A discussão sobre discriminação de gênero já é antiga. A preocupação geralmente se deve a fenômenos causados diretamente pelo preconceito, tais como as diferenças salariais* [1] [2]. No entanto, o descaso com o trabalho feminino aparece também de outras maneiras. Um exemplo são os relatos de mulheres que recebem cantadas de homens em lugares inadequados. Isso vai desde assédio de motoristas do Uber [3] até, acredite se quiser, “elogios” no Linkedin [4]. E se você pensa que os transtornos acabam aí, se engana.

Há muito tempo já temos indícios de que as mulheres são tratadas de forma diferente dos homens também no campo acadêmico. Além da dificuldade em atingir certos cargos nas universidades [5] [6], os casos de assédio são recorrentes nos noticiários do Brasil e do mundo [7] [8] [9]. Não é raro ouvir esse tipo de história. Também não é raro ouvir comentários despretensiosos que diminuam de alguma forma o trabalho delas. Comentários constantes fugindo da relação profissional/acadêmica e passando para assuntos pessoais, elogios, etc. Algo mais camuflado, que quase não ocorre quando estão apenas homens envolvidos nos projetos.

Figura 1. Mulheres na USP

No ano passado, mais uma pesquisa tornou explícita essa discriminação presente no campo acadêmico. Em um dos estudos mais relevantes de 2017 [10], Alice Hu combinou técnicas estatísticas e de text mining para analisar mais de 1 milhão de posts referentes a aproximadamente 131 mil tópicos no fórum EJMR (Economics Jobs Market Rumors) [11] – voltado para discussões sobre economia e oportunidades de trabalho. Sua pesquisa buscava identificar diferenças nos tratamentos entre homens e mulheres em conversas cotidianas online. O resultado provavelmente não surpreende o público feminino: quando as mulheres estão envolvidas nas discussões online, o tema acadêmico tende a ficar de lado. O que toma lugar são os assuntos pessoais. Em outras palavras, ao presenciar uma mulher na discussão, os homens se demonstram mais interessados nos atributos físicos e pessoais da pessoa do que no conteúdo profissional/acadêmico em questão.

Em uma de suas análises, a autora desenhou um modelo – utilizando as 10.000 palavras mais frequentes – para predizer o sexo com o qual o post estava relacionado. Das 10 palavras de maior poder preditivo para o sexo feminino, todas envolviam aparência física (e.g.: gostosa, atraente) ou algum conteúdo de cunho sexual (e.g.: sexo, lésbica, excitada). Para os homens, as duas primeiras palavras em evidência dizem respeito às questões sexuais (homossexual e homo). No entanto, as demais são ligadas a aspectos intelectuais positivos como “filósofo” e “motivado”. Hu conclui ainda que as discussões com mais posts relacionados ao sexo feminino apresentam menos termos acadêmicos – 43,2% a menos que posts centrados no sexo masculino.

Tabela 1. Palavras com Maior Poder Preditivo por Gênero Fonte: Hu A. W., Gender Stereotyping in Academia: Evidence from Economics Job Market Rumors Forum

Como a discriminação é algo inaceitável pela nossa sociedade, atos relacionados tendem a ser mais sutis. No entanto, no mundo virtual, onde a anonimidade é uma marca registrada, o preconceito tende a ficar mais escancarado. Tudo isso só demonstra que a igualdade de gênero ainda tem um caminho a percorrer. Prova-se também que os constantes protestos referente ao tema são consequências do problema que persiste. E não somente atos de uma “patrulha do politicamente correto”. Em suma, todas as estatísticas aqui apresentadas e o trabalho de Hu nos mostram que é preciso muito mais empenho de todas as partes para se criar ambientes verdadeiramente inclusivos e com maior respeito a todos os gêneros. Algo que inclusive traria benefício não somente para elas (ainda que isso já seja motivo suficiente para quaisquer ações), mas para nós também.

Privilege is invisible to those who have it

*Nota sobre diferença salarial: Muitos argumentam que a diferença salarial é explicada pelas escolhas de cada sexo e diferenças de comportamento . Há ao menos duas falhas nessa linha de raciocínio: (1) mesmo que a questão fosse apenas comportamentos e escolhas distintos, os estudos sobre o tema [12] [13] ainda não explicam totalmente a diferença salarial; (2) conforme explicado neste texto, existe uma grande diferença na forma em que a mulher é tratada na área profissional/acadêmica e pessoal. Toda essa diferença de tratamento influencia o comportamento das mulheres, inclusive na propensão a competir. Em sociedades mais feministas o nível de competitividade da mulher chega a ser maior que o do homem [14]. Neste caso, a desigualdade de gênero ainda seria causa da diferença salarial, ainda que indireta.

[1] https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/mulheres-ganham-menos-do-que-os-homens-em-todos-os-cargos-diz-pesquisa.ghtml

 

[2] https://www.nytimes.com/2015/03/03/upshot/fewer-women-run-big-companies-than-men-named-john.html?mcubz=2

 

[3] http://blogs.oglobo.globo.com/gente-boa/post/assedio-mulheres-motoristas-do-uber-farao-curso-para-lidar-com-cantadas.html

 

[4] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150910_mulher_assedio_tinder_linkedin_rm

 

[5] http://revistapesquisa.fapesp.br/2015/12/15/as-chances-das-mulheres-na-universidade/

 

[6] http://jornal.usp.br/universidade/ser-mulher-na-universidade/

 

[7] http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/09/luta-diaria-das-mulheres-cientistas.html

 

[8] https://www.nytimes.com/2017/12/08/nyregion/columbia-university-sexual-harassment-three-decades.html

 

[9] http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/10/25/a-sombra-do-assedio-na-integridade-da-ciencia/

 

[10] Hu A. W., Gender Stereotyping in Academia: Evidence from Economics Job Market Rumors Forum

 

[11] https://www.econjobrumors.com/

 

[12] https://mises.org.br/Article.aspx?id=2093

 

[13] https://www.fee.rs.gov.br/wp-content/uploads/2015/04/20150504relatorio-sobre-o-mercado-de-trabalho-do-rio-grande-do-sul-2001-13.pdf

 

[14] Gneezy U. & List J., The Why Axis: Hidden Motives and the Undiscovered Economics of Everyday Life, Capítulo 3