Em junho de 2025, a parte de acontecimentos internacionais como o avanço do conflito político interno nos EUA e a tensão no Oriente Médio com a escalada militar israelense, o assunto que mais se comentava no Brasil era a condenação de Leo Lins por manifestações em seu show de humor stand-up (notícia em link).
O show, denominado “Perturbador”, gravado em Curitiba e publicado no YouTube em 2022, veio em clara reação do próprio humorista após seus embates com a Justiça no Brasil e sua fama após demissão do SBT.
Para quem não se lembra, Leo Lins trabalhou no SBT junto de Danilo Gentili até 2022. Defensor de uma ideologia contrária ao “politicamente correto”, as piadas de Leo Lins sempre foram polêmicas, até o dia em que ele, afinal, fez uma piada sobre uma criança com hidrocefalia e com prejuízo à imagem do evento Teleton, principal atração beneficente do SBT, sendo então desligado da emissora.
A partir de então, Leo Lins sempre buscou radicalizar e escandalizar, fazendo chacota de condenações em processos na esfera civil e de indenizações às quais foi condenado, repetindo sempre que isso aumentou a procura por seus shows, que normalmente estavam lotados.
No encerramento de seu show “Pertubador”, que pode ser facilmente acessado no YouTube, Leo Lins fez a seguinte manifestação:
Eu acho muito injusto, e até egoísta, a dor opcional de uma pessoa servir de justificativa para impedir o sorriso de outra.
Para que possamos entender melhor isso, temos que fazer uma viagem entre diversos tópicos, envolvendo comédia, humor, comicidade e, claro, a Lei e a Moral de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro.
A Origem da Comédia
Na Grécia, dois eram os gêneros básicos do teatro, a Tragédia e a Comédia. Enquanto a Tragédia era vista como uma forma virtuosa da arte, caracterizada pela seriedade e por uma dignidade que punha, frequentemente, como foco principal a influência dos deuses na vida, no destino e na sociedade, a Comédia era tida como um tipo de arte popular, mundano, que frequentemente servia de espaço de crítica das classes baixas contra as classes detentoras do poder.
E, considerando que os gêneros gregos foram tomados como base da produção artística ocidental como um todo, acredito que esse seja um ótimo ponto de partida para analisarmos a questão.
A Comédia grega era, em grande parte, uma antítese da Tragédia porque, enquanto a Tragédia objetivava o sublime, a Comédia procurava como objeto aquilo que era desagradável. A feiura, a fraqueza e outros pontos negativos eram importantes para destacar uma possível superioridade do espectador contra o objeto da Comédia.
Existe algum nível de crítica que se pode ver do registro, ou da falta desse, por diversos pensadores na história da arte quando observamos a Comédia. Uma fonte que muito se observa é Aristóteles, que até vê méritos à Comédia em alguns trechos da Poética, mas que, também, se refere a essa como um mimesis (uma expressão da realidade) de pessoas inferiores.
Pelos pontos acima destacados, temos por evidente que a Comédia nasce do conflito, seja esse baseado em quaisquer dois grupos ou pessoas, seja por gênero, idade, tipos sociais ou sociedades. E muitos são seus gêneros, como a sátira, a ironia, a paródia, a comédia maluca (hoje bastante conhecida como nonsense), o humor negro, a escatologia, dentre outros, cada qual tentando trazer comicidade a diversas visões da realidade.
Todas as gerações tiveram seus próprios estilos de humor, que foram se adaptando com a evolução das sociedades. E não é difícil ver isso quando tomamos como base as diferenças entre as gerações do fim do Século XX e início do Século XXI, com a forma de expressão e a evolução dos memes.

Representação de estilos de humor em charges e memes, de acordo com o estilo de diferentes gerações.
Com isso em mente, precisamos entender melhor o riso e a piada, para que tenhamos uma melhor visão de onde a Comédia e o humor continuam juntos como forma de arte.
A Essência do Riso
Podemos ver no Riso diversas vertentes, diversos tons.
O Riso não está necessariamente associado à comicidade. Ele está dentro de uma grande variedade de afetações e sentimentos. Como disse Frejat na sua música “Amor para Recomeçar”, “E que você descubra que rir é bom / Mas que rir de tudo é desespero”.
O Riso é um comportamento que pode ser observado, ainda que de uma forma diferente, em animais não humanos. Mas, focando no caráter humano, vemos que ele é um comportamento que pode ser bastante involuntário, regulado pelo cérebro de cada indivíduo, ou voluntário, para atender uma função social.
O Riso, ou o Sorriso, podem ter questões de cunho psicológico, fisiológico ou social. E é bastante interessante o modo como humanos desenvolveram a comunicação da expressão facial do Sorriso de forma divergente de outros primatas, cuja expressão de alegria e felicidade está caracterizada por uma boca aberta e relaxada, enquanto algo similar a um Sorriso pode demonstrar irritação ou medo, como apontado pela Sociedade Brasileira de Primatologia.

Descritivo de divulgação da Sociedade Brasileira de Primatologia com o intuito de desincentivar a aquisição de macacos como animais de estimação.
Nos humanos, o Riso ou o Sorriso pode significar alegria, ou uma predisposição social a ser receptivo a uma conversa (como a conversa com um vendedor em uma loja), uma resignação positiva frente a uma adversidade (como no rosto de um competidor que ganha uma medalha de prata), uma reação para tentar controlar um momento de dor ou desconforto como um mecanismo de defesa, dentre tantas outras.
