Há cerca de dois anos, de cada três perguntas sobre investimentos que eu respondia, pelo menos uma era sobre bitcoin. Em dezembro de 2017, a moeda baseada no blockchain chegou a seu pico de mais de 18 mil dólares e parecia ser uma aposta certeira para quem buscava rendimentos exponenciais enquanto a economia brasileira derretia. Pouco mais de dois anos depois do grande boom, as criptomoedas enfrentam sua primeira grande crise mundial e a pergunta que não quer calar é: a premissa da criptomoeda surgida após a crise de 2008 de ser “imune” aos efeitos de uma recessão global se provou verdadeira?

Antes de entrarmos nos números, fica aqui a dica: Se você quer se aprofundar mais no que exatamente é o bitcoin, da onde ele surgiu e como a tecnologia blockchain pode ser usada em outras esferas da nossa vida, sugiro que você escute o episódio #228 do scicast sobre Blockchain que você encontra aqui.

Desde 2008, o bitcoin suscitou muitos debates, flutuações de preço e questionamentos legais, e a verdade é que 2020 está sendo um teste de fogo para todos os tipos de investimento. No meio desse caos, percebi um silêncio sobre o bitcoin e lembrei da sua “promessa” de que deveria resistir a tudo isso que estamos vendo. Por isso eu fui investigar: será que o bitcoin está realizando seu propósito de ser uma boa reserva de valor para investimentos em meio a grandes crises? Qual foi o comportamento desse investimento enquanto as bolsas do mundo desmoronavam?

Um pouco de história e detalhes do sistema bancário

A ideia de uma criptomoeda descentralizada e que poderia ser resiliente a crises internacionais surge com mais força depois da crise 2008, em que o posicionamento do governo americano e a demora em agir em relação aos bancos e às consequências nefastas do derretimento do mercado de hipotecas levou o mundo como o todo a uma recessão, pressionando enormemente as moedas e os mercados de ações em todo o mundo. A ideia de uma criptomoeda seria então a solução ótima já que estaria imune à fragilidade do sistema bancário atual causada principalmente pelo sistema de reservas fracionadas – o que permite aos bancos alavancar seus ganhos com empréstimos.

Vamos dar um exemplo de como isso funciona: Você deposita, vamos dizer, $1000 no banco, que mantém $100 reais em caixa e empresta $900 a uma outra pessoa. Se você parar para pensar, o banco acabou de criar $900, pois os seus $1000 continuam registrados na sua conta ao mesmo tempo em que a conta de outra pessoa recebeu $900. O nível de reserva que fica no banco (no nosso caso $100) é determinado pelos Bancos Centrais de cada país, como uma margem de segurança para que você possa sacar o seu dinheiro sem problemas. Mas em uma situação de crise, como em 2008, os devedores não pagam ao mesmo tempo que os que desejam sacar, deixando os bancos insolventes e dependentes de socorro governamental – a custa dos contribuintes.

A ideia das moedas virtuais é que, por não ter Banco Central e não poder gerar mais moeda através empréstimos bancários, as criptomoedas seriam mais estáveis e imunes em momentos de crise e choque financeiro internacional e especialmente em casos de redução brusca de liquidez – como vimos no choque do petróleo em março de ano. A lógica é se manter uma reserva de valor segura e descorrelacionada com a política mundial. Mas não foi bem isso que vimos no último mês.

Mas o que deu errado?

Duas das características das criptomoedas que deveriam ser seus pilares – a ausência de um governo central e a existência virtual – causam dois grandes problemas que elevam sobremaneira a volatilidade:

  • A ausência de um Banco Central gera certa desconfiança em investidores mais conservadores, consequentemente atraindo apenas aqueles com maior apetite para risco e caráter mais especulativo. Além disso, em momento de crise, a moeda dos países tende a reagir de acordo com o posicionamento das autoridades monetárias dos países e de como o mercado enxerga as medidas tomadas. Sem um Banco Central, não há sinalização nenhuma, empurrando a volatilidade nos preços.
  • A existência virtual faz com que as criptomoedas sejam negociadas ininterruptamente em todo o mundo, aumentando a entrada e saída de capitais. Um dado curioso é que alguns investidores de bitcoin compram a moeda pela manhã e a vendem a noite, para não correr riscos de flutuações bruscas de preço enquanto eles dormem. Com isso, os fluxos de entrada e saída são sempre intensos e sujeitos a flutuações.

A verdade é que no mundo financeiro, o bitcoin e todas as outras criptomoedas ainda são vistas com desconfiança por muitos investidores que as enxergam como um investimento essencialmente especulativo, sem muita fundamentação na teoria econômica tradicional. Isso retroalimenta os dois fatores destacados acima, deixando a cotação do bitcoin muito volátil e suscetível a resgates massivos em momento de crise.

Com toda essa teoria na mesa, eu decidi analisar em números o comportamento do bitcoin – a criptomoeda mais famosa e mais negociada – depois dos episódios do choque do petróleo e do coronavírus. Esses choques começam a ter efeito sobre os mercados na segunda quinzena de março, primeiro com o anúncio da Arábia Saudita de que aumentaria sua produção de petróleo para forçar uma queda de preços e depois com a quarentena imposta em praticamente todo o mundo. Para um resultado mais indicativo da crise sobre o bitcoin, comparei o comportamento dos preços antes e depois de março.

E vamos aos números…

Em 04 de janeiro de 2020 a cotação do bitcoin em dólar estava em $7.296,11 e chegou ao pico do ano em cerca de um mês, mais precisamente em 12 de fevereiro com uma máxima de US$10.506,60. Como podemos ver no gráfico abaixo, a queda então se torna bastante acentuada, tendo como data emblemática o dia 13 de março com uma cotação mínima no ano de US$3.972,32 – o que representa uma perda de 58% em um mês.

Quando olhamos mais especificamente o choque no preço do petróleo, os efeitos aparecem no mercado global por volta do dia 09 de março – logo após o anúncio saudita de aumento na produção. Entre os dias 09 e 12 de março o bitcoin já sofre uma perda de cerca de 10,5% – queda bem mais contida que da maioria das bolsas no mundo. Contudo, as 24 horas seguintes se mostraram terríveis para os investidores e sua tese de uma criptomoeda forte em frente a choques internacionais. Conforme as notícias do coronavírus se espalhavam pelo mundo, entre às 01:00hs do dia 12 e às 02:00hs do dia 13 de março, o bitcoin sofreu uma queda adicional de mais de 45%, chegando a uma mínima no ano de cerca de US$4.000.

Entre pico e vale, a queda total do bitcoin chegou a 60%. Para colocar em perspectiva, a nossa moeda, o real perdeu cerca de 12% do seu valor perante ao dólar no mesmo período, a bolsa brasileira perdeu cerca de 30% e o S&P500 (um dos índices americanos) retraiu 26%.

Um dos motivos para essa queda brusca do bitcoin – e dos mercados como um todo – foi uma corrida em busca de liquidez, isto é, os investidores preferem ficar com o dinheiro parado em conta ou rendendo muito pouco enquanto esperam a tempestade passar. E como o bitcoin é visto de forma muito especulativa, a moeda sofre mais que outros investimentos considerados de risco, como o caso do mercado brasileiro.

É claro que em meio à queda de praticamente todos os investimentos de renda variável, a queda do bitcoin em si não é uma surpresa. Mas não está perdida em mim a ironia que uma moeda virtual que nasceu com o objetivo de proteger investidores de grandes movimentos de mercado como esses que estamos vivendo tenha tido uma das maiores perdas em tão curto período de tempo e sofrido grande volatilidade por conta de suas características intrínsecas.