Hoje, seres humanos vivem mais e melhor. Há alguns milênios, provavelmente você não chegaria aos 35 anos, pois seria morto por infecção depois de uma mordida de javali, diarréia, ou quem sabe seria morto numa briga por comida. Agora vivemos até os 80 anos graças ao método científico, que melhorou exponencialmente a capacidade de identificar doenças e tratá-las (e aumentou as chances de morrer de câncer, já que a idade é um fortíssimo preditor dessa doença).

Mas ciência não é mágica, então muitas pessoas ainda morrem de doenças incuráveis. Entre a cura pelas maravilhas científicas e as doenças ainda incuráveis, existem os casos de remissão espontânea. Como pessoas se curam de um câncer pancreático incurável sem fazer tratamento? Como explicar isso? Milagre? Placebo? Poder da fé? Remissão espontânea? Erro de diagnóstico?

Em A ciência revolucionária da cura espontânea, livro lançado em 2020 pela Companhia das Letras, o psiquiatra e teólogo Jeffrey Rediger tenta responder cientificamente esse mistério. Durante 17 anos de pesquisa, ele trocou e-mails, fez entrevistas e visitou comunidades alternativas para compreender esses casos enigmáticos.

O livro é organizado em capítulos sobre as diferentes práticas realizadas pelos pacientes que alegavam ter tido curas espetaculares. O denominador comum entre os casos são mudanças radicais de vida. Tais mudanças incluíam dietas vegetarianas e jejuns, exercícios físicos, meditação regular, e acolhimento familiar ou por comunidades alternativas exóticas que forneciam o ambiente perfeito para a mudança e reforço dos novos hábitos. Inclusive, li estupidificado as páginas do livro enquanto Rediger mencionava que vários de seus entrevistados buscaram refúgio no Brasil, com ninguém menos que João de Deus.

Embora seja rico em detalhes sobre essas práticas e seus efeitos nas pessoas, existe um aspecto mais geral permeando todo o livro: a crítica à medicina baseada em evidências científicas do Ocidente. O problema de Rediger não é a base em evidências, e ele até diz defender isso. Sua crítica pousa sobre os pressupostos teóricos da medicina ocidental, que resvalam numa prática médica que pode estar deixando passar problemas específicos que seriam melhor contemplados pela medicina alternativa oriental. Os médicos do ocidente simplesmente seriam cegos para determinados problemas porque as lentes teóricas oferecidas pela medicina no nosso lado do mundo não permitiriam ver a relação entre mente, corpo, ambiente e saúde da mesma forma.

A medicina moderna e a tradicional

A medicina ocidental opera separando o organismo estudado em várias partes. Quando a pessoa apresenta algum problema de saúde, encontra-se a parte com problema e administra-se algum tratamento. Tratando as partes, elas voltam a funcionar bem e o paciente volta a ficar com saúde. Dividir um problema em partes é o método ouro para resolver problemas na ciência há alguns séculos, remontando ao francês René Descartes.

Mas os tratamentos tradicionais, tanto ocidentais quanto orientais, funcionam de forma diferente. Doenças são entendidas como resultado de algum problema mais amplo do que o mau funcionamento de alguma parte do corpo. A doença teria a ver com algo mais holístico, ou seja, a interação da pessoa de forma global com o seu entorno (suas relações sociais, seu trabalho, sua vida afetiva etc).

Segundo a visão tradicional, um câncer poderia ter a ver não apenas com uma célula louca que começou a se reproduzir descontroladamente. O câncer teria a ver também com o estresse, com o quanto uma pessoa retém sentimentos ruins, etc. É o famoso papo de levar em conta mente, corpo e espírito. É basicamente por isso que em várias culturas tradicionais não existe a figura do médico, do sacerdote e do psicólogo. Existe uma figura, talvez um guru, como no Tibete, que exerce todos esses papéis de uma vez só. A saúde física, psicológica e espiritual não seriam essencialmente diferentes como encaramos hoje no Ocidente modernizado.

Nos primórdios da medicina do Ocidente havia também uma visão holística. Para o famoso Hipócrates, a cura passava por vis medicatrix naturae, o poder curativo da natureza. Ele não via a doença só como o desequilíbrio dos humores corporais, mas também como um desbalanço relacional, um afastamento da natureza. A cura envolvia uma vida mais em harmonia com a natureza (isso não tem muito a ver com viver pelado numa floresta comendo larva, mas entrar em harmonia com uma certa “vontade universal”, que para os estóicos vai ser a Natureza, para os chineses vai ser o Tao, e assim por diante).

Isso começou a mudar de séculos para cá. Inventaram telescópios, microscópios e surgiu a química, que ignorou a parte holística e mais, digamos, semântica da alquimia e ficou só com a parte mecânica (assim como Newton começou a fazer com a astrologia/astronomia). Séculos depois começamos a identificar agentes causadores de doenças e medicamentos capazes de conter seus efeitos nocivos ao organismo.

A capacidade humana de explicar e tratar doenças de diversos tipos foi aumentando exponencialmente. Não dava mais para ignorar a maior eficácia desse novo olhar sobre a saúde e sobre o funcionamento do corpo. Ficou difícil defender que a doença como fruto de desequilíbrios de coisas pouco precisas como energias e forças misteriosas.

Jogamos a água do banho fora junto com o bebê?

Mas alguns pesquisadores se perguntam se não jogamos fora a água do banho junto com o bebê. Nos tornamos bons em resolver vários problemas, aumentamos a expectativa de vida das pessoas, mas alguns problemas teoricamente mais simples continuam desafiando os tratamentos — isso sem nem citar os casos de remissão espontânea pouco elucidados. Por exemplo, temos antibióticos e vacinas, mas ao mesmo tempo morremos mais de câncer do que antes (o que pode ser efeito tanto da alimentação quanto do aumento da expectativa de vida), estamos mais esgotados, estressados e obesos.