O Riso e o Sorriso são tão importantes para os humanos que nós nos afeiçoamos mais a animais que conseguem emular esse tipo de comportamento. Não por menos os seres humanos tendem a ter animais de estimação que possam reproduzir essas expressões, ou procurem preservar a vida e o habitat de animais selvagens que demonstrem esse tipo de estética, tal como o Quokka, que ficou famoso na internet como o animal mais feliz do mundo.
O Riso e o Sorriso têm base genética e podem ser observados em humanos pouco após o nascimento. Bebês podem sorrir e gargalhar observando e imitando as feições de seus cuidadores graças ao que é conceituado como neurônios-espelho, em algo similar ao reflexo que temos de bocejar.
Henri Bergson (1859-1941), um filósofo francês, escreveu artigos que formam compilados no livro “O Riso – ensaio sobre a significação do cômico”. Em sua análise, o Riso e a comicidade sempre precisam estar associados ao contexto social, sendo frequentemente impossível traduzir a comicidade entre diferentes grupos e sociedades.
Inclusive, é curioso apontar o registro associado aos povos originários das Ilhas Trobriand, um arquipélago próximo à costa da Nova Guiné, onde a manifestação de alegria entre humanos é interpretada como um convite para uma interação sexual.
De outra banda, Bergson analisa que o Riso prescinde de uma insensibilidade perante o seu objeto. É preciso que o sujeito que ri não detenha outra emoção sobre o alvo da risada, ou ao menos que suspenda sobre esse seus afetos, para que possa rir. Ou, como diz em um de seus textos, “basta taparmos os ouvidos ao som da música num salão de dança para que os dançarinos logo pareçam ridículos”.
Outro aspecto importante do Riso é a sua necessidade de comunicação social. O Riso, isolado de um convívio, não faz sentido a quem o ouve, da mesma forma que pessoas de mesas diferentes de um bar não riem juntas, mas cada qual isolada em seus grupos sociais. É por isso também que certas piadas são reduzidas a certos contextos culturais, incapazes de serem traduzidas, porque retidas dentro da cultura ou do idioma de um povo, ininteligível para outro.
E o Riso tanto é importante em seu contexto social, que uma pessoa que ri sozinha pode, em vários casos, ser considerada insana, já que não consegue transmitir de forma efetiva a compreensão de seu Riso.
Nisso, o que é risível é algo inerente à inteligência das pessoas, à compreensão das ideias, de forma que uma sociedade que se guiasse apenas pela inteligência pura talvez não chorasse, mas poderia, contraditoriamente, rir.
Com isso em mente, precisamos entender melhor a forma que o Riso pode nos ser proposto, essencialmente tocando na estrutura do que é uma piada.
As Formas da Piada
A Piada é uma narrativa, geralmente na forma de uma história, podendo ser inteiramente fictícia ou se utilizar de elementos da realidade, com o objetivo de fazer rir.
A estrutura de uma Piada normalmente tem posturas conflitantes. Ela pode estar num trocadilho, no duplo sentido, na divergência lógica, no absurdo ou em muitas outras formas.
Embora não exista uma previsão bem definida e estruturada, a Piada normalmente pode ser vista com uma divisão entre dois momentos, o Setup e o Punchline.
O Setup é a introdução, a explicação do contexto. Ele apresenta a situação, o cenário, os personagens e os demais elementos que precisam ser entendidos para a compreensão do que virá a ser concluído.
O Punchline, por sua vez, é o desfecho ou a reviravolta da narrativa. É uma parte engraçada que, em grande parte, quebra as expectativas que normalmente se esperaria do contexto. E, na contradição de um com o outro, o inesperado faz a questão ser risível.
Vamos pegar um exemplo aqui uma piada contada por Ary Toledo:
O jovem vai pedir a mão da filha de um milionário.
— Então, você quer se casar com minha filha? Pois bem: a minha resposta depende da sua situação econômica.
E o jovem: — Ihhh… Agora atrapalhou tudo, porque a minha situação econômica depende da sua resposta!
Aqui, o Setup está no encontro dos personagens, o jovem e o milionário. Espera-se que o jovem tente convencer o milionário de que tem condições de prover meios de sustento para a filha, com quem quer se casar, mas o Punchline chega quando o jovem deixa claro que espera que o milionário o sustente.
Pegando por exemplo piadas de um comediante mais contemporâneo, Rafinha Bastos está nos Estados Unidos da América buscando por lá uma carreira no stand-up em língua inglesa. E ele costuma se utilizar bastante do fato de ser brasileiro, e das divergências culturais entre os países, para fazer suas piadas. Vamos analisar algumas disponíveis na sua apresentação chamada Unfamiliar Territory (Território Estranho, em tradução livre), disponível no YouTube (link):
Eu sou brasileiro, então, sim… eu depilo minha vagina. Muito obrigado. Muito obrigado. É a depilação brasileira. É uma maneira muito honrosa de um país ser conhecido. A Itália é conhecida por sua comida. Japão, a tecnologia. Brasil? Vaginas lisinhas.
(…)
As pessoas não acreditam que eu sou latino porque sou muito alto. Elas estão acostumadas com latinos pequenos. Sim, tenho 1,98 cm. Normalmente não costumamos vir nesse tamanho.
