Quando da exploração e colonização das Américas, muito se discutia sobre o papel e o lugar dos povos originários frente à sociedade, a qual era guiada pelos pensamentos e direcionamentos da Igreja Católica.

Por não serem cristãos, os povos originários da África e das Américas eram considerados como não integrantes da mesma espécie humana dos Europeus colonizadores, o que levou, até mesmo, à crença popular de que esses seriam mais assemelhados a animais não humanos, carentes de alma ou espírito, ou de categoria inferior.

A evolução do pensamento diante dessas etnias veio ao entendimento, de acordo com a bula papal Sublimis Deus (fonte), editada pelo Papa Paulo III e publicada em 1537, de que índios e outros povos “descobertos” deveriam ter respeitadas sua liberdade e bens, ainda que alheios a fé cristã, definindo, no entanto, a ordem de conversão dos povos ao cristianismo.

O que vemos na prática, até hoje, é que quem não se enquadra no paradigma social cristão dentro das sociedades ocidentais é visto como cidadão de segunda classe, apesar de serem reconhecidas a essas pessoas, ao menos, seus direitos civis.

O mesmo não se pode dizer de toda a comunidade que foge da heteronormatividade, que ainda nos tempos atuais sofre pressão religiosa sobre seus direitos civis.

 

O Direito Brasileiro e a Laicidade

O Brasil é um país tradicionalmente conservador, onde, até hoje, podemos considerar que é um Estado teísta, porém com garantias de direitos individuais e sociais e deveres da administração pública para garantir a laicidade da gestão.

É importante contextualizar que a Laicidade do Estado (e cito aqui como fonte o artigo da Maria Mello, no JOTA), como política, era, a bem da verdade, uma demanda dos próprios grupos religiosos. O conceito nasceu, como muitos outros, na Revolução Francesa, a fim de separar a influência da Igreja sobre a administração pública. Houve, ainda, forte influência da reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero, frente à perseguição e antagonismo que existia dentro das vertentes da fé cristã, o que guiou a inclusão da separação de Igreja e Estado feita pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América.

A Laicidade, portanto, como uma ferramenta de impedir que o Estado fosse guiado por uma fé específica, veio para garantir o livre exercício de qualquer religião pelos cidadãos e, consequentemente, uma distribuição homogênea dos direitos civis.

No Brasil, apenas em 1891, com a Constituição daquele período, foi introduzido o conceito de laicidade no país, sendo expresso no § 7º do artigo 72 que “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados”.

Em outras palavras, o governo deveria seguir independente de qualquer religião e não poderia, oficialmente, financiar ou incentivar qualquer religião. O mesmo conceito, com outra redação, está no inciso I do artigo 19 da nossa atual Constituição, de 1988, que proíbe “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”.

Mas o Brasil se mantém um país teísta, na medida em que, no preâmbulo da Constituição, evoca que essa é promulgada “sob a proteção de Deus”. E essas raízes religiosas se veem até hoje nas bancadas religiosas dentro do parlamento, na escolha de representantes “terrivelmente evangélicos”, como dizia o ex-presidente, e em outras posições políticas.

E é frente a isso que se estabeleceu a luta contra direitos individuais e civis dos cidadãos.

 

O Casamento Civil como Elemento de Direito Estatal

O casamento não nasceu como um direito civil regulamentado. Até porque a união de família, como sabemos, antecede, em muito, até mesmo a formação do próprio Direito formal.

A formação e o tipo de união familiar sempre foi algo variável na História, de acordo com a origem cultural e religiosa de cada povo. Casamentos políticos, arranjos de negócios familiares ou poligamia, tudo isso era considerado normal a depender da sociedade.

O matrimônio, de uma forma mais formal, foi estabelecido legalmente em Roma, na antiguidade (como fonte, sugiro ler o texto do Professor José Alves, disponível aqui, em link). À época, como apenas homens livres poderiam ser considerados sujeitos de direito, a esse eram atribuídos os direitos e deveres na formação e manutenção da família, e refletia o dever cívico de procriação e transmissão de patrimônio em herança.

A homossexualidade em Roma era presente e, desde que respeitada a liberdade dos homens livres envolvidos, não era reprimida. Porém, como visto, ela não integrava o conceito de família pelos parâmetros das normas da época.

E, em modelo similar, se seguiu as legislações no mundo todo, incluindo o Brasil que, como país de colonização portuguesa e origem latina, teve forte influência do Direito Romano na formação de seu próprio Direito.

