
Imagine o seguinte cenário. Você está andando pelo mercado e se depara com o setor de açougue. Você decide fazer um churrasco no domingo e rapidamente se aproxima das senhas para fazer seu pedido. Procura rapidamente por pedaços como maminha, alcatra ou chã de dentro. Olhando para o refrigerador, você observa cortes que nunca viu, com uma coloração que lembra até comida artificial em filmes e teatros. Confuso, pergunta-se o que afinal aconteceu com o mercado?
Você se deparou com a carne cultivada. Esse é o mais novo paradigma tecnológico que estamos observando no campo alimentício. Essa carne é oriunda de células animais que tiveram o crescimento estimulado em laboratório. Pela maneira como é produzida, muitas pessoas podem ter receio de comer o produto. Afinal, a carne precisa vir do boi. Certo?
No texto de hoje, iremos entender o que afinal é a carne cultivada. O que é esse item alimentício? Existe algum risco sanitário ou ao meio ambiente com esse produto? É isso que iremos entender agora!
O cultivo de carnes é o método de produção surgido diretamente da engenharia de tecidos [1]. Seu principal objetivo é diminuir a emissão de gases do efeito estufa enquanto mantém a demanda por produtos cárneos. Atualmente, a indústria da proteína animal possui a cadeia produtiva com maior pegada de carbono.
Outro benefício ambiental é a diminuição no uso de água na dessedentação animal, diminuição da necessidade de grandes espaços de terra e redução da dependência de antibióticos e pesticidas. A técnica tem potencial de remodelar toda a pecuária como a conhecemos, bem como acabar por vez com as externalidades negativas dos sistemas de criação.
Muitas técnicas podem ser utilizadas para alcançar um produto cárneo cultivado útil ao mercado. Primeiro, você deve retirar células do tecido pretendido diretamente do animal [2], podendo utilizar agulha de biópsia convencional. Em laboratório, é necessário isolar células-tronco multipotentes – CTM – presentes naquela amostra. O CTM é a célula que, após certos estímulos ambientais, vira outra célula, adaptada àquele tecido. O isolamento pode ocorrer com auxílio mecânico ou enzimático.

Imagem um. Tradicional de restaurantes requintados, o corte angus já está disponível como carne cultivada em Israel [3]. A startup Chunk Foods se lançou no mercado que possui restrições religiosas únicas. Na imagem, pode-se observar o bife angus por cima de alguns temperos.
Logo depois, essas células são postas em meio de cultivo dentro de biorreatores, para que assim ocorra a multiplicação celular. Nesse meio, há nutrientes essenciais à vida como macro e micronutrientes, vitaminas, aminoácidos, ácidos graxos, água e glicose.
Nas últimas etapas, ocorre a diferenciação das células e montagem em fibras musculoesqueléticas, através do auxílio de arcabouços industriais, que na prática funcionam como grandes moldes. Para auxiliar na fixação, é utilizado componentes conhecidos como microcarreadores [4]. Eles são praticamente moléculas de gelatina ou colágeno que fornecem adesão às células, limitando a agregação delas.
Assim, usando outros meios de diferenciação, consegue-se fazer a especialização das linhagens naquele meio. Com o auxílio de condições específicas, produz-se o tecido, em um trabalho quase tão artístico quanto a pintura.
As empresas utilizam diversas tecnologias diferentes para realizar essas etapas. Por exemplo, o meio de cultivo preponderante é o soro fetal bovino, obtido a partir de sangue dos fetos. Esse líquido é ideal pois já possui moléculas complexas na proporção correta, como proteínas transportadoras, fatores de fixação tecidual e macromoléculas. Porém, utilizar esse meio ia necessitar de uma grande quantidade de bois, todos em programas específicos de crescimento. A pegada ambiental ainda iria ser grande.
A partir daí que os estudos têm buscado alternativas diferentes. Uma possibilidade é utilizar uma cultura líquida extraída de cogumelos, enquanto outra é combinar produtos químicos de diversas origens [4]. Pode ser aminoácido feito por fermentação bacteriana e vitaminas extraídas de plantas como beterraba, por exemplo. O importante é juntar tudo em um único soro.
Outro ponto de diferenciação são os biorreatores. Existem diversos que são usados hoje no mercado, com tempos, densidade celular e modos de uso diferentes. Dentre os mais comuns, estão: elástico, fermentador de tanque agitado, de ondas e fraco spinner.
