Salve, salve gente amiga das Ciências!

Voltamos à França napoleônica.

Na primeira parte, analisamos as manobras e cercos preliminares, estacionando a 22 de novembro de 1805, com a chegada do tsar Alexandre I – e sua empáfia – ao Teatro de Operações.

O monarca russo e seus jovens e intrépidos amigos acreditavam que Napoleão e seus comandados estariam fadados à derrota. Uma fragorosa e homérica derrota.

“A confiança é a mãe das decepções”, diria um poeta russo…

Descrição da imagem: foto da estátua de Napoleão Bonaparte, em um parque, com folhas de árvores ao fundo.

Entre 27 de novembro e 01 de dezembro, os aliados, vindos do leste, se aproximam das posições francesas e passam a contorná-las, objetivando um ataque pela retaguarda. Contudo, posicionando seus combatentes próximos de Austerlitz e do alto do planalto local, Bonaparte se mantém muito bem informado sobre o avanço inimigo. Negociando um generoso acordo com os prussianos, começa a utilizar seus ardis:

“Como num jogo de xadrez, inicialmente Napoleão retirou suas tropas da posição de ataque dos exércitos austro-russos rumo à Viena, como se estivesse recuando do enfrentamento. Enquanto os exércitos inimigos chegavam às proximidades do platô de Pratzen, Napoleão preparava um segundo lance com o intuito de demonstrar a fraqueza das suas tropas: o envio de um emissário a Alexandre I, da Rússia, para tomar conhecimento das suas exigências”. (MONDAINI, 2008, p. 206)

Por volta das 8h do dia 02 de dezembro, sob um forte nevoeiro e sob os olhares dos imperadores Francisco I, da Áustria, e Alexandre I, da Rússia – além do próprio Bonaparte –, as colunas aliadas começaram a se deslocar para atacar o lado direito e subir em direção ao centro, formando uma tesoura que impossibilitaria Napoleão de recuar.

Contando com a informação de que esse flanco dos franceses estava vulnerável, a crença aliada era de que a batalha duraria poucas horas, afinal, suas forças somavam aproximadamente 85 mil homens, 16 mil cavaleiros e 278 canhões, e o Grande Exército francês – com cerca de 68 mil combatentes e 139 canhões – seria aniquilado.

Subestimar o inimigo é uma das grandes lições que os exércitos aprenderam (ou deveriam aprender) ao longo do tempo. Subestimar um inimigo como Bonaparte, revelar-se-ia fatal.

Ao norte, o ataque aliado foi contido pela infantaria de Napoleão e não consegue avançar. Pelo contrário, o confronto prendeu a atenção das forças aliadas, abrindo espaço para que o comandante corso, enfim, executasse sua estratégia para vencer a batalha.

Dois dias antes, secretamente, Napoleão ordenara que o marechal Davout iniciasse sua marcha para o campo de batalha. Marchando 110 quilômetros em 48h, a unidade de Davout chegou bem a tempo de fortalecer o flanco direito, surpreendendo a ofensiva aliada.

Como o grosso das forças austro-russas está concentrado nas zonas baixas do campo de batalha, Bonaparte dá a ordem simplesmente de responder aos ataques inimigos no vale, e replicar de modo suficiente para se apoderar do platô que domina esse vale.

Entre 8h30 e 11h, as divisões dos generais Saint-Hilaire e Vandamme (centro do exército) escalam as encostas dos montes Pratzen e se tornam senhores do platô: começam assim a cortar a ala esquerda dos austro-russos.

Mais ao norte, a infantaria do general Lannes e a cavalaria do general Murat (a ala esquerda da força francesa) defrontavam-se com a ala direita do inimigo: os 13 mil homens do príncipe general russo Bagration e os cavaleiros de Liechtenstein. O combate mais crítico tem lugar entre esses dois setores, entre os quais, a leste, bem perto da aldeia de Austerlitz, a guarda imperial russa garante um último traço de união entre os diferentes elementos do exército aliado.