A grande aposta do livro é que a medicina moderna é boa em resolver problemas naturalmente abordáveis de uma perspectiva cartesiana, enquanto a “medicina tradicional” seria melhor em resolver problemas de natureza mais holística (mais relacionais). E isso tem tudo a ver com outra coisa bastante discutida no livro: efeito placebo.

Alguns pesquisadores propõem que o chamado efeito placebo é o único modo como a medicina moderna consegue explicar efeitos de natureza holística. Os pressupostos da nossa melhor medicina não seriam lentes capazes de enxergar esses fenômenos mais integrados. Assim, sua aparição em experimentos é explicada como erro ou como efeito placebo, isto é, efeito psicológico.

Mas o que é efeito placebo? É um fenômenos identificado em estudos experimentais, em que pacientes tratados com pílulas de açúcar (ou qualquer intervenção quimicamente inócua) obtém remissão de sintomas igual ou superior ao grupo de pacientes tratados com uma medicação real (com princípio ativo específico capaz de agir sobre uma doença).

O ponto é que isso não explica apenas como mudanças radicais de vida podem ter efeitos sobre doenças, mas também como coisas aparentemente bobas fazem diferença. Por exemplo, superficialidades como o formato e cor da pílula ou a cor do jaleco do médico parecem influenciar na eficácia de tratamentos. Às vezes só esses fatores já causam efeito positivo. Isso pode ser entendido como efeito não especificado ou aleatório, mas pode ser também um caso de que vários fatores contextuais podem aumentar a confiança da pessoa, melhorando seu sistema imune, melhorando a maneira como se lida com a doença e melhorando o prognóstico.

Mas Rediger não defende a substituição de uma coisa por outra. Inclusive, já no fim do livro ele comenta sobre a medicina do futuro se utilizando das duas visões sobre saúde. Para ele, IAs ficariam responsáveis por identificar sintomas, fazer diagnósticos e receitar remédios. Isso liberaria os médicos (humanos) para ter um contato mais aprofundado com o paciente, talvez como Hipócrates faria se dispusesse das ferramentas do século XXI.

Os problemas do livro

A ciência revolucionária da cura espontânea tem alguns problemas que, aliás, são recorrentes em obras que tratam de abordagens que desafiam em algum grau a “medicina ocidental” ou “alopática”.

Primeiro, o psiquiatra não oferece contrapontos para suas conclusões, o que pode contaminar sua pesquisa com um viés de confirmação gigantesco. Rediger entrevista apenas pacientes que alegam ter tido curas extraordinárias (e que ele concorda que de fato são) através de mudanças radicais de vida. Mas como garantir que essas mudanças realmente são as responsáveis pela remissão das doenças incuráveis? Como saber se não existe uma quantidade ainda maior de pessoas que seguiram esses exatos mesmos passos e que morreram mesmo assim? Essa é uma falha bastante comum em estudos qualitativos como os de Rediger. É como concluir que pirulitos curam câncer entrevistando apenas chupadores de pirulito que venceram o câncer.

É claro, o autor parece estar certo quanto a alguns hábitos e a baixa incidência de doenças graves. Por exemplo, alimentação vegetariana realmente está associada a menos risco de câncer colorretal, e uma recente revisão mostra que a dieta vegetariana está associada a boa saúde no geral, incluindo baixo risco de doenças cardíacas, câncer, e melhor prognóstico diante de tumores malignos — embora uma recente metanálise tenha obtido resultados inconclusivos entre dieta mediterrânea e câncer. Meditação, outro hábito citado no livro, também sido associado a melhores respostas do organismo à inflamação e melhora da resposta imunológica, embora as revisões sejam menos otimistas.

Esses são problemas mais de natureza empírica e metodológica. Mas Rediger dá um passo adiante com um capítulo inteiro sobre nada menos que mecânica quântica. Sim, o autor surfa na onda da cura quântica e diz que a relação entre mente e corpo é mais misteriosa do que parece, e que no futuro os métodos alternativos serão elucidados pelas pesquisas em física quântica. Isso foi criticado inclusive em uma resenha do The Guardian. Depois de É Pura Picaretagem, do Carlos Orsi e Daniel Bezerra, eu espero que no mínimo nenhum brasileiro caia mais nessa conversa.

Esse livro parece ser um manifesto a favor de mais pluralidade epistêmica na medicina, tirando o monopólio do cartesianismo (essa visão de dividir e analisar os fenômenos como mecanismos). No entanto, Rediger parece ser seduzido por um modo de pensar muito comum entre os médicos, e que tem tudo a ver com Descartes: a separação entre mente e corpo. O dualismo cartesiano separou a mente do corpo numa época em que isso vinha bem a calhar como base da prática médica, afinal, separando uma coisa da outra os médicos estavam liberados para mexer nos corpos sem que isso significasse profanar o espírito. Para isso, o autor se compromete com explicações exóticas vindas da mecânica quântica, que é invocada por qualquer autor que tem um baita mistério nas mãos e não sabe como resolver (é mais ou menos como usavam o eletromagnetismo no século XIX para explicar a interação à distância entre imãs e também todo tipo de mambo jambo paranormal).

Se eu pudesse dar um saldo geral, diria que Rediger tem razão em querer que as pessoas vivam melhor, e isso pode mesmo ser feito com uma alimentação melhor, relações melhores e com meditação. Mas eu não sei se existem evidências boas o suficiente para acreditar que dominamos o segredo das curas espontâneas de doenças incuráveis.