(…)
Vou contar uma história para vocês. Outro dia, peguei um Uber, que era uma senhora asiática. Ela ouviu meu sotaque enquanto eu tava no telefone. Ela ficou um pouco curiosa para saber de onde eu era. Então ela perguntou: De onde você é? E eu disse: Do Brasil, sou latino. E ela disse: Não é porra nenhuma! É porra nenhuma! Então se você é latino… prova pra mim. Então eu roubei ela. Roubei ela. Roubei o dinheiro dela. Eu roubei o dinheiro dela. Estou apenas brincando. Estou brincando. Eu não roubei ela. Eu a esfaqueei. Ela está morta. Ela tá morta.
Aqui, a brincadeira está em criar situações risíveis com o preconceito e a visão do povo estadunidense perante povos latinos. Os latinos são normalmente associados a pessoas de baixa estatura e de comportamento violento, além da enorme sexualização das mulheres brasileiras. Seria de se esperar, em uma conversa racional, que o Rafinha Bastos questionasse esses preconceitos, mas é exatamente em não fazê-lo que a situação satírica se coloca, fazendo o riso.
Assim, observa-se que há uma linha tênue, através dessa situação satírica, entre o debate que questione preconceitos e aquele que apenas os reforça. E lembrando que uma das possíveis interpretações do humor e da Comédia é o enfrentamento entre o sujeito e o público, onde o público se coloca em superioridade ao sujeito da piada, evidente que trazer alguém que já é marginalizado como sujeito da piada pode apenas reforçar essa marginalização.
Assim, podemos ver como certas questões, mesmo dentro da Comédia e da Piada, podem ser passíveis de crítica.
Quando a Graça Acaba
Não é preciso voltar muito no tempo para encontrarmos piadas que hoje não teriam sentido ou lugar. E, para isso, vamos tomar alguns exemplos.
O primeiro é uma famosa curta de animação do Pernalonga (Bugs Bunny), de 1960, com o título original Horse Hare (link, no YouTube, em português). No episódio, Pernalonga é um sargento da cavalaria com a missão de defender um forte que é atacado por povos originários. Durante o episódio, Pernalonga atira contra os atacantes, enquanto canta “Um, dois, três indiozinhos…” e anota numa lousa o número de mortes, inclusive marcando um indivíduo pela metade quando diz “ah, (…) esse aqui é mestiço”.
O episódio, atualmente, não é mais divulgado pela Warner Bros., posto que, com o avanço da sociedade, fica evidente que o extermínio de povos originários e a retratação desses de forma preconceituosa, como pessoas selvagens e agressivas, não é algo que se deveria objetificar como risível.
No decorrer da história, diversas representações de Comédia ou de simples escárnio deixaram de ser adotadas. Exemplos são muitos, mas podemos citar questões como o blackface, o estilo de arte que representava imagens de pessoas pretas de forma exagerada, muitas vezes com comportamentos negativos, transloucados ou preguiçosos, ou a utilização de personagens transgênero como predadores sexuais.
Em verdade, não significa que essas pessoas não possam ser alvo de piadas. Apenas que a evolução da sociedade como um todo levou a interpretar como não aceitável a inserção de preconceitos e claras agressões, sem objetivo de gerar Comédia, mas apenas escárnio mesmo.
Nessas situações, o Riso não está em reconhecer algo como vibrante, mas para simplesmente reforçar a superioridade do contador da “piada” e público contra o sujeito. E, assim, reforçar um diálogo, uma narrativa, que possa ser aceita como independente de um julgamento moral.
É nessa mesma forma que vemos os grandes vilões da ficção em suas maléficas risadas, desde Lord Voldemort, que ri ao anunciar a morte de Harry Potter, o Imperador Palpatine, quando vê seu plano ser bem sucedido, Freddy Krueger, se divertindo quando caça suas vítimas ou, numa visão mais próxima da nossa realidade, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, imitando uma pessoa apavorada por ter contraído o Coronavírus ou morrendo por falta de ar.
Nesses momentos, está claro que o Riso ultrapassa a Piada. Ele deixa de ser uma forma de comicidade para ser apenas uma narrativa de escárnio, que reforça preconceitos e se aproveita da fragilidade do sujeito para apenas elevar o ego do narrador.
E, voltando ao Leo Lins, é o que vemos nesse exemplo de narrativa do show Perturbador:
Uma vez eu estava num evento e o garçom chegou pra mim: – Você quer um whisky com energético? Falei: – Tá maluco rapaz! Whisky pra mim tem que ser igual mulher, pura e com 12 anos.
Uma vez eu vi uma enquete na internet falando ‘o que vocês falam quando terminam de transar’. Aí eu fui lá e escrevi ‘não conta pra sua mãe que eu te dou uma boneca’.
Já me xingaram muito. Seu pedófilo, merece um tiro! Falei, cara, como é que você dá para a piada o mesmo peso que você dá para o crime. Esse dia eu fiquei mal. Um monte de gente me chamando de pedófilo… Eu só fiquei melhor no dia seguinte quando eu fui no parquinho olhar as crianças.
Sou completamente contra a pedofilia. Sou mais a favor do incesto. Se for abusar de uma criança, abusa do seu filho. Ele vai fazer o que, contar pro pai?
E, a cada pausa, uma rodada de palmas e risadas.