Antes de continuar a questão, é importante verificar que o reconhecimento civil do casamento já tinha, na sua origem, a vinculação de direitos e obrigações dentre os membros da família, já reconhecendo o casamento como um contrato civil, ou seja, uma manifestação de vontade entre duas pessoas para o estabelecimento de direitos e obrigações.

O casamento civil no Brasil nasceu em 1890, por meio do Decreto nº 181 promulgado pelo Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, e que igualmente reconheceu o casamento como um contrato civil para gestão familiar e de patrimônio. Vejam o que consta dos artigos 1º e 56 do Decreto:

Art. 1º As pessoas, que pretenderem casar-se, devem habilitar-se perante o official do registro civil, exhibindo os seguintes documentos em fórma, que lhes deem fé publica:  (…)

Art. 56. São effeitos do casamento:

§ 1º Constituir familia legitima e legitimar os filhos anteriormente havidos de um dos contrahentes com o outro, salvo si um destes ao tempo do nascimento, ou da concepção dos mesmos filhos, estiver casado com outra pessoa.

§ 2º Investir o marido da representação legal da familia e da administração dos bens communs, e daquelles que, por contracto ante-nupcial, devam ser administrados por elle.

§ 3º Investir o marido do direito de fixar o domicilio da familia, de autorizar a profissão da mulher e dirigir a educação dos filhos.

§ 4º Conferir á mulher o direito de usar do nome da familia do marido e gozar das suas honras e direitos, que pela legislação brazileira se possam communicar a ella.

§ 5º Obrigar o marido a sustentar e defender a mulher e os filhos.

§ 6º Determinar os direitos e deveres reciprocos, na fórma da legislação civil, entre o marido e a mulher e entre elles e os filhos.

 

Novamente, como se vê, a questão da presença de homem e mulher de forma separada sempre seguiu a sistemática do homem como único sujeito de direitos, sendo a mulher apenas vista como dependente desse.

A lógica, portanto, nunca foi de exigir que a família tivesse um determinado alinhamento em sexualidade, mas apenas garantir a gestão, dentro da unidade familiar, do patrimônio e do papel social de seus membros perante a sociedade.

Aliás, é curioso citar, a menção separada de homem e mulher nas Constituições brasileiras, em seus respectivos gêneros, não veio antes de 1988, citada apenas no § 5º do artigo 226 ao mencionar que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. No caso, o que se reconhecia era uma igualdade de poderes entre os gêneros, e não uma excludente de viabilidade do reconhecimento do casamento em virtude de gênero ou identidade sexual.

Outro ponto relevante a citar é que, nos termos dos incisos do artigo 1.566 do Código Civil, os deveres do casamento são a fidelidade recíproca, a vida em comum, assistência, respeito e consideração mútuos, sustento, guarda e educação dos filhos. E, embora a viabilidade da prática sexual possa ser interpretada nesse contexto, o mesmo não se pode dizer de obrigação em promover a reprodução e gestação de filhos, reconhecido o direito individual das pessoas em querer ou não ter filhos.

Assim, a família é reconhecida independente da existência de prole, ou seja, do nascimento ou adoção de filhos, atendendo ainda os interesses individuais de vida conjunta das pessoas envolvidas e o objetivo social de estrutura e transmissão de patrimônio com a herança.

É bom complementar, ainda, que impotência ou infertilidade, ou outro defeito físico irremediável ou doença grave e transmissível que possam afetar os direitos e deveres do casamento, podem ser causas de anulação do casamento, na forma do inciso III do artigo 1.557 do Código Civil. Porém, tais condições somente se admitem se eram desconhecidas antes da celebração do casamento.

Já no que se refere aos direitos do casal perante a sociedade, esses são vários, mas especialmente ligados ao estabelecimento de parentesco, modificação do estado civil para “casado”, presunção de paternidade, direitos e deveres no cuidado dos filhos, direito a meação e outros direitos relativos à herança, além de reconhecimento de possibilidade de representação e cuidado do cônjuge e dos bens comuns, que podem se refletir desde a criação de contas bancárias conjuntas até no acompanhamento de internações médicas, por exemplo.

Portanto, as raízes da construção do casamento como uma instituição civil e contratual são claras e refletem a intenção dos legisladores dentro da dinâmica jurídica e social. Não há, claramente, qualquer alinhamento religioso ou excludente de sexualidade que justifique que o casamento seja restrito a heterossexuais.

