As cidades que habitamos, com seus edifícios, ruas, parques e monumentos, não repousam sobre um cenário aleatório. Elas se assentam sobre uma base milenar, formada por rochas, solos, falhas e processos geodinâmicos que atuam há milhões – por vezes bilhões – de anos. Essa base, embora muitas vezes invisível aos olhos e ignorada nos debates urbanos, é regida por uma ciência que trabalha silenciosamente por trás das paisagens construídas: a geologia urbana.
Pode parecer exagero afirmar que a geologia está em quase tudo à nossa volta, mas basta um olhar mais atento para perceber seu papel na configuração do relevo urbano, na disponibilidade de recursos hídricos, na escolha dos materiais de construção, no traçado de vias e até na dinâmica climática de determinados bairros. O substrato físico sobre o qual se ergue uma cidade não é um mero suporte: ele é um agente ativo na definição de como essa cidade cresce, se organiza e se transforma.
Antes de qualquer construção, há o terreno. E as características geotécnicas do solo e das rochas subjacentes – como composição mineralógica, textura, porosidade, permeabilidade, grau de intemperismo e resistência mecânica – são decisivas para determinar não apenas onde se pode construir, mas como.
Um solo argiloso, por exemplo, tende a apresentar alta plasticidade e baixa capacidade de drenagem, o que exige soluções de engenharia específicas, como drenagem profunda ou fundações especiais. Já áreas assentadas sobre rochas cristalinas, como gnaisses ou granitos, oferecem grande estabilidade, mas implicam alto custo de escavação e podem dificultar o assentamento de infraestruturas subterrâneas, como redes de esgoto e metrôs. Não é incomum dificuldades geológicas impactarem em larga escala a vida humana, como já comentamos no caso Maceió.
Não por acaso, os grandes empreendimentos urbanos — viadutos, túneis, metrôs, pontes e até cemitérios — requerem estudos geológicos e geotécnicos detalhados. Esses estudos compõem o que chamamos de investigação do meio físico, uma etapa fundamental no planejamento urbano responsável, que visa minimizar riscos, otimizar recursos e garantir a segurança das populações.
O relevo urbano, por sua vez, é reflexo direto da geologia urbana regional e das forças que moldaram a paisagem ao longo do tempo geológico. Processos como a erosão diferencial, a ação tectônica, o soerguimento de terrenos e o entalhamento fluvial são os grandes escultores do espaço.
Em Belo Horizonte, por exemplo, a ocupação entre colinas e vales reflete a compartimentação do embasamento cristalino do Complexo Belo Horizonte, formado por rochas antigas e estruturadas em zonas de falhas e dobras.
Já Salvador exibe um dos exemplos mais emblemáticos de como estruturas geológicas condicionam a forma urbana: a cidade se organiza em dois níveis principais — Cidade Alta e Cidade Baixa — separados por uma escarpa abrupta associada à Falha de Salvador, uma importante estrutura tectônica, que compartimenta o terreno em blocos elevados e rebaixados, e foi determinante tanto para o traçado urbano quanto para o posicionamento de vias, construções e equipamentos urbanos, além de influenciar a drenagem natural e a paisagem costeira.
Por sua vez, cidades como Recife, assentada sobre depósitos sedimentares recentes e com relevo plano e baixo, são marcadas por outra relação geológica: a proximidade com o nível do mar e a vulnerabilidade a alagamentos e mudanças no regime hídrico em função da geologia sedimentar e da ocupação antrópica desordenada.
A água, recurso essencial à vida e ao funcionamento das cidades, também está intrinsecamente ligada à geologia. Os aquíferos – sistemas subterrâneos de armazenamento e fluxo de água – se formam em rochas com boa porosidade e permeabilidade, como arenitos, calcários, rochas cristalinas – ígneas e metamórficas – muito fraturadas e basaltos vesiculares. Esses reservatórios podem abastecer bairros inteiros, desde que sua recarga, qualidade e capacidade de exploração sejam compreendidas e respeitadas. Já em regiões de embasamento cristalino pouco fraturado, como gnaisses e migmatitos, a água subterrânea tende a ser escassa ou de baixa vazão, tornando mais difícil o abastecimento local sem infraestrutura complementar, como represas, adutoras ou poços profundos com bombeamento artificial.
Outro aspecto frequentemente negligenciado é a influência da geologia – indiretamente, via relevo – sobre o clima local. A geologia esculpe montanhas, colinas e vales, que, por sua vez, condicionam os chamados microclimas urbanos. Encostas orientadas para o sol acumulam mais calor, enquanto áreas sombreadas ou em baixadas podem reter umidade e apresentar temperaturas mais amenas. Barreiras naturais alteram o regime dos ventos, influenciam a ventilação e afetam o conforto térmico. O resultado é que bairros de uma mesma cidade podem ter sensações térmicas e padrões de ventilação bastante distintos, com impactos diretos sobre a saúde, o consumo energético e a qualidade de vida.
A presença da geologia urbana se manifesta ainda nos elementos mais tangíveis da paisagem: os materiais de construção. Boa parte das casas, calçadas e edifícios são feitos de produtos extraídos diretamente da crosta terrestre. Rochas ornamentais como granito, mármore, quartzito, arenito e basaltos são lavradas em pedreiras e utilizadas tanto pela sua resistência quanto por sua beleza estética. O tradicional calçamento de paralelepípedos, comum em cidades históricas brasileiras como Ouro Preto ou Paraty, é um testemunho direto da geologia local. Mesmo os tijolos, feitos de argilas sedimentares, ou o cimento Portland, produzido a partir da calcinação de calcário, são heranças geológicas processadas pela indústria.
E quando voltamos os olhos à história das cidades, a geologia continua presente. Povos originários e colonizadores estabeleceram assentamentos em áreas com acesso fácil à água, com solos férteis ou em locais elevados, mais seguros contra inundações e ataques. Os caminhos trilhados por bandeirantes, tropeiros e migrantes muitas vezes evitavam áreas pantanosas ou de difícil travessia, preferindo rotas por terrenos mais estáveis – muitas vezes, vales fluviais escavados em rochas menos resistentes. Até mesmo tradições religiosas tem impactos geológicos.
Na atualidade, tragédias como deslizamentos em encostas urbanizadas, subsidência do solo por extração mineral ou contaminação de aquíferos por atividades antrópicas são exemplos claros do que pode ocorrer quando a geologia é ignorada. Planejar cidades sem considerar sua base geológica é como construir sobre alicerces invisíveis e frágeis.
Por isso, a interdisciplinaridade entre geologia urbana, engenharia civil, arquitetura, urbanismo, climatologia e ciências sociais não é apenas desejável; é essencial. Ela permite o desenvolvimento de cidades mais resilientes, sustentáveis e seguras, onde a ocupação humana respeita os limites naturais do território, como comentamos no nosso post sobre riscos.
A geologia não apenas sustenta fisicamente as cidades — ela as molda em sua essência. Conhecer o solo que pisamos é, antes de tudo, um ato de consciência territorial e cidadania. É reconhecer que o passado geológico da Terra continua escrevendo, silenciosamente, as páginas do nosso presente urbano.
Para saber mais:
O que é Geologia Urbana?
https://doi.org/10.13140/RG.2.2.21216.90889
Geomorfologia urbana e adaptação climática: uma revisão crítica das tendências e desafios recentes.
https://revistas.uminho.pt/index.php/physisterrae/article/view/5795/7020
The Influence of Urban Morphology on Water Scarcity
https://doi.org/10.48550/arXiv.2402.06676
Urban soils in Brazil: A review