Entendendo o que falamos sobre Piada, e sua estrutura narrativa, essas falas sequer poderiam ser caracterizadas como tal. Não existe reviravolta ou quebra de expectativa. Não existe questionamento. O Punchline não existe pois não entrega nada que já não esteve no Setup. É uma simples afirmação de um pensamento, validando uma ideia e uma visão de mundo.
Leo Lins trouxe, em diversas falas de seu show, todo tipo de forma de reforçar preconceitos, desvalorizando vítimas de violência sexual, mulheres, mães solteiras, deficientes, idosos, trabalhadores em subemprego, pessoas pretas, dentre várias outras.
Ao contrário do que muitos possam dizer e caracterizar essas manifestações como “só uma piada”, Leo Lins deixa claro que tem consciência do dano e da dor que as narrativas que ele fomenta podem causar. Como já citado acima, é com a seguinte frase que ele finaliza sua apresentação:
Eu acho muito injusto, e até egoísta, a dor opcional de uma pessoa servir de justificativa para impedir o sorriso de outra.
Em outras palavras, a dor do sujeito da “piada”, que ele reconhece que existe, Leo Lins a classifica como “opcional”, e deixa claro que não se importa com as consequências dessa dor para quem quer que seja, desde que lhe seja garantido o direito de rir e de reforçar sua narrativa.
Então, se assim o é, caberia ao humorista reconhecer sua responsabilidade, porque se não há limites no humor, há na Lei.
Os Limites da Lei
Aqui vou pegar emprestada uma fala que considero bastante lúcida do YouTuber Alexandre Linck Vargas: humor não tem limites, mas humoristas têm limites.
O humor, como trouxemos acima, é uma abordagem amoral e até insensível, e exige um distanciamento de afetações para se fazer presente. Como fenômeno social, ele pode abordar qualquer tema, sem limites.
A fala de um humorista, de outra banda, se vincula à pessoa, e essa pessoa não pode trazer para si a mesma prerrogativa do próprio humor para se fazer isenta de suas manifestações, especialmente quando o discurso é usado como meio de adotar medidas ilegais.
A liberdade de manifestação de pensamento existe, mas ela não é irrestrita (como qualquer outro direito, diga-se). E isso vale tanto para o Brasil como para o mundo, sendo que para toda manifestação é prevista uma eventual consequência. É o que vemos quando lemos na Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
(…)
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Pelos trechos acima citados, a ligação direta entre ação e consequência é evidente, especialmente pela ordem de apresentação e exposição dos incisos do artigo 5º da Constituição Federal. Ainda que garantida a livre manifestação do pensamento, é garantido o direito de resposta e eventual indenização. Ainda que livre a expressão intelectual e artística, é inviolável a honra e a imagem das pessoas.
Em outras palavras, apenar alguém por infrações contra o direito alheio não é censura, mas sim apenas a aplicação de consequências aos atos livremente tomados pelo agente.
E, sobre censura, até mesmo o próprio Leo Lins teve seu direito garantido de poder continuar se expressando, quando, em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal cassou decisão que proibia o humorista de fazer comentários que poderiam ser considerados ofensivos (link).
A atribuição de penas e consequências jurídicas por atos ilegais não se caracteriza em censura ilegal. Isso porque, no Brasil, a censura considerada inconstitucional é a censura prévia e a proibição genérica que impede a manifestação. A cassação reativa, no entanto, é perfeitamente hábil, como meio de preservar o direito de terceiros eventualmente agredidos.
E, no caso apurado na Ação Penal nº 5003889-93.2024.4.03.6181, que tramita junto à 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, essa apurou as condutas previstas no artigo 20, parágrafos 2º e 2º-A, da Lei nº 7.716/1989, e no artigo 88, parágrafo 2º, da Lei nº 13.146/2015, que assim descrevem, respectivamente:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
(…)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 2º-A Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público.
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.Art. 88. Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência:
(…)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput deste artigo é cometido por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Convém destacar alguns trechos da sentença (cuja íntegra está disponível neste link), que trouxe as falas de Leo Lins em interrogatório e outros apontamentos:
Trata-se de denúncia apresentada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL em face de LEONARDO DE LIMA BORGES LINS, pela suposta prática dos delitos previstos no artigo 20, parágrafos 2º e 2º-A da Lei nº 7.719/89, por diversas vezes, na forma do art. 71, caput do Código Penal, assim como no artigo 88, parágrafo 2º da Lei nº 13.146/2015, por diversas vezes, na forma do artigo 71 do Código Penal, tudo em concurso material de crimes nos termos do artigo 69 do mesmo Código.
Narra que o denunciado LEONARDO DE LIMA BORGES LINS, vulgo “LÉO LINS”, teria publicado e distribuído na plataforma de streaming YouTube e em redes sociais a ele vinculadas, vídeos com conteúdo preconceituoso e discriminatório contra minorias e vulneráveis, dentre eles um vídeo contendo a gravação da apresentação do show de comédia “stand up” por ele realizado, intitulado “Léo Lins – PERTURBADOR”.
