Tenho pensado muito em formigas… que têm me dado um certo trabalho, não na cozinha, ou no jardim, como de costume, mas no videogame Hollow Knight (Silk Song), claro.
Além do videogame, outra obra que me fez pensar muito em formigas, e admirá-las, é o romance de ficção científica “Children of Time”, de Adrian Tchaikovsky (“Herdeiros do Tempo”, na versão em Português), não quero dar spoilers, mas recomendo. Nessa obra, formigas são usadas como computadores biológicos, por conta de sua incrível utilização de sensores químicos e funcionamento coletivo.

Mas falando em trabalho, sempre falamos de formigas nesses termos: operárias, trabalhadoras, organizadas, esforçadas… E, realmente, as sociedades de formigas estão entre as mais sofisticadas da natureza. Cada colônia funciona como um organismo coletivo, no qual rainhas, operárias e machos desempenham funções diferentes, coordenadas por sinais químicos e, em muitos casos, por diferenças genéticas e epigenéticas. Diversos estudos já investigam como genes, mutações e mecanismos de regulação moldam o comportamento social.

Vamos começar entendendo a diferenciação entre as principais “castas” em uma colônia de formigas: rainhas e operárias, machos e fêmeas.
A determinação do sexo em himenópteros — que inclui formigas, abelhas e vespas —, é chamada de sistema haplodiplóide: ovos não fecundados originam machos haploides (têm apenas um conjunto de cromossomos), enquanto ovos fecundados originam fêmeas diploides (dois conjuntos).
Isso significa que o sistema de parentesco é assimétrico: irmãs compartilham em média 75% dos genes, mais do que o 50% clássico das aulas de biologia. Esse aspecto também impacta na evolução da eusocialidade: a tendência de cooperar e abdicar da reprodução em prol da colônia.
Um caso onde essa eusocialidade pode ser bem observada é com as formigas Temnothorax, frequentemente vítimas de “escravização” pela espécie Protomagnathus americanus. Essas formigas parasitas invadem colônias alheias, roubam pupas e as obrigam a trabalhar em benefício da nova rainha. E foi observado que algumas operárias de Temnothorax sequestradas desenvolvem comportamentos de sabotagem, atacando pupas da colônia captora, em especial futuras rainhas.
Mas essas operárias são estéreis e, portanto, não transmitem seus próprios genes. Qual seria então o benefício de atacar a colônia captora? A hipótese mais aceita é a da seleção de parentesco. Ao reduzir a produção de futuras invasoras, essas operárias sequestradas protegem, indiretamente, colônias parentes que poderiam ser atacadas no futuro. É um exemplo de genética moldando estratégias coletivas, onde o altruísmo ganha sentido evolutivo quando visto em escala genealógica, já que mesmo as operárias inférteis compartilham muitos genes com suas colônias mães e parentes.

Já a diferenciação entre operária e rainha não depende do material genético em si, mas de fatores ambientais e epigenéticos, especialmente da nutrição durante o desenvolvimento larval. Normalmente, larvas destinadas a se tornarem rainhas recebem mais alimento, ou alimento rico em proteínas e lipídios, o que ativa rotas de sinalização celular e expressão gênica associadas ao crescimento corporal, desenvolvimento dos ovários e longevidade. Enquanto isso, larvas alimentadas de forma restrita se tornam operárias, desenvolvendo corpos menores e sistemas reprodutivos atrofiados.
Com relação à produção de operárias e rainhas, um estudo recente observou um caso muito peculiar com as formigas “harvester ibéricas”: uma única rainha pode botar ovos de outra espécie! E depende de outra espécie para produzir operárias.
Funciona assim:
Quando a rainha A se acasala com um macho da sua própria espécie (A), os ovos fecundados dão origem a fêmeas A, que podem se tornar operárias ou rainhas, dependendo da nutrição. Os ovos não fecundados, como esperado, geram machos A.
Mas quando a rainha A se acasala com um macho da espécie B, os ovos fecundados não geram híbridos estéreis (como seria comum em cruzamentos interespecíficos). Em vez disso, dão origem a operárias B puras, como se o material genético da mãe fosse “descartado” e só o do pai fosse usado para formar o indivíduo.
Essas operárias não são híbridas, são geneticamente da espécie B. Isso é muito peculiar, é um caso documentado de androgenese, em que apenas o genoma paterno é transmitido à prole.
E o ciclo continua. Se essas operárias B forem nutridas da forma adequada, podem se desenvolver como rainhas B férteis. Essas rainhas B podem então produzir seus próprios machos haploides B a partir de ovos não fecundados, completando o ciclo reprodutivo da espécie B