Estudar cultura alimentar é muito interessante, mas também difícil em alguns pontos. Entre as grandes dificuldades da disciplina, o que mais tem se destacado para mim é saber definir até que ponto algo “é de uma cultura” ou “é de fora”, exótico. Os indivíduos de determinados espaços geográficos usam estratégias diferentes para saber delimitar como uma característica é considerada de fora ou não, porém o “grau de pertencimento” destes símbolos varia dependendo de pessoa para pessoa.

Por meio deste texto, pretendo mostrar até que ponto estas definições são importantes para que os grupos reconheçam suas próprias características culinárias como únicas, e qual tem sido o papel da indústria alimentícia na imposição de valores gerais. Por que as pessoas se irritam ao chamarmos um biscoito de bolacha, ou vice versa? E afinal, é bolacha ou biscoito o jeito certo de falar?

Existem diversos motivos para as pessoas ficarem irritadas ao ouvirem um alimento bem adorado (provavelmente seu favorito na infância) ser chamado de outra coisa por um grupo de fora. Imagina ouvir aquela guloseima com aquele chiado (bixxcoito), ou mesmo ter o mesmo sentido de tapa na cara (bolacha). Estas pessoas exóticas ferem nossa histerese, a acomodação gradual de valores e dogmas socias que sofremos ao longo da convivência com nossa cultura [1].

A histerese antropológica tem o sentido de reforçar a manutenção das relações econômicas, de poder e produção da localidade e dos valores simbólicos. Ela é formada com base nos habitus, aquele núcleo de ideias que é central de cada cultura ou etnia em particular [2]. Este núcleo reforça as virtudes da sociedade e controla as emoções, ao mesmo tempo que usa a comida como mediadora das relações sociais.

Estes habitus podem ser criados juntamente com as memórias alimentares de cada pessoa individualmente. Para uma etnia que viveu em uma mesma localização geográfica, era comum que a oferta de alimentos fosse disponível de forma igual (ou mesmo desigual) para todas as pessoas daquela região, indicando desejos e aspirações quanto a comida que fosse única daquele consciente coletivo. Com este fenômeno, criamos os habitus daquela região, que separa o que é local do que é de fora.

Com base nestas relações, sociedades inteiras criam tabus, crenças e símbolos que são únicos daquele espaço, facilmente reconhecidos por quem é de outro grupo social. Com a comida não é diferente, onde o conjunto de habitus alimentares cria a gastronomia regional [3].

O regionalismo alimentar opera sobre diferentes maneiras na sociedade. Para sua reprodução simbólica, é necessária uma certa dose de conservadorismo e proteção dos dogmas sociais (pessoas dispostas a defender o que é “certo”), uma tipicidade (que delimita o papel de cada pessoa no grupo) e marcadores étnicos (qualquer traço que serve para agrupar as pessoas) [4]. Com tudo isto, a pessoa se sente pertencentes a um grupo de pessoas que pensam igual, aspiram coisas parecidas e se sentem “em casa”, seguros.

Desta forma, a gastronomia regional delimita qual grupo é qual, quem é o proprietário pelo espaço, quem dita as relações de poder e o ritmo de produção no espaço geográfico. A culinária e a própria comida são um totem que indica ao inconsciente pessoal quem é o responsável por sua vida e sobre quem eles devem jurar lealdade e proteção. A gente não pensa muito sobre isso quando comemos um prato típico!

Em uma relação capitalista e de globalização, pessoas saem e entram em grupos diferentes o tempo todo, gerando complexidade nos sistemas culturais e ressignificando aos poucos os ideais alimentares das localidades. Para Zygmunt Bauman [5], existem grupos sociais que são mais fáceis de ter maior permeabilidade dos novos valores culturais (mais mixofílicos) e existem aqueles que nem sequer querem pensar nessa possibilidade (mixofóbicos). Ainda mais novo, temos as redes sociais, que nos incitam a buscar receitas e ingredientes que são exóticos a alimentação do grupo que fomos criados.

Algumas destas pessoas – em situação de nova moradia – podem desenvolver a sua culinária regional no novo espaço, originando diásporas étnicas no seio da nova cultura em que estão inseridas. É normal que algumas pessoas se sintam curiosas com as novas receitas, e outras achem que é uma provocação.