Aliás, é nisso que, se baseando no artigo 5º da Constituição, tanto no seu texto inicial (caput) quanto no seu inciso I, em que se estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” que, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 (fonte), reconhecendo o direito à união homoafetiva, em contraposição à definição do artigo 1.723 do Código Civil que, ainda atualmente, delimita e reconhece “como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher”.

 

A Alteração Legislativa

A atual discussão sobre a possível alteração das leis para proibir o casamento homoafetivo, na realidade, nasceu antes mesmo do julgamento pelo STF, citado acima.

A discussão inicial veio do Projeto de Lei nº 580/2007 do então deputado Clodovil Hernandes (o mesmo Clodovil que era um homossexual conhecido como apresentador de televisão).

O referido projeto originário pretendia incluir no Código Civil, Lei nº 10.406/2002, o artigo 839-A, que garantiria a pessoas de mesmo sexo constituírem união civil por meio de um contrato, em moldes similares ao que hoje é feito na União Estável.

O referido projeto recebeu diversos apensos, que são outros projetos de Lei, que, tratando do mesmo tema, passam a ser analisados em conjunto. Nisso, foi apresentado o Projeto de Lei nº 5167/2009, de autoria dos ex-deputados Paes de Lira e Capitão Assumção. O referido projeto visa incluir um parágrafo ao artigo 1.521 do Código Civil, que trata dos impedimentos ao casamento, para mencionar que “Nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar”.

Nas justificativas para o projeto de Lei, os autores afirmam que “nenhuma sociedade subsiste, ou subsistiu, sem a célula mater denominada família. Por outro lado, todas as sociedades que foram extintas, o foram devido à perda dos valores morais e familiares”. Justificam, ainda, que seria necessário atender ao interesse dos valores cristão e os princípios bíblicos na condução do Estado brasileiro, fazendo referência a diversas disposições da Bíblia, inclusive na obrigação de gerir filhos, e finalizam dizendo que “aprovar o casamento homossexual é negar a maneira pela qual todos os homens nascem neste mundo, e, também, é atentar contra a existência da própria espécie humana”.

O referido projeto de Lei, em si, já é um absurdo jurídico de ser considerado quando analisamos a função constitucional e a laicidade do Estado, mas é ainda pior quando vemos que ele pretende, sem qualquer rodeio, impor uma única interpretação religiosa sobre os direitos civis das pessoas.

Mesmo que aprovado, um projeto como tal não representa o entendimento constitucional de igualdade de direitos a todas as pessoas, e exclui explicitamente o direito de união civil de acordo com a determinação de gênero dos cônjuges, em ofensa direta ao artigo 3º, inciso IV, da Constituição, que determina como objetivos fundamentais da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Uma Lei, tal qual se busca impor, se aprovada em votação e não vetada pelo Presidente da República, certamente seria declarada inconstitucional em qualquer análise pelo Poder Judiciário, sem que isso implique qualquer “ditadura do Judiciário”, pois seria mera interpretação do Ordenamento Jurídico brasileiro.

Veja-se bem, o Estado, ao reconhecer a união homoafetiva, o faz estritamente na esfera civil e não pretende, nem o pode, esperar que a união seja reconhecida ou validada pelos cultos e religiões. A Laicidade, aqui, é igualmente aplicável.

Os valores morais e pessoais de determinado grupo político e religioso não pode servir de argumento para tolher direitos que, na sua realidade, interferem apenas na vida das pessoas envolvidas.

O que o Projeto de Lei nº 5167/2009, recentemente aprovado pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados (fonte), busca, a bem da verdade, é prejudicar e punir homossexuais por serem quem são, impedir a esses a livre expressão de sua vida e sexualidade, impedir a esses o acesso à vida plena, à expressão de seu amor e o cuidado das pessoas que eles amam.

É, em tudo, uma leitura restritiva da Bíblia, baseada numa visão reacionária da doutrina do antigo testamento, ignorando, até mesmo, aquilo que a própria Bíblia diz que Jesus falou, em Mateus 22:36-40, lembrando que todo o ensinamento cristão poderia ser reduzido a dois pontos, amar a Deus e amar ao próximo, como a si mesmo.

E como podemos amar ao próximo, quando o que quisermos será impedir a esse o respeito à igualdade e à felicidade?


Imagem de Capa. Art by Julie Rose (LollipopPhotographyUK) on Pixabay. Perfil do(a) autor(a) disponível em <https://pixabay.com/users/lollipopphotographyuk-17043382/>. Imagem disponível em <https://pixabay.com/photos/rainbow-gay-couple-homosexual-lgbt-5385163/>.