“Poética, emocional e direta” — é assim que Justin D. Edwards descreve a escrita de Jamaica Kincaid em sua análise Understanding Jamaica Kincaid.

Realmente, Kincaid não tem papas na língua. Ela discorre sobre relações pessoais, familiares e coloniais com coragem e honestidade, sem filtros. Para leitores desavisados, uma exposição desnecessária, como quando Kincaid discorre sobre os sentimentos em relação à própria mãe, revelando uma série de mágoas, frustrações e raiva.

A escritora contemporânea escreve sobre histórias e sensações tipicamente humanas, com as quais leitoras e leitores podem se identificar facilmente, porém são coisas proibidas de serem ditas, e se encontram numa categoria escondida dentro de cada um de nós.

É mais socialmente aceitável deixar certas coisas não ditas, mesmo que sejam transparentes (o dito pelo não dito), vivendo numa encenação teatral mais polida e maquiada. Kincaid vem quebrar com isso.

Jamaica Kincaid é uma autora negra, de origem caribenha. Aos dezesseis anos ela sai de Antígua e Barbuda para trabalhar como au pair nos subúrbios de Nova Iorque. Ela revelou em uma entrevista que queria simplesmente sair de sua terra natal.

Ela queria ser outra coisa. Não que ela pretendesse ser alguém importante, mas ela só queria se livrar de algo que a estava sufocando o tempo todo. Sua vontade de se libertar e viver outras histórias, em outros mundos, já indicava que Kincaid se entregaria à Literatura mais cedo ou mais tarde. Ela já buscava a libertação: da imposição colonial, da família, do machismo, do racismo.

Atualmente ela vive nos Estados Unidos e é professora de Estudos Afro-americanos na Universidade de Harvard. Kincaid é detentora de várias premiações literárias relevantes, como o Prêmio Guggenheim de ficção (1985) e o Prêmio Literário Lannan de Ficção (1999).

Em 2021, vários especuladores colocaram o nome da autora entre possibilidades para o Nobel de Literatura. Ela ainda não foi contemplada, mas está cada vez mais cotada, mais difundida, e consequentemente, mais traduzida. Para o Português, já são três obras com tradução: Lucy (1994), A autobiografia da minha mãe (2020) e Agora veja então (2021), as duas últimas pela editora Alfaguara.

Em sua primeira publicação At the bottom of the river (1983), dez contos trazem a experiência de uma garotinha muito jovem, que está começando a se descobrir, e aborda temas como a complicada relação mãe e filha, outras relações familiares igualmente complicadas, questões de raça e de sexo, muito frequentemente numa narrativa fragmentada, bastante pós-moderna, cheia de sutilezas e camadas de entendimento.

Annie John (1985) é sobre uma garotinha caribenha, com inteligência acima da média, que acaba se distanciando de sua família e encara uma depressão posteriormente.

A Small place (1988) é uma crítica visceral aos turistas que exploram as ilhas caribenhas sem a mínima consciência da realidade do que acontece lá.

Lucy (1990) é sobre uma adolescente caribenha que vai para os Estados Unidos trabalhar como au pair. Acompanhamos toda a adaptação dela nesse novo país, e sua trajetória, em que busca se libertar desse trabalho.

The autobiography of my mother (1996) é sobre Xuela, uma garotinha que perde a mãe muito precocemente. Xuela se sente deslocada o tempo todo, dos meios, pessoas, lugares. Acompanhamos a vida dela desde a infância até a velhice.

My brother (1997) é sobre seu irmão (um de três), que é diagnosticado com HIV. Apesar da distância, tanto física quanto afetiva, entre eles, a sua irmã faz tudo que pode para ajudá-lo.

Mr Potter (2002) é inspirado no padrasto de Kincaid, que ela considerava um pai; um homem negro que passa pela invisibilidade que uma sociedade racista lhe impôs.

See now then (2013) é sobre um divórcio, de um casal que tem dois filhos, e todas as suas complicações.

Além das temáticas recorrentes à escrita kincadiana, é interessante analisar também seu estilo de escrita. Edwards afirma que Kincaid “desenvolveu um estilo distinto, combinando abstrações complexas com uma linguagem fluida e direta”.

Ele também usa os adjetivos surreal e fragmentário para se referir à autora. Sua escrita é errática, apressada, moderna, e não usa pontuação da forma convencional. Muito do que ela escreve tem ares de sonhos, de algo onírico. A autora nem sempre escreve de forma linear; fazendo voltas, retomando pontos que já pareciam encerrados, e viajando por passado, presente e futuro de forma livre. É preciso fazer uma leitura atenta de seus textos, mesmo porque muitos detalhes que aparecem de forma rápida e sutil são fundamentais para a compreensão do todo.

Seu processo de libertação começa com a troca do próprio nome. Quando Elaine Potter Richardson, nascida em Antígua e Barbuda em 25 de maio de 1949, se torna Jamaica Kincaid, ela rompe com suas raízes caribenhas, com seus laços familiares, e passa a escrever de forma muito mais livre. Antonia MacDonald Smythe afirma que a troca do nome está relacionada com a separação de sua terra natal. É por meio dessa separação que Kincaid se autoriza a falar sobre todos os pontos delicados que são característicos de sua obra.

Edwards explica melhor como Kincaid se libertou por meio da troca do seu nome, para assim “ter a liberdade que ela precisava para escrever”. No processo de escolha do nome, sua complexa formação identitária se revela. Ela se apropria do nome Jamaica, talvez a localidade mais conhecida da região do mar do Caribe, curiosamente não o seu país de origem, mas aquele que teve seu nome desvirtuado por Cristóvão Colombo. Denominada Xaymaca pelos nativos, e redesignada Jamaica por Colombo. Foi o que ele ouviu pela primeira vez, e assim ficou.

A escolha do sobrenome Kincaid se deu devido ao quão comum é esse sobrenome nos países de língua inglesa. Assim, a autora se refaz como um ser diaspórico, marcado tanto pelo seu país de origem quanto pelo seu país de moradia. Jamaica Kincaid decoloniza tudo: a terra natal, a mãe, as estruturas machistas, as estruturas racistas, o seu próprio nome. Para ela, “ser nomeado por outra pessoa é uma marca de posse e domínio”. Desse modo, nomear a si mesmo é uma afirmação poderosa de agência e libertação.

Ao passo que ela se tornava dona do seu próprio destino, ela se afastava de sua família, movimento necessário para que Kincaid pudesse escrever de forma tão intensa, sobre, por exemplo, a relação de amor e ódio entre mãe e filha, salvaguardada por sua nova identidade, a princípio anônima.

É importante mostrar que a literatura kincaidiana realmente se faz decolonial no momento em que rompe com as estruturas tradicionais de narrativas, rompendo ao mesmo tempo com as temáticas mais ou menos “aceitáveis” em nossa sociedade.

Ela é uma escritora decolonial por vários prismas. Kincaid é sinônimo de libertação. E o giro decolonial é sobre libertação: de papeis impostos, de estruturas de poder, de identidades fixas. Jamaica Kincaid teve coragem de mudar o próprio nome e se apropriar do mesmo, e assim romper com o seu lar de origem, reconstruindo sua identidade de forma autêntica e independente. Ela representa a decolonialidade geográfica, histórica, de gênero, racial, e por fim, literária.