 

Criado no âmbito turístico da culinária baiana, o acarajé gospel é uma dissidência alimentícia fomentada por grupos evangélicos que disputam os valores tradicionais da cultura baiana, bem como a tipicidade e as relações religiosas que o alimento sintetiza. Este exemplo de diáspora étnica gera conflitos por espaço e clientes [6].

Entre os novos agentes modernos que trazem valores e significados alimentares exóticos ao grupo, estão as empresas alimentícias transnacionais. Ao mesmo tempo que oferecem alimentos para o meio geográfico, a publicidade de marca impõe certos preceitos para pessoas direcionadas (o público-alvo) que lhes fazem sentir membros de um grupo de gente que almeja os mesmos desejos com aquele alimento. Um simples iogurte agora é uma “potente arma biológica fornecedora de pré-bióticos para a garantia da qualidade de vida”, cuja ferramenta as pessoas defenderão com unhas e dentes a utilização ao invés de outras parecidas, como bem queria o publicitário da propaganda que inventou estes valores naquele produto.

Nas inúmeras discussões de internet, é comum encontrarmos enquetes que visam a traçar nossa personalidade baseada nas nossas preferências da indústria alimentar [7]. Você gosta mais de Pepsi do que Coca-Cola? Prefere Nescau ao invés de Toddy? Para algumas pessoas na web, isso diz muito a respeito de sua personalidade. Este traço reforça o ponto de como a imagética publicitária pode fazer com que pessoas se sintam pertencentes a grupos bem específicos, a ponto de perderem o tempo “guerreando” por motivos fúteis.

A faixa etária do público-alvo também é importante para esta guerra psicológica. Crianças geralmente não tiveram experiências culturais e de vida como os adultos, sendo os sujeitos mais hipervulneráveis na defesa de valores da marca estrangeira [8].

Para sentir o status de pertencimento ao grupo específico, a pessoa preferirá abrir mão de uma alimentação saudável, levando por muitas vezes a quadros de obesidade e diabetes ainda no começo de sua vida. Este é um caso clássico dos malefícios de se perder os habitus alimentares com facilidade, em prol de discussões para uma marca ficar mais bem falada.

Porém, existem casos em que a mudança de habitus podem significar coisas boas para o meio cultural em vigência. A junção de migrantes em um meio cultural pode ser responsável pela criação de uma diáspora étnica, uma ilha de experiências, que é responsável por trazer novas pessoas para conhecer mais a respeito daqueles migrantes. O reconhecimento do potencial destas diásporas são responsáveis por um novo fluxo gastronômico exótico, trazendo vitalidade para o turismo intra-regional naquele espaço geográfico em questão.

Todo este movimento dentro daquele espaço de novas pessoas interessadas por valores exóticos cria dinheiro onde antes não se pretendia, onde o exótico agora pertence a uma nova classe de economia, chamada de economia criativa [9]. Ao mesmo tempo que a economia criativa cria valores monetários e de lazer, observa-se uma etnogênese (a criação de uma nova identidade étnica) para todos aqueles migrantes, antes excluídos socialmente. Este é um benefício da mudança de habitus alimentares em uma população!

 

Objeto estrangeiro em meio a alimentação paulista, a culinária amazonense tem oferecido novos sabores aos paulistanos e instigando a curiosidade para conhecermos um pouco mais do Brasil. A filial do restaurante Banzeiro está cada vez mais reconhecida na capital paulista [10].

Mas aí o leitor pode dizer:

 

“Ok, Lênin, consegui pegar tudo isso sobre histerese, habitus e grupos emergentes, mas como isso vai dizer o que é mais verdadeiro, bolacha ou biscoito?!”

 

Acalme-se, jovem padawan! Tudo isso é uma preparação para a resposta final…

A alimentação é formada pelos mais diferentes atos – como por exemplo os atos sociais, sexuais, políticos (tem texto aqui, aliás), simbólicos e filosóficos – mas também existe um ato não tão falado, o ato linguístico. A linguagem representa a forma como expressamos nossos símbolos, a passagem de comunicação. Por meio do ato linguístico, as pessoas expressam suas culinárias favoritas e o contexto pelo qual ela prefere aqueles elementos, indicando que ambas as partes reconhecem o que o outro fala.

A defesa da comunicação expressa a forma como defendemos a nossa cultura, as nossas memórias alimentares e todo o escopo de familiaridade que existe desde a nossa infância. Quando encontramos pessoas que escolhem ignorar a nossa comunicação em prol de outra expressão, é normal ficarmos bravos, porém não existe ninguém errado nessa situação!