Opõe os cavaleiros-guardas russos, comandados pelo grão-duque Constantin, aos cavaleiros da guarda imperial francesa: os granadeiros, ou “cavalos pretos”, conduzidos pelo general Ordener, uma segunda linha de granadeiros e de caçadores e, cavaleiros mamelucos comandados pelo próprio ajudante de campo de Napoleão, general Jean Rapp.

O ataque feroz dos franceses é finalmente coroado de sucesso: a luta se conclui com a dispersão dos russos, de tal modo que o centro do exército oposto a Napoleão está finalmente dividido. O “salto do leão” havia se concretizado.

As manobras posteriores se resumem ao aproveitamento do êxito e à perseguição dos dois blocos já desunidos das forças opositoras:

“Ao norte, Bragation consegue retirar-se bastante depressa e em ordem, sem ter em seu encalço os franceses – o próprio tzar Alexandre I foi autorizado por Napoleão a bater em retirada. Ao sul, as divisões francesas, apoiadas por uma parte da guarda, forçam os russos a recuar para a área do lago Satschan, cuja superfície congelada se rompe em diversos locaisos franceses, no controle do planalto, atiram balas de canhão incandescentes, derretendo o gelo. O lago não era profundo, mas o fundo era lamacento. Muitos dos que não foram abatidos pela artilharia se afogaram ao se enroscarem nos próprios equipamentos, e os que se esforçaram para atingir a margem não estavam em condições de continuar o combate”. (CAWTHORNE, 2010, p. 131)

Escalonar e posicionar tropas longe das vistas do adversário, utilizar seu melhor comandante para coordenar a composição pretensamente mais vulnerável de sua armada, aparentar desvantagem e fraqueza. Eis alguns dos “ingredientes” utilizados por Bonaparte para a sua armadilha tática.

Nílson Mello comenta, num esforço de síntese, as ações de comando de Napoleão: inicialmente, analisava as circunstâncias do campo de batalha (estudo de situação) e levantava alternativas (linhas de ação), enquanto aguardava as informações buscadas pelos meios de descoberta (reconhecimento – cavalaria ligeira); devidamente informado sobre o terreno e o inimigo (atitude, valor, dispositivo e possibilidades), tomava a iniciativa visando a surpresa.

Contra um adversário dividido em grupamentos, manobrava velozmente para impedir sua reunião; então, batia-os separadamente; se o inimigo apresentava-se com uma única massa, ameaçava suas linhas de comunicação, levando-o a combater com a frente invertida. Suas batalhas, portanto, não seguiam um esquema único; variavam segundo as circunstâncias reveladas pelo estudo de situação.

Marco Mondaini reitera que “assistida pelos imperadores da França, Áustria e Rússia, a Batalha de Austerlitz acabou por se tornar, para Napoleão, um misto de sagração imperial e apogeu do estrategista militar”. Conhecida também como a Batalha dos Três Imperadores, Austerlitz teve como armamentos básicos os fuzis adaptados com baionetas em suas pontas (infantaria), os sabres (cavalaria) e os canhões com caixa de munição do sistema desenvolvido pelo general Gribeauval, na década de 1770 — armamento que seria utilizado durante todo o período das Guerras Napoleônicas, tendo sido mantido em uso até as décadas de 1820 e 1830.

Por sua vez, Sergio Miranda informa que ao fim daquele dia, 9 mil dos 73 mil franceses foram mortos e feridos em Austerlitz, enquanto os mais de 85 mil aliados tiveram 16 mil baixas e 30 mil prisioneiros – quase um terço da força combinada se perdera. Para os austro-russos que haviam julgado obter uma vitória fácil, o desastre não teria remédio: dois dias mais tarde, o armistício é assinado. Humilhado, Alexandre I declarou: “somos crianças na mão de um gigante”.