(…)
Em interrogatório, LEONARDO respondeu ser falsa a acusação, a qual reputa bem absurda. Disse estar claro que o ambiente é fictício, que se trata de um personagem no palco. Costuma dizer que ali está no ambiente adequado. As pessoas entram por livre e espontânea vontade. É um espetáculo teatral com texto, figurino, onde deixa claro o conteúdo. Tanto, que é um dos únicos comediantes que adota uma única roupa para todo espetáculo. Ao final dá uma desmontada e tem uma conversa com a plateia deixando claro a distinção do ambiente teatral. Acha que o humor alivia a dor seja ela qual for, uma piada pode aliviar a dor opcional de uma pessoa, que não pode ser justificativa para impedir o sorriso de outra. (…)
Das declarações acima nota-se a negativa do réu quanto ao elemento subjetivo do tipo, porquanto afirma não ter agido com intenção de praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito, afirmando ainda tratar-se de uma personagem, cujas falas teriam sido proferidas em um “contexto teatral”.
(…)
Com o devido respeito à profissão de comediante do réu e às pessoas que o admiram e acompanham como as testemunhas, a tese defensiva sobre o conteúdo das falar consistir em “humor” não pode ser acolhida.
Isso porque o “animus jocandi”, expressão latina que se refere à intenção de causar humor ou diversão (excludente de tipicidade do crime de injúria), é de uma época em que piadas “politicamente incorretas”, com referências a uma lista sem fim de vítimas (negros, membros da comunidade LGBTQIA+, judeus, muçulmanos, católicos, ateus, loiras, deficientes, gordos) eram admitidas/toleradas sob o fundamento da liberdade ilimitada do humor.
Ocorre que nesta era consagrada aos Direitos Humanos como uma conquista inegociável da civilização, o “animus jocandi” é recurso argumentativo dissonante da dignidade da pessoa humana (CF, art.1º, III), não podendo ser tratado como “um habeas corpus perpétuo para a prática de ofensas inconsequentes contra a honra alheia. O lugar do humor não é terra sem lei. Quando são rompidos os parâmetros de civilidade, que diferenciam a sociedade civilizada de uma alcateia, cabe ao Poder Judiciário, por natureza uma conquista e uma garantia contínua do processo civilizacional, impedir que o homem seja o lobo do próprio homem (Lupus est homo homini lupus)”, conforme consagrou o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Agravo em Recurso Especial n. 2326818- DF (2023/0087658-9), de 25/08/2023.
No mesmo julgado, a Ministra Nancy Andrighi elucida que a expressão “animus jocandi” é contemporânea da escravidão, que também já foi normalizada, tolerada e institucionalizada. Também é dessa época e desse mesmo contexto social a “horrenda, nefasta e anacrônica” tese da “legítima defesa da honra” invocada por homens que (ainda) matam mulheres e que resultou na normalização e na tolerância institucionalizada da pena de morte hoje tipificada como feminicídio, refutada em 2021 pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 779.
A sociedade chegou em um ponto de evolução de direitos em que não se pode admitir retrocessos como a prática de crimes sob pretexto de humor. As falas do réu em seu show, transcritas no tópico anterior, manifestam ideias preconceituosas e discriminatórias que não podem ser toleradas ou normalizadas sob o escudo de “humor”.
Pelo contrário. O fato de se tratar de falas proferidas em contexto de “descontração e diversão” consistem em causa de aumento para o crime previsto pela lei n. 7.16/89, justamente porque o legislador, com a reforma trazida pela Lei n. 14.532/2023 quis punir o chamado “racismo recreativo”.
A leitura de parecer apresentado ao Senado Federal durante o processo legislativo da referida lei esclarece que o humor muitas vezes consiste em “subterfugio retórico para garantir impunidade relativamente a atitudes racistas”, quando na verdade pode “expressar hierarquias raciais presentes na sociedade brasileira de modo que oportunidades sociais permaneçam nas mãos de pessoas brancas”[10].
Assim, para criminalizar com maior gravidade discriminações travestidas de “humor”, o legislador assim justificou:
“O racismo recreativo consiste em um tipo específico de opressão racial. Trata-se da circulação de imagens derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma de humor, de modo a comprometer o status cultural e o status material dos membros desses grupos. Essencialmente, o racismo recreativo não se diferencia de outros tipos de racismo, embora tenha uma característica especial: o uso do humor para expressar hostilidade racial, estratégia que permite a perpetuação do racismo, mas que protege a imagem social de pessoas brancas. (…) Para dar resposta a essa violência psicológica que causa danos à saúde mental das pessoas negras, destacadamente a baixa autoestima de crianças e jovens, propõe-se o racismo recreativo como causa de aumento dos crimes de racismo”. Grifos nossos.
(…)
De igual modo, não prospera a tese defensiva de que as falas foram proferidas em contexto de um “show de comédia stand-up”, em um espaço de teatro, tratando-se de uma personagem.
Primeiramente porque a conduta imputada ao réu nos presentes autos consiste na divulgação de seu espetáculo “Léo Lins – PERTUBARDOR (show pode ser EXCLUÍDO em breve)” FORA do ambiente do teatro, na rede mundial de computadores, cujo alcance é incontrolável. Tanto é que o vídeo contava com cerca de 3 milhões visualizações quando teve a sua exibição no YouTube suspensa em agosto de 2023 por decisão judicial.
Assim, não há falar-se em prolação de falas em “ambiente reservado, fechado, controlado”, porque não o foram, tendo sido disponibilizadas e divulgadas pelo próprio réu em seu perfil da plataforma Youtube.
Ademais, não obstante a existência de edição de texto, de figurino, de se encontrar em um palco, parece-nos claro não se tratar de personagem, mas sim da pessoa, o comediante “Léo Lins” quem ali está a proferir os discursos.
