroage, salvo pra beneficiar o réu.

Então, vamos supor que uma lei torne crime a prática de fritar beterrabas. Nosso fritador de beterrabas preferido, o Tarik, não poderia ser preso por ter feito isso antes da vigência da lei.

Claro que, se ele continuar fritando beterrabas agora, poderá ser preso. Mas, mesmo que ele siga nessa prática criminosa e seja condenado por isso, se uma nova lei descriminalizar a fritura de beterrabas, Tarik estará perdoado.

A mesma regra vale quando algo não deixa de ser crime, mas tem a pena alterada. Se a pena aumenta depois que o crime foi feito, ainda que a condenação venha depois, a pena aplicada é a do dia do crime. Por outro lado, se a pena é reduzida depois do cometimento do crime, mesmo que a pessoa já esteja cumprindo a pena, ele será beneficiado pela redução.

Direito no espaço (direito internacional privado)

O direito no espaço se torna interessante em situações que envolvem vários países, o que é trabalho pro direito internacional privado. Uma típica questão de concurso na área do direito internacional privado seria algo como: um alemão casado com uma etíope contrata com uma afegã a compra de um imóvel no Peru, contrato este assinado em um navio de bandeira do Butão ancorado em Kiribati. Qual é o direito aplicável para determinar a validade do contrato?

Na prática, esse seria um caso que chega ao tribunal de algum desses países. O juiz desse país, em primeiro lugar, analisa se ele é competente para julgar a ação ou se cabe a outro país. Se ele for, aí precisa descobrir qual direito vai aplicar: o da Alemanha, da Etiópia, do Afeganistão etc.

A solução

Quem vai dizer qual é o direito a se aplicar é a lei do país do juiz. Por exemplo, se o juiz for Brasileiro é a lei do Brasil, mais especificamente a Lei de introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que vai dizer se o caso deve ser resolvido usando direito peruano, kiribatiano ou butanês.  Apesar de essas questões costumarem colocar mil detalhezinhos, é sempre um só que resolve.

Na ótica do direito brasileiro, o domicílio da pessoa resolve as questões sobre personalidade (nome, capacidade civil). Já a situação dos bens é regulada pelo direito do país onde eles se encontram, e assim vai.

Pensando no caso que eu descrevi, a pergunta sobre qual direito aplica depende, primeiro, de qual é a autoridade que está julgando, depois, do que está sendo jugado.

Se o processo for no Brasil e o problema for sobre a capacidade civil dos contratantes, será usado o direito do país em que cada um tem domicílio. Se o problema for de validade devido à forma do contrato, será usado o direito do lugar onde ele foi feito.

Direito na viagem no tempo

Como tudo isso nos ajuda a pensar o direito na viagem no tempo? A parte do direito no tempo é importante pra entender como a mudança de uma lei afeta o julgamento. Já a parte do direito no espaço permite entender os conflitos de legislação. Então vamos voltar nos dois casos que eu propus lá no começo.

Direito penal na viagem no tempo

O caso de direito penal era: uma pessoa do ano 2059 vai ao ano 2033 e mata uma pessoa do ano de 2027?

Bom, a primeira coisa que temos que saber é em que ano que a pessoa está sendo julgada.  Nesse caso, não importaria o ano original da pessoa, apenas o ano do crime e o do julgamento. Dentre esses dois, se aplicaria a pena menor, a mais beneficia ao réu. Vamos entender a partir de algumas hipóteses.

Crime antes, julgamento depois

Se a data do julgamento ocorre após a do crime, temos um caso bem parecido com o dia a dia do direito penal, pois os crimes sempre são julgados depois de praticados. Se a lei do dia do crime for a mais benéfica, é ela que se aplica, se for mais prejudicial, se aplica a lei nova.

Poderia ser que a própria lei penal previsse um aumento de pena para crimes praticados em viagem do tempo. Isso seria razoável, em especial, se a viagem no tempo trouxesse uma facilidade para o cometimento do crime ou mesmo para a evasão da pena, mas aí é um caso a parte.

Crime depois, julgamento antes

Se a data do julgamento ocorre antes do crime, aí a gente tem algo mais interessante. Não se trata de punir alguém por algo que ainda não aconteceu, pois, ainda que o crime vá acontecer no futuro, ele estaria no passado da pessoa que o cometeu.

Nesse caso, a regra seria a aplicação da lei do dia em que o crime ocorreu, mas se a lei do dia do julgamento é mais benéfica para o réu, o juiz teria que usá-la, pois não poderia punir alguém com uma lei mais rigorosa do que o seu direito lhe permite.

Bom, isso com certeza geraria um turismo de pessoas indo para certos tempos para fazer coisas que seriam proibidas em outras épocas, não que seja algo incomum atualmente, o que muda é que as pessoas só se deslocam no espaço.

Direito civil na viagem no tempo

No direito civil a coisa já se torna mais complexa, pois ele trata de conflitos entre duas pessoas e não da pessoa contra o Estado.

O caso que eu tinha proposto no início foi: uma pessoa de 2099 foi até 1998 para fazer um contrato com uma pessoa de 2143 para adquirir, a partir de 2031, a parte de uma empresa fundada em 2025 em troca de um pagamento a ser realizado em 2101.

Assim como o direito internacional privado depende do país que está julgando, a resposta dependeria do direito do tempo do julgamento. A lei de cada ano provavelmente preveria o direito de qual tempo deveria se aplicar. Mas, para não fugir da pergunta, vamos tentar pensar a partir do eu trouxe até aqui.

Qual direito aplicar

Nesse caso, podemos pensar que a lei diria que, para decidir sobre a capacidade das pessoas para realizar o contrato, valeria a lei do ano em que elas estariam em seu curso de vida normal.

Assim, se a pessoa de 2099 teria 16 anos em 2099, independente de quando ela estivesse sendo julgado, teríamos que ver se a lei de 2099 diz sobre sua capacidade civil. Se for igual o nosso atual Código Civil, a pessoa seria relativamente incapaz e não poderia fazer um contrato sem seu representante legal. Mas, caso essa idade já tivesse baixado até 2099, o contrato seria válido.

Por outro lado, se a discussão fosse sobre a validade do contrato por uma questão de forma (como a necessidade de escritura pública), deveria ser aplicada a lei de quando ele foi feito.

Já, se o problema fosse sobre a execução do contrato, a lei aplicada seria ou a de 2031, se o problema fosse sobre a transferência das quotas da empresa, ou a de 2101, se fosse sobre o pagamento.

Leis contrárias à ordem pública

Uma questão que poderia entrar é da aplicação de leis consideradas contrárias à norma de ordem pública no tempo do julgamento, ou seja, aquelas que confrontariam de forma grave os valores daquela sociedade. Para entender isso da nossa perspectiva, basta pensar em leis de outros tempos ou lugares que permitem o casamento com crianças.

Nesse caso, o juiz poderia deixar de aplicar a lei do outro tempo. Isso geraria uma influência enorme da subjetividade da época na decisão do caso e seria algo com que a legislação talvez teria que lidar.

Considerações finais

Talvez a viagem no tempo trouxesse tanto problemas que tudo o que usei como base pra escrever o texto tivesse que ser jogado fora. Talvez teríamos um direito intertemporal ou mesmo um tribunal para julgar esse tipo de caso. O problema de especular é isso, mas acho que esse texto, no mínimo, fica pra aprender um pouco sobre direito no tempo e no espaço.

E aí? Acham que eu viajei muito? Ou talvez que eu viajei pouco? No tempo ou no espaço? Ou só nos labirintos da minha mente? Bom, diz aí, pra que época você iria pra cometer qual crime?