Em tempos de polarização, de diálogos e argumentos rasos, em que reforçamos nossas próprias ideias de como o mundo deveria ser nas redes sociais, que são desenhadas para que vejamos só o que queremos ver e tenhamos só amigos que pensam da mesma forma que nós, me parece um tanto enriquecedor, vez ou outra, ter uma amizade improvável, como a de um cachorro com uma tartatuga, num vídeo fofo que viraliza na Internet.

No meu caso, posso dizer que tento viver amizades improváveis, vez ou outra, desde que ambos saibam ouvir o outro lado, para assim ampliarmos nossa visão de mundo e, de quando em quando, sermos desafiados a compreender algo novo, ou ainda sermos instigados a pesquisar mais sobre um determinado assunto.

Como somos seres complexos e formamos nossa identidade compondo-a de mil pedacinhos, encaixando todos eles num gigante quebra-cabeças, fica claro que estereótipos rasos, ligados apenas a profissão que se tem, por exemplo, acabam não fazendo muito sentido. Por isso, é possível que não tenhamos nenhuma afinidade com alguém da mesma profissão e tenhamos várias afinidades com alguém de uma área completamente diferente da nossa. Assim como é possível que se tenha um amigo com quem você tem ao mesmo tempo muitas coisas em comum e também muitas diferenças. Ah, bichinho complexo demais esse ser humano viu!

Recentemente, numa roda de conversas com amizades improváveis, eu ouvi o seguinte:

– Homens são mais fortes que mulheres.

Vocês imaginem a efervescência que se iniciou dentro de mim, que estudo o movimento feminista no Mestrado, que acredito na igualdade entre os sexos, e que luto contra qualquer forma de opressão. Mas antes de me enraivecer, quis entender melhor de onde vinha aquela afirmação. Deste modo, me explicaram que, em alguns tipos de trabalho, a força física é algo fundamental para que se tenha uma boa atuação. Carteiros, coletores de lixo, policiais, operários, pedreiros; seriam alguns exemplos.

Bom, um primeiro ponto ficou claro, pelo menos. Estavam falando de força física e não de intelectualidade. E estavam falando especificamente de alguns tipos de trabalho.

Antes de contra-argumentar especificamente essa fala, gostaria de trazer aqui um panorama histórico dessa questão da força masculina versus a feminina.

Em 1851, essa era uma discussão importante na sociedade norte-americana. Cento e setenta anos atrás minha gente, é tempo para caramba! E eu tão inocente achando que minha conversa, e subsequente reflexão sobre o assunto, era algo novo.

Uma grande mulher chamada Sojouner Truth, uma mulher negra que tinha que insistir muito para se fazer ouvida, participou de uma convenção de mulheres em Akron, Ohio, nesse ano de 1851, em que o direito das mulheres ao voto estava sendo exigido pelo grupo atuante da época. Estamos falando dos primórdios do movimento feminista.

Essa convenção lutava primariamente pela abolição dos escravos, questão que, nesse grupo em específico, estava bastante esclarecida. (lembrando que a abolição só foi acontecer de fato em 1865, 14 anos depois dessa convenção em particular). Porém, com o avanço das discussões, começaram a debater também outras formas de opressão e subordinação, em especial a condição subalterna a que as mulheres haviam sido recentemente colocadas. Sim, recentemente. Anteriormente à revolução industrial, em suas vidas rurais, as mulheres tinham um papel de provedoras em suas casas. Plantavam, colhiam, faziam tudo do zero com as próprias mãos, desde alimentos até sabonetes, e tinham poder de decisão dentro de suas famílias. Foi com a revolução industrial que as coisas começaram a chegar mais prontas para as casas, e às mulheres foi dado o papel de dona de casa e mãe, e aos homens o papel de provedores. Com essa nova invenção, de que homens deviam ser os únicos provedores de um lar, foi renegado às mulheres uma porção de direitos básicos. O direito à educação, a uma profissão, o direto a ter sua voz ouvida, simplesmente. Nesse cenário, o sufrágio, ou seja, a luta pelo direito ao voto feminino, se tornou uma importante questão a ser debatida.

Voltando a Sojouner, nessa icônica convenção que acabei de mencionar para vocês, podemos dizer que ela foi muito corajosa. Os homens presentes vaiavam as mulheres, e tentavam depreciar as demandas delas. O principal argumento era de que “era ridículo que as mulheres desejassem votar, já que não podiam sequer pular uma poça ou embarcar em uma carruagem sem a ajuda de um homem”. Sim, o argumento da força física foi utilizado aqui, mesmo se tratando de uma questão que exigia capacidade intelectual, que era o voto.

Sojouner subiu ao palanque, e fez um discurso que entrou para a história, ao mesmo tempo em que mostrava seus braços musculosos para a plateia:

“Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma forma! Não sou eu uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher?”

Sojouner era uma mulher, sim, e era uma mulher forte, em todos os sentidos que a palavra forte pode ter. Essa frase, “Não sou eu uma mulher?”, deu título depois a um clássico da bell hooks, e até hoje é um mote do movimento feminista. Falando nisso, deixo como indicação de leitura, para quem se interessar, o Mulheres, raça e classe, da Angela Davis, livro de onde tirei esse panorama histórico que queria trazer aqui.

Bom, pudemos ver que há 170 anos atrás esse argumento de que homens são mais fortes que mulheres era facilmente rebatido, já que muitas mulheres como Sojourner Truth faziam trabalho braçal tal qual os homens, e a maior parte das questões trazidas por grupos que lutavam pela igualdade não tinham nenhuma relação com a força física.

No mundo atual, em que o domínio de tecnologias se faz fundamental para a maior parte das profissões, e em que a intelectualidade é muito mais valorizada que a força física, realmente podemos dizer que o argumento de que homens têm naturalmente uma compleição física mais robusta que as mulheres acaba sendo um último suspiro na tentativa de demonstrar alguma superioridade masculina.

Na verdade, como hoje quase todo mundo trabalha sentado na frente de um computador, o sedentarismo é crescente e preocupante, responsável por um estilo de vida nada saudável, em que tanto homens quanto mulheres estão, em grande parte, desprovidos de qualquer vigor físico. Seria até interessante que voltássemos a nos preocupar um pouco mais com nosso preparo físico, sem a dualidade homem/mulher, mas pensando em nosso estado de saúde, coletivamente.

Para ser mais ativo, feliz e ter mais qualidade de vida, bastam trinta minutos diários de caminhada, mas se for a sua vontade se dedicar mais intensivamente aos esportes, você pode tentar ser a melhor artilheira da história da seleção brasileira, como a Marta; você pode tentar ser a atleta mais bem paga do UFC, tanto entre os homens como entre as mulheres, como a Ronda Rousey; ou ainda você pode tentar pegar o primeiro lugar em uma prova que compreende 3,8 km de natação, 180 km de ciclismo e 42 km de corrida, como a Fernanda Keller.

Por fim, para quando você estiver em alguma conversa em que a força da mulher esteja sendo colocada em cheque, por você mesmo ou por alguma outra pessoa, eu deixo aqui uma sugestão de exercício mental: Se fosse um homem que estivesse nessa mesmíssima situação, e fosse incapaz de realizar uma determinada tarefa, qual seria a sua explicação? Como seria o seu relato do caso?