(…)
Não obstante, ainda que se trate de uma personagem e não da pessoa de LEONARDO, é certo não se excluir o crime. Tal qual dito neste mesmo tópico, o fato de se tratar de humor não configura um passe-livre para o cometimento de crimes, assim como o fato de se tratar de uma apresentação artística.
A propósito, a Lei n. 14.532/2023 introduziu duas hipóteses QUALIFICADORAS do crime previsto no artigo 20 da lei n. 7.716/89, ambas presentes no caso em tela, tais sejam: cometimento do crime a) por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza, assim como b) no contexto de atividades artísticas ou culturais destinadas ao público.
Aqui temos diversos elementos importantes que precisam ser apreciados: a vontade do agente (ou seja, a intenção de quem fala), a intenção da lei em punir e a vontade do legislador em como a lei deve ser interpretada.
No Direito Penal, a vontade do agente é algo extremamente relevante. Os tipos penais brasileiros separam de forma bastante clara os crimes tidos por dolosos, com a intenção de atingir o resultado, e os tidos por culposos, cometidos sem a intenção do agente (cometidos por negligência, imperícia ou imprudência). Há, ainda, a conceituação do dolo eventual, quando o agente, ainda que não tenha intenção direta no resultado, assume o risco potencial, como, por exemplo, é o caso de dolo eventual em alguém que comete um homicídio ao dirigir embriagado.
Cabe dizer que a vontade do agente é algo subjetivo, mas que serve de base para análise em absolutamente qualquer outro crime no Brasil. Não se pode questionar, nesse sentido, que caiba ao juiz analisar as provas para decidir se há ou não elementos que apontem para essa conclusão.
O juiz, a julgar um caso, deve seguir o teor da lei e das provas. E, com a análise das provas, deve apontar se há elementos que indiquem se a conduta do agente criminoso agiu com sua própria vontade (dolo) ou por falta de cuidado, imperícia ou negligência (culpa).
Evidente que existe algum grau de subjetividade na valoração das provas pelo juiz. Isso é intrínseco da condição humana. Mas, como dito, as conclusões devem ser lógicas, de acordo com as evidências e as determinações legais.
Tomando como exemplo um caso de morte, uma pessoa que ataca outra com emprego de arma de fogo tem elementos claros que de assume o risco de matar, e haverá penalização pelo crime de homicídio doloso (artigo 121 do Código Penal). Porém, se a agressão é feita sem uso de armas e num contexto de uma briga, onde fique claro que o agressor queria apenas ferir o agredido, e não o matar, mas o resultado se consuma, o tipo penal a ser aplicado seria o de lesão corporal seguido de morte (artigo 129, § 3º, do Código Penal).
No caso específico, temos uma curiosa dissonância entre as falas de Leo Lins. Embora ele deixe claro seu interesse em exercer um suposto direito ao seu próprio riso, que entende ser superior à “dor opcional” de terceiros, ele também se refugia na ideia de que sua manifestação estaria apenas envolta em torno de um personagem em uma apresentação teatral.
No contexto dos autos, a interpretação judicial sobre o dolo de Leo Lins ao proferir as ofensas é clara: suas manifestações estão intrinsecamente ligadas à sua opinião pessoal, e não a uma construção fictícia de personagem. Assim, não há como dissociar o conteúdo ofensivo da figura do próprio comediante.
No que toca à Lei, os crimes atribuídos a Leo Lins estão claramente tipificados, ficando claro que o uso da forma artística como contexto pode, até mesmo, ser qualificadora do crime, dada a maior possibilidade de difusão da ofensa, inclusive com o uso da internet.
Em outras palavras, a Lei que criou o tipo penal é clara, no sentido de deixar evidente que o uso de plataformas de mídia e comunicação de massas, incluindo apresentações artísticas para público, podem gerar maiores efeitos aos danos coletivos apurados nos crimes descritos.
Especificamente em relação ao uso das apresentações artísticas como meio de divulgação de mensagem, podemos ver que o interesse punitivo, no caso, não está apenas no teor da norma, mas na vontade dos legisladores de quando a norma foi editada. Para isso, devemos ler o Parecer proferido pelo relator do Projeto de Lei nº 4.566/2021 (link), o qual foi convertido na Lei nº 14.532/2023 (que alterou a Lei nº 7.716/1989, expandindo os crimes em razão de etnia), que traz os seguintes esclarecimentos:
(…) consta do Relatório da Comissão de Juristas as seguintes justificativas, com as quais concordamos integralmente:
(…)
‘Racismo no esporte e em espetáculos
A segunda proposição preocupa-se com o racismo esportivo. O Brasil e o mundo têm testemunhado cenas lamentáveis de hostilização de atletas com inferiorização expressada por palavras, cantos, gestos, remessas de objetos (como banana), etc. Não é diferente também ocorrências em espetáculos culturais, artísticos e religiosos.
Neste particular, a resposta penal apresenta pena de suspensão de direito, cuja experiência apresenta bons resultados no âmbito da legislação de trânsito e também na experiência de alguns juizados especiais criminais, inclusive aqueles instalados nos estádios, como o chamado ‘juizado do torcedor’, instituído pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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Racismo recreativo
Não escapou do trabalho a preocupação com uma forma de racismo que além de causar danos a saúde mental, humilhação e sofrimento, não raro é um subterfugio retórico para a impunidade relativamente a atitudes racistas.
