Pandemia, distanciamento social, aulas online tentando emular a metodologia EAD (Educação a Distância) e os debates sobre os usos de ferramentais virtuais no ensino voltaram com tudo! E em um momento tão pesado, quero falar de algo leve: memes. Isso aí, vamos conversar sobre a potência do meme como ferramental educativo?

Quem me acompanha há um tempinho sabe que, na época da graduação em Psicologia, estagiei em uma escola de ensino médio integral. Adivinha a queixa mais frequente entre estudantes e professores? A dificuldade de manter o interesse nas aulas. De um lado, professores tentando dinamizar os conteúdos, relacionar com o cotidiano e pesquisando metodologias ativas; do outro lado, estudantes cansados, pressionados e com a sensação que não estavam sendo ouvidos…

Sem entrar no mérito de questões específicas à dinâmica daquela escola, percebemos a dupla pressão presente no ensino atualmente: pela modernização dos professores e por um rendimento cada vez mais diversificado dos estudantes. Se pensarmos bem, veremos que a cobrança é exatamente a mesma: o desenvolvimento de competências que vão além da sala de aula e do que é ensinado.

Autoria desconhecida

ENEM? Ah, nem vem!

Falar de pressão escolar é falar de exames de seleção para institutos federais, faculdades e universidades. Ao longo do meu tempo de estudante fui vendo as transformações sofridas pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e pelos vestibulares, que foram migrando de provas pautadas no decoreba para estratégias ditas contextualizadas, mesclando diversas áreas do conhecimento na resolução de uma única questão.

Autoria desconhecida

Não estou aqui para fazer juízo de valor do método e de sua implantação, mas a cobrança dessas competências transversais pegou professores e estudantes de calças curtas. Por exemplo, para se dar bem no ENEM, o estudante precisa ter desenvolvido 5 habilidades do chamado Eixo Cognitivo, comum a todas as áreas do conhecimento:

I – Dominar linguagens;

II – Compreender fenômenos;

III – Enfrentar situações-problema;

IV – Construir argumentação;

V – Elaborar propostas.

Fora isso, ainda precisa dominar competências específicas para cada área do conhecimento (Linguagens, Redação, Ciências Humanas, Matemática e Ciências da Natureza, cada qual com suas tecnologias). E sabe quem mais precisa de competências transversais para ser entendido? O meme!

Do nascimento as Guerras Memeais

Acho que uma das coisas que eu mais gosto na história do meme é que seu conceito foi criado por um cientista. Richard Dawkins, em seu livro “O gene egoísta” (1976), propõe o conceito de meme como uma pequena unidade de informação replicável, que ia sendo repassada culturalmente, traçando um paralelo com o gene.

Apesar disso, é somente em 2009, com os estudos de Henry Jenkins, que vamos ver o reconhecimento dos memes a partir de uma dinâmica própria da cultura digital. As discussões no campo da comunicação migram da cultura chiclete ou grudenta, própria dos veículos midiáticos de massa, para a cultura do viral ou espalhável proporcionada pelas redes sociais.

A principal característica dos conteúdos produzidos digitalmente hoje em dia é a democracia da autoria, qualquer um pode criar e disseminar informações até mesmo em forma de memes, intencionalmente ou não (afinal, todos conhecemos histórias de pessoas que viralizaram sem querer).

Fonte: Uol

Ah e fica a dica: meme não é só aquela imagem com texto nas margens de cima e de baixo! Eles podem ser encontrados também em forma de gifs e vídeos (vide as fancams e produções do Tik tok).

O ponto crucial é sempre o conteúdo em forma de crítica ou comentário do cotidiano contendo algum grau de humor, ironia ou deboche que não pode ser compreendido de forma isolada do seu contexto, tendo em vista que traz uma coleção de mensagens cuja decodificação depende principalmente da compreensão de um discurso.

Ainda está em dúvida se aquele conteúdo é um meme ou não? Vamos as dicas científicas:

  1. Conteúdo – traz um grupo de itens com a mesma ideia;
  2. Forma – os itens desse grupo são criados tendo como ponto de partida o mesmo elemento (imagem, vídeo, gif);
  3. Posição – a imagem ou vídeo passa por transformações e recompartilhamentos de forma a expressar o posicionamento de quem o faz.