Nos dizeres de Holmes e Pimlott (2007, p. 188), “um agradecido Napoleão disse ao seu Grande Exército: ‘Meu povo lhes agradecerá com alegria e bastará a um homem dizer: eu estive na batalha de Austerlitz para que lhe respondam: Aqui está um herói’!”. O Tratado de Pressburg, firmado após a batalha, dissolveu o milenar Sacro Império Romano-Germânico, colocou a Itália e a Baviera sob a esfera francesa e sacou dos austríacos as regiões de Tirol e a Dalmácia.

 

 

Vale a pena lembrar:  Richard Overy, historiador militar britânico, registra que Austerlitz foi a melhor batalha de Napoleão, “um atestado de sua intuição estratégica e do carismático exemplo que conseguia transmitir”. A vitória contra a Áustria permitiu que Bonaparte redesenhasse o mapa da Europa; o Sacro Império Romano-Germânico não mais existia. Inúmeros pequenos territórios austríacos perderam sua independência e foram anexados a outros estados germânicos, leais a Napoleão, formando a Confederação do Reno. A Prússia olhou para seu quintal e sentiu-se ameaçada com o poder da França sobre sua “vizinhança”. A Quarta Coalizão foi formada, e, pouco mais de um ano depois, derrotada. Nessa ocasião, Napoleão tornou-se o Senhor da Europa. 

 

Sugestão de leitura:

AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. As grandes batalhas da história. São Paulo: Larousse do Brasil, 2009.

CAWTHORNE, Nigel. As Maiores Batalhas da História: estratégias e táticas de guerra que definiram a história de países e povos. São Paulo: M.Books, 2010.

DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. Dois momentos de Napoleão: as campanhas da Áustria e da Rússia. Carlos Daróz – História Militar, 2011. Disponível em <http://darozhistoriamilitar.blogspot.com/2011/08/dois-momentos-de-napoleao-as-campanhas.html> Acesso em 04 de ago. de 2020.

DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. Le Grande Armée: O Grande Exército de Napoleão. In: Revista do IGHMB. Rio de Janeiro: IGHMB, ano 70/71, n. 98/99, 2011/2012, p. 16-50.

FERRARI, Ana Claudia (org.). Guerra: a sangrenta era das revoluções – 1750-1830. São Paulo: Duetto Editorial, 2011, v. 4.

HISTÓRIA VIVA. Grandes Temas: Napoleão. São Paulo: Duetto Editorial, v. 13, 2005.

HOLMES, Richard; PIMLOTT, John. Atlas Hutchinson de Planos de Batalhas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2007.

McNAB, Chris. Armies of the Napoleonic Wars: an illustrated history. Oxford: Osprey Publishing, 2009.

MELLO, Nílson V. de. As guerras no período napoleônico. Palestra proferida no IGHMB, em 2004. In: DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho [et al.]. Guerras: de Napoleão ao século XXI. Palhoça: UnisulVirtual, 2015.

MIRANDA, Sérgio. Francês Gigante. In: Grandes Guerras: Generais que mudaram o mundo. São Paulo: Abril, v. 36, dez. 2010.

MONDAINI, Marco. Guerras Napoleônicas. In: MAGNOLI, Demétrio (org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2008.

PARET, Peter. Construtores da Estratégia Moderna: de Maquiavel à era nuclear. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001, tomo 1.

ONÇA, Fabiano. A ascensão: de 1796 a 1812. In: Grandes Guerras: Guerras Napoleônicas – 1799-1815. São Paulo: Abril, v. 7, set. 2005.

OVERY, Richard. A história da guerra em 100 batalhas. São Paulo: Publifolha, 2015.

SANTOS, Francisco Ruas. Arte da Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1998.

YUDENITSCH, Natalia. A mais dura das batalhas. In: Grandes Guerras: Guerras Napoleônicas – 1799-1815. São Paulo: Abril, v. 7, set. 2005.