O racismo recreativo consiste em um tipo específico de opressão racial. Trata-se da circulação de imagens derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma de humor, de modo a comprometer o status cultural e o status material dos membros desses grupos. Essa prática de marginalização tem o mesmo objetivo de outras formas de racismo, a saber: legitimar hierarquias raciais presentes na sociedade brasileira de modo que oportunidades sociais permaneçam nas mãos de pessoas brancas. Essencialmente, o racismo recreativo não se diferencia de outros tipos de racismo, embora tenha uma característica especial: o uso do humor para expressar hostilidade racial, estratégia que permite a perpetuação do racismo, mas que protege a imagem social de pessoas brancas.
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Para dar resposta a essa violência psicológica que causa danos à saúde mental das pessoas negras, destacadamente a baixa autoestima de crianças e jovens, propõe-se o racismo recreativo como causa de aumento dos crimes de racismo.’
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Tais propostas, conforme enfatizado pela própria Comissão de Juristas, têm o escopo de “conferir maior efetividade ao desejo constitucional de combate ao racismo pela via do direito penal” e, por esse motivo, não temos dúvida de que devem ser aprovadas.
Aqui, embora a Lei apurada faça referência restrita a crimes raciais, é importante lembrar que em agosto de 2023 (conforme link) o Supremo Tribunal Federal equiparou crimes relativos a sexualidade com questões de injúria racial.
No mais, é bom lembrar que a presença da internet e das redes sociais como meios de comunicação e divulgação de ideias é questão tornada relevante pelos legisladores. Os impactos das redes sociais ou outros meios de comunicação social para crimes contra honra cometidos contra pessoas com deficiência já haviam sido considerados no texto original da Lei nº 13.146/2015, vindo a integrar os crimes gerais contra honra no Código Penal a partir da alteração da Lei nº 13.964/2019, além de diversas outras alterações mais recentes em outros casos aplicáveis, por força de alteração legislativa ou entendimento jurisprudencial (a exemplo, o Superior Tribunal de Justiça tem matéria contendo uma relação de casos relevante, em link).
Portanto, o entendimento de aplicação da Lei do país parece claro, e não parece haver qualquer incongruência da condenação frente à conduta de Leo Lins, haja vista que ela atende a determinação legal e a vontade do legislador e observa a prova da intenção do humorista, clara na afirmação de que eventual ofensa ou fala discriminatória não poderia ser tolhida ante a “dor opcional” de terceiros.
E, por fim, cabe falar sobre o alcance da pena.
Muito se critica o fato de a condenação ter alcançado 08 (oito) anos, 03 (três) meses e 09 (nove) dias de reclusão, além de 39 (trinta e nove) dias-multa, cujo valor corresponde a 1.170 salários-mínimos vigentes à época.
Não vou me ater muito aqui a explicar dosimetria (forma de calcular) da pena em crimes no geral. Mas, em resumo: por via de regra, ao julgar casos, os juízes tomam por base a pena mínima de cada crime e, sobre esse valor, aplicam aumentos ou diminuições de acordo com certas circunstâncias, na forma prevista em Lei.
No caso específico, ambos os crimes relacionados tinham uma pena básica de 2 (dois) anos, a qual, em razão das circunstâncias em que foram cometidos, na qualificação inicial do tipo de crime, suas circunstâncias e consequências, tiveram um aumento inicial de 1/3 da pena.
Além disso, existem outras causas de aumento do crime, que, legalmente, permitiam um aumento de pena de 1/3 até a metade, considerando a disseminação da mensagem e alcance.
Some-se a isso o fato de que foram várias ofensas e crimes, cada um contra um tipo diferente de comunidade e categoria social, o que traz a figura do concurso de crimes, ou seja, quando vários crimes são cometidos num mesmo contexto. No caso, foi entendido que ocorreu a figura do Crime Continuado, previsto no artigo 71 do Código Penal, que se caracteriza pela propagação do crime no tempo, seja em sua prática ou seus efeitos, o que implicou em novo aumento de pena.
E foi pela soma dessas diversas condutas que assim ficou a condenação:
No caso do crime do artigo 20, §2º-A da Lei n. 7.716/89, consideradas ofensas proferidas no mínimo contra oito coletividades, isto é, pessoas idosas, gordas, portadores do vírus HIV, nordestinos, judeus, evangélicos, homossexuais, negros e indígenas, aumento a pena na fração intermediária de 1/3, fixando-a em 05 (cinco) anos e 13 (treze) dias de reclusão, além de 24 (vinte e quatro) dias-multa.
Já para o crime previsto no artigo 88, §2º da Lei n. 13.146/2015, consideradas ofensas proferidas contra pessoas deficientes físicas (surdos, mudos, pessoas com nanismo) e deficientes intelectuais, aumento a pena na fração de 1/5, fixando-a em 03 (três) anos, 02 (dois) meses e 12 (doze) dias de reclusão, além de 15 (quinze) dias-multa.
Somadas ambas as penas nos termos do artigo 69 do Código Penal, fica o réu condenado à pena definitiva de 08 (oito) anos, 03 (três) meses e 09 (nove) dias de reclusão, além de 39 (trinta e nove) dias- multa.