E falando em posicionamento, você sabia que já passamos por 3 Guerras Memeais? O Twitter em 2016 foi animadíssimo, porque além dos memes da Copa do Mundo de futebol, tivemos conflitos memísticos entre Brasil, Portugal, Argentina e Espanha. Acompanhe comigo no replay:

I Guerra Memeal – Foi o conflito mais longo, com duração de 3 dias, onde Brasil e Portugal se enfrentaram após o meme “in Brazilian Portuguese we don’t say…” ser adaptado e usado por um perfil lusitano. A parte mais engraçada da briga foi que rolou até spoiler de novela brasileira que estava sendo transmitida em Portugal. A ciberguerra chegou ao fim quando o perfil do Twitter “In Portugal We Don’t” deletou sua conta da rede.

II Guerra Memeal – O cantor Shawn Mendes, cujo papai é português, declara torcida para o país lusitano na copa do mundo. A Argentina vê a oportunidade de pegar carona na rivalidade histórica com o Brasil e se alia a Portugal em uma nova ofensiva memística. Em um dia o conflito foi vencido pela carga assustadora de memes gerados pelos brasileiros.

III Guerra Memeal – No dia seguinte, a Espanha se alia a Portugal e Argentina, formando a tríplice aliança memística em uma nova ofensiva aos tuiteiros brasileiros, que mais uma vez se consagram vencedores na arte da zueira.

Fonte: Huffington Post

Já pensou usar esses exemplos nas aulas de História? Seria ótimo, mas sabemos que nem todo professor é versado nas redes sociais do momento.

Diz que gosta de meme mas…

Toda vez que se fala em inovação ou modernização em sala de aula temos 2 cenários bem distintos: os professores antenados empolgadíssimos e a turminha que olha preocupada para mais uma coisa a ser aprendida. Será que o foco está no lugar certo?

Veja bem, não quero ditar como ninguém deve dar aulas, mas sabemos que a coisa flui bem mais facilmente quando a pessoa conhece (e domina) sobre o que está falando. Então por que inserir ferramentas virtuais nas aulas só por inserir? Lousa digital, tablet, canal do YouTube da escola, plataforma virtual de aulas remotas… É tanta coisa que não dá nem tempo de aprender uma e chega outra.

Autoria desconhecida

Aqui entra a minha contradição e provocação: vivemos em um mundo online. Cheio de desigualdades no acesso, mas com uma parcela enorme de gente conectada! Os estudantes estão imersos em tecnologia e a escola enquanto entidade ainda tenta competir com os atrativos virtuais. Essa conta não vai fechar! Não é uma questão de competição, mas de contextualização, de oferecer uma prática educacional coerente com a realidade dos estudantes (e do mundo). E será que para oferecer um ensino contextualizado a escola realmente precisa se encher aparelhos, gadgets e derivados? Ou talvez prestar atenção ao que seus estudantes e colaboradores tem consumido e discutido nas redes sociais?

O humor já é usado há bastante tempo como ferramenta para educar, na verdade, a arte de modo geral. Se são usados livros paradidáticos, filmes, músicas e tirinhas, por que não usar memes se estes retratam e fazem parte do cotidiano dos estudantes e de muitos professores?

Além de ilustrar boa parte das situações vividas pelos brasileirinhos, os memes também podem contribuir no desenvolvimento das tão famosas habilidades transversais e contextualização do aprendizado cobrado no ENEM e vestibulares. São uma forma inusitada, simples e de pequena logística para auxiliar na problematização de conceitos e comportamentos através do humor. Podem ainda sintetizar uma ideia ou conceito, levantar debates e até ser uma nova forma de letramento, contribuindo para boas práticas online.

Mas nem tudo são flores e o uso dos memes como ferramenta deve levar em consideração o público-alvo, que precisa ter maturidade para compreender esse tipo textual. Caso não haja boas habilidades interpretativas, de intertextualidade e compreensão de ironia, o tiro pode sair pela culatra com o início de um sonho dando tudo errado.

Fonte: Mandy Candy

Se você tem interesse e não sabe por onde começar, seguem 3 indicações: o Museu  de Memes, o projeto História no Paint e a página Artes Depressão.

Fazer memes pode ser coisa séria e estudar pode ser divertido!

 

REFERÊNCIAS:

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