Texto de Isabelly Tiemi Nagaoka Godoy

Você já deve ter visto por aí as formigas cortadeiras enfileiradinhas carregando suas folhas, flores e outros tipos de materiais vegetais para o formigueiro. Talvez ao observar essa cena, você tenha imaginado que elas se alimentam dessas folhas, mas a verdade é que essas plantas estão sendo carregadas para servirem de alimento a um outro organismo: um fungo! 

É isso mesmo! As formigas cortadeiras- também conhecidas como saúvas, pertencentes à tribo Attini e família Formicidae, carregam essas folhas para alimentar um fungo que fica dentro do formigueiro! E sim, os fungos também se alimentam! Eles são heterotróficos (hetero= diferente, trophos= nutrição), ou seja, ao contrário das plantas, não têm capacidade de fazer fotossíntese e devem se alimentar de outros seres vivos.

Sendo assim, no que diz respeito à alimentação, os fungos se parecem mais com os animais, porém, com uma grande diferença resumida pelo micólogo e escritor britânico Merlin Sheldrake em seu livro A Trama da Vida: “A diferença entre os animais e fungos é simples: os animais colocam comida em seus corpos, enquanto os fungos colocam seus corpos na comida”. Esses fungos cultivados pertencem principalmente a duas famílias: Agaricaceae (família do champignon, por exemplo) e Pterulaceae (fungos em forma de coral, principalmente) (Figura 1).

Figura 1: Diferente das plantas, os fungos não possuem clorofila e não fazem fotossíntese. À direita, um cogumelo da família Agaricaceae; à esquerda, um exemplo de fungo coraloide (em forma de coral).

Mas como essa relação se estabeleceu ao longo dos milhares de anos? Como as formigas se tornaram fazendeiras tão especializadas?

Uma das hipóteses mais aceitas, é que esse estilo de vida tenha se originado há cerca de 55-65 milhões de anos, na floresta Amazônica, e se aperfeiçoado em locais com clima mais seco, como o Cerrado, de modo que o cultivo dos fungos se tornou uma alternativa à falta de material vegetal fresco para sua alimentação. Sendo assim, as formigas podem ser consideradas as precursoras da agricultura

Quando pensamos em formigas, chama a atenção sua organização social e higiene e, por isso, não é de surpreender que, no formigueiro, os ambientes sejam separados de acordo com suas funções, e que os fungos se localizem em câmaras específicas, denominadas “jardins”.

Nesses jardins, as formigas levam o material vegetal para o fungo e, em troca, se alimentam dos compostos pré-digeridos por ele, uma vez que os fungos têm capacidade de degradar a celulose e lignina presente na parede celular vegetal, caracterizando uma relação simbiótica mutualista (famoso ganha-ganha). Em alguns casos, essa associação é tão especializada, que certas espécies de fungos e de formigas já são completamente interdependentes. É o caso do fungo Leucoagaricus gongylophorus, cuja dispersão depende quase que totalmente das formigas levarem pedaços do fungo crescendo no jardim para o estabelecimento de uma nova colônia em outro local; do lado das formigas, as dos gêneros Atta e Acromyrmex, por exemplo, dependem totalmente do fungo para obter o aminoácido arginina (Figura 2).

Figura 2: Formigas cortadeiras cultivando o micélio do fungo Leucoagaricus gongylophorus. Fonte.

Mas se os jardins de fungos são o local perfeito para o crescimento desses seres, como outros fungos e bactérias não se aproveitam desses espaços para crescer dentro do formigueiro também? A verdade é que esse local é um microbioma com diversas bactérias, leveduras e microfungos em um equilíbrio ecossistêmico controlado pelos hábitos de higiene das formigas. Elas limpam as partes mortas e infectadas dos fungos, além de formarem associações simbióticas com bactérias que produzem antibióticos que auxiliam na manutenção dos jardins e secretam enzimas pelas fezes, que ajudam a degradar a biomassa vegetal e remover patógenos. Ou seja, quando vemos um formigueiro, estamos de frente para um ecossistema microscópico complexo, cheio de vida e de intensas batalhas pela sobrevivência!

Figura 3: Meme sobre as relações simbióticas entre os organismos que formam o microbioma do formigueiro.

Entender melhor sobre a ecologia e o modo de vida das formigas também pode ter aplicações práticas, uma vez que elas são frequentemente tratadas como pragas agrícolas. Um estudo de pesquisadores da UNESP, revela o potencial uso de fungos do gênero Escovopsis no controle biológico das cortadeiras, já que são parasitas do fungo que serve de alimento para elas, o Leucoagaricus gongylophorus, podendo até mesmo matá-lo. 

Figura 4: Manchete da Agência FAPESP sobre estudo realizado na UNESP.

Você imaginava que toda essa complexidade poderia estar bem debaixo dos nossos pés? Ecossistemas inteiros, batalhas intensas pela sobrevivência e associações amigáveis entre organismos estão em toda parte, e os fungos participam ativamente desses momentos! Talvez agora, ao ver uma fila de formigas carregando suas folhas, você se lembre que, lá na frente, um fungo esfomeado aguarda seu almoço e serve, ele também, como alimento para as próprias fazendeiras que o cultivam. 

 


Isabelly Tiemi Nagaoka Godoy

Bióloga, micóloga, apaixonada por literatura, referências de cultura pop e cafeterias superfatura

 

Referências

Arantes, José T. Estudo desvenda mecanismo evolutivo que pode levar ao controle de formigas. 2015. Disponível em: https://agencia.fapesp.br/estudo-desvenda-mecanismo-evolutivo-que-pode-levar-ao-controle-de-formigas/22442#:~:text=%E2%80%9CH%C3%A1%20uma%20incessante%20corrida%20evolutiva,do%20formigueiro%E2%80%9D%2C%20enfatizou%20Rodrigues.

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FLEUR, Nicholas St. An Ancient Ant-Bacteria Partnership to Protect Fungus. 2018. Disponível em: https://www.nytimes.com/2018/10/06/science/ants-fungus-amber.html

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