Então, apenas para encerrar o argumento, a pena total não foi contra uma única piada ou uma única fala, tomada como pior que um homicídio ou estupro. Foi a soma de diversos crimes que, somados e dentro de um determinado contexto, pelo alcance, divulgação e impacto no decorrer do tempo, atingiu a pena aplicada.
Ser contrário a essa questão, por dizer que existem crimes com maior impacto e penas mais robustas, é contrassenso. Se usarmos como comparação débitos em dinheiro, por exemplo, eu poderia argumentar que, se eu fizer diversas pequenas compras, indo todo dia comprar um eletrodoméstico numa loja, eu jamais poderia ser cobrado pelo valor total do meu débito, já que existem dívidas maiores a serem cobradas, como um financiamento imobiliário.
Em outras palavras, os crimes cometidos pelo Leo Lins, individualmente, não se compararam com crimes como estupro ou homicídio. Mas a soma de condutas gerou um “saldo negativo” suficiente para que a pena final alcançasse a pena mínima para tais tipos penais.
Considerações Finais e Opinião Pessoal
Quando éramos crianças, alguns de nós viram ou viveram o bullying. E, claro, toda vez que o valentão era pego fazendo algo errado, ele imediatamente baixava a cabeça e dizia algo como “nada a ver, é só zoeira”, para tentar justificar seus atos.
Nós sempre vivemos numa sociedade de valentões, onde esses, na verdade, sempre foram os maiores covardes, já que raramente tinham a coragem e a honradez de se responsabilizarem por seus próprios atos.
Leo Lins é um homem formado, de 42 anos de idade. O humorista trabalha com stand-up desde 2005, sendo um dos pioneiros do país na área e realizando apresentações no Brasil e em alguns outros países.
Os problemas de Leo Lins se iniciaram em 2019 após piadas contra a dançarina Thais Carla, quando então foi processado e acabou condenado ao pagamento de uma indenização. Esse evento, contudo, gerou uma forte atenção ao humorista, que viu nesse nicho de interesse uma forma de atenção, vindo a radicalizar suas falas e pensamentos.
A partir daí, Leo Lins parecia colecionar processos, e buscava incomodar o máximo que podia, se vangloriando de que isso o fazia lotar teatros e esgotar vendas de seus shows. Ele, por diversas vezes, fez manifestações públicas, na internet ou na abertura de seus shows, e usando da imagem do bullying, da loucura e de referências a si mesmo como criminoso, vestido de presidiário, com algemas e mordaças.
Sempre radicalizando, em algum momento fica claro que a linha tênue entre a expressão artística e a mera ofensa foi ultrapassada, de forma consciente e clara.
Mas, apesar disso, faltou a Leo Lins o mínimo de caráter para aceitar as consequências dos próprios atos. Ele ofende à vontade, e se refugia na inocência do “personagem teatral” quando as consequências lhe batem à porta.
Independente disso, acredito que já devemos mesmo, como sociedade, superar essa valorização dos valentões.
Claro que estamos muito longe disso quando vemos movimentos políticos que criam idolatrias em torno de personalidades cuja essência é puro escárnio e agressão, como Carla Zambeli, Pablo Marçal e Jair Messias Bolsonaro. O público apoiador dessas personalidades se regozija em se fazer representar por aqueles que ofendem, embora lhe falte a coragem dele mesmo fazê-lo. Acha lindo aqueles que invadem os prédios dos Três Poderes e defecam pelos corredores da República. Mas, em sua covardia, essas pessoas são as mesmas que reclamam de violações de direitos humanos pela qualidade das marmitas nas penitenciárias, e se dizem pais e mães de família, com bíblias nas mãos, quando são julgados pela Justiça por seus atos.
O caso de Leo Lins é emblemático, mas ao contrário do que muitos dizem, não parece ser um precedente para uma caça às bruxas.
Muito ouvi que, com essa condenação, se estaria diante de uma opressão contra a liberdade de expressão absoluta, e que críticas contra grupos sociais censuráveis seriam inviabilizadas.
Leo Lins pode ser o expoente na condenação penal, mas ele é só um dentre centenas, talvez milhares, de outros comediantes no Brasil. E não se vê uma chuva de processos contra outras pessoas.
O humor não está, em regra, a praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito. E esses temas nunca serão “proibidos”. Felizmente, esse assunto carrega um caráter subjetivo, e acompanha a evolução da sociedade. E cada excesso deverá ser apurado caso a caso, tal como hoje já acontece.
Quem sabe, em vez de nos preocuparmos em quem pode vir a ser apenado, nos preocuparmos em termos respeito pelos outros seres humanos que nos cercam, talvez, apenas talvez, esses crimes deixem até de figurar nas manchetes.
(Imagem de capa: Reprodução. AUSTIN Powers: 000, um Agente Nada Discreto (Título original Austin Powers International Man of Mistery). Direção: Jay Roach. Produção: Suzanne Todd et al. EUA: New Line Cinema, 1997.)
Fontes:
ANSEDE, Manuel. Um povo para o qual sorriso não é igual à alegria. Jornal El País. Data de publicação: 19 ago. 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/18/ciencia/1471521949_375799.html>.
BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre o significado do cômico. Editora Edipro, 2018.
FONSECA. Fausto F. A ciência do riso: como o humor e as gargalhadas afetam sua saúde. Portal VivaBem UOL. Data de publicação: 10 nov. 2023. Disponível em: <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2023/11/10/rir-e-o-melhor-remedio.htm>.