Todas essas tecnologias de meio de cultura, diferenciação celular e fermentação acabam por impactar no rendimento final de nutrientes para tecido viável comestível. Dizemos então que elas impactam na taxa de bioconversão. Mas esse não é o único impacto do uso de tecnologias nesse segmento.
O uso de tecnologias complexas, em que as pessoas pouco conhecem seus princípios, cria estigma no campo alimentício. As pessoas começam a fomentar medos e apreensões que pouco têm de racionais. Esse cenário fixa princípios errados sobre o desenvolvimento científico no campo alimentar e fomenta, no cenário imagético, o que conhecemos como frankenfood.

Imagem dois. Mercado em franca expansão, países já se mobilizam para regulamentar leis e resoluções sobre produção, importação e exportação de produtos animais de laboratório [5]. Países como Israel, Estados Unidos, Singapura, Suíça e Reino Unido já despontam no cenário regulamentador. Na imagem, observa-se um produto cárneo em atmosfera controlada com indicações de origem laboratorial na etiqueta.
O termo “frankenfood” faz referência ao Monstro de Frankenstein, criatura aterrorizante criada pela ciência sob preceitos éticos questionáveis. O termo foi usado pela primeira vez para se referir negativamente aos alimentos geneticamente modificados — OGM —, mas com o tempo foi capaz de embarcar outros produtos tecnológicos, como irradiado, manufaturado, ozonizado e até plant based. A mesma lógica já está migrando aos produtos cultivados.
Se a aversão por este produto virar medo, dizemos que o cenário é de neofobia. As pessoas desenvolverão um receio irracional sobre os efeitos desses alimentos/tecnologias no corpo. Assim, as estratégias de marketing e distribuição não conseguirão reverter em vendas, fazendo com que diversos mercados se inviabilizem.
As pessoas geralmente desenvolvem estigmas por alimentos de alta tecnologia por temerem malefícios diretos à saúde [6]. Os principais temores são sobre o aumento ou desenvolvimento de alergias, resistência a antibióticos, acumulação de substâncias no corpo e de resíduos tóxicos. Todos eles são justificáveis, mas se forem bem embasados. O que não é o caso da carne cultivada.
Por ter uma estratégia de cultivo diferenciada, produtos cárneos cultivados possuem padrão de qualidade mais elevado do que sua alternativa de abate. Não é necessário utilizar componentes como antibióticos, anti-inflamatórios, vermífugos e antiparasitários durante o desenvolvimento do produto.
Além disso, não ocorre nenhum risco de contaminação por bactérias, príons e vírus da cadeia, como E. coli, coliformes, salmonella e Listeria monocytogeneses. Já tivemos casos graves de doenças por causa desses seres, como no surte de Doença da Vaca Louca nos anos 2000. A ausência deles já aumenta e muito a segurança do produto cultivado.
Outra melhoria do cultivo cárneo é com relação ao meio ambiente. O menor uso de insumos na agropecuária já diminui a contaminação de rios e solos, que é uma preocupação corriqueira da indústria [6]. Diminuição no consumo de água, de poluição de corpos hídricos, de desmatamento do solo e liberação de gases do efeito estufa são esperados também em um primeiro momento.
No Brasil, a cadeia da proteína animal responde por quase 60% dos gases de efeito estufa emitidos [7]. Gases como metano e gás carbônico alimentam os efeitos danosos do aquecimento global. A carne cultivada como alternativa alimentícia aumenta o controle sobre as mudanças climáticas e suas consequências adversas.
O mercado também pode mexer com públicos de restrições de dogma alimentar, como judeus, muçulmanos e veganos. Não há outra alternativa tão prática, saudável e sustentável em desenvolvimento. Entender a carne cultivada é crucial para conseguirmos diminuir nossos medos e acabar com a neofobia.
Para isso, é necessário que a indústria consiga fazer uma boa propaganda dos produtos cultivados. Com a ajuda de divulgadores científicos e influencers da gastronomídia, muitos mitos e estigmas podem ser batidos de frente. E essa é uma batalha que precisamos travar desde cedo.
Gigantes da indústria estão investindo pesado nessa alternativa, buscando também maneiras sustentáveis de fazer o produto. Será que em alguns anos o açougue já vai ser majoritariamente por carne cultivada?
Em um futuro mais longínquo, novos sabores, produtos e cortes podem surgir com esta técnica. Quem sabe a carne já sai da fábrica com temperos entremeados, como alecrim, orégano ou açafrão? Até mesmo poderemos imaginar novas maneiras de conservação, como carne regada a cerveja. Como serão nossos churrascos? Já pensou nisso tudo? São promessas que só o futuro demonstrará se serão compridas ou não.