Isso mesmo. Se é salgadinho, biscoito, bixxxxcoito ou bolacha não importa para as pessoas, dependendo de se a comunicação está sendo passada para os interessados no assunto. Ninguém realmente está sendo ferido nesta situação, não existem definições etimológicas capazes de explicar as mínimas diferenças entre as escolhas de palavras nos grupos, como algumas pessoas podem pensar. E, mais importante, nenhuma das culturas nesta guerra vai mudar de palavra pela imposição do outro grupo.

Algumas definições até tentam dar uma resposta definitiva, indicando a planicidade de uma bolacha em frente ao formato mais gordinho do biscoito [11]. Porém, se existe um grupo de pessoas inteiro que não adota esta definição, não precisamos aceitar estas respostas prontas como verdades absolutas.

O estudo dos significados simbólicos associados a expressão oral das diferentes etnias é conhecido como etnossemântica. Ela é baseada nos construtos figurativos, a ideia de que formamos símbolos e associações específicas com palavras que só dizem respeito ao nosso grupo integrante. Se um grupo utiliza a palavra bolacha para se referir ao biscoito, mesmo que o doce não mantenha as características de “bolacha” associados a um outro grupo, não se pode afirmar que existe palavra mais certa para o contexto cultural, pelo menos fora do ambiente formal.

O bom dos estudos culturais, é que não existem respostas absolutas o tempo todo, nem assuntos que não se podem discutir. De fato, o único tabu em Antropologia de Alimentos é achar que sabemos todas as respostas da riquíssima cultura alimentar.

E qual seria o seu lado nesta disputa cultural? Existe alguma definição que mostra que seu ponto de vista é o “verdadeiro”? Compartilhe com a gente e espalhe a mensagem para todos os interessados. Até o próximo mês!

 

Referências:

 

[1]: ALBERTIM, Marcus Bruno Pontes de. Culinária Popular e comensalidade de elite: identidade pernambucana e símbolos de distinção em Pernambuco. Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Dissertação (mestrado) ed.1, v.1, 2016, Pernambuco. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2020;

[2]: KLOTZ-SILVA, Juliana; PRADO, Shirley Donizete; SEIXAS, Cristiane Marques. A força do” hábito alimentar”: referências conceituais para o campo da Alimentação e Nutrição. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 27, p. 1065-1085, 2017. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2020;

[3]: GÂNDARA, José Manoel Gonçalves; GIMENES, M. H. S. G.; MASCARENHAS, R. G. Reflexões sobre o Turismo Gastronômico na perspectiva da sociedade dos sonhos. Segmentação do mercado turístico–estudos, produtos e perspectivas. Barueri: Manole, p. 4-27, 2009. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2020;

[4]: COSTA, Julia Dalla. Polenta: marcador étnico na reprodução da italianidade. Portal Slow Food Brasil, 14 mai. 2008. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2020;

[5]: BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Editora Zahar em Associação com National Audiovisual Institute, NInA Polônia, 2013 v.1 ed.1 82 p. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.

[6]: ALMAS, M. Mulambo das. Não existe acarajé gospel parem de querer mudar nossa tradição. Facebook, 28 nov. 2018. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2020;

[7]: VEJASP. Qual o melhor: Nescau ou Toddy? Entenda a discussão que levou o Twitter a loucura nesta quinta (29). POP! POP! POP! Cultura Pop e TV que repercute nas redes sociais. Portal VEJA São Paulo, 25 fev. 2017. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2020;

[8]: HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Controle social e regulação da publicidade infantil: O caso da comunicação mercadológica* de alimentos voltada às crianças brasileiras. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, v. 4, n. 4, 2010. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2020;

[9]: BRANDÃO, Silvia Sgroi. Noites de Feira: sociabilidade e culinária popular em Cuiabá. Revista Internacional de Folkcomunicação, v. 11, n. 22, p. 83-100, 2013. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2020;

[10]: GOMES, Luana. Bib Gourmand: Banzeiro ganha espaço no tradicional Guia Michelin. Portal A Crítica.com, 01 out. 2020. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2020;

[11]:  CARRASCO, Sueli. Biscoito ou bolacha. Portal Sabor & Saber, 2011. Disponível aqui. Acesso em 01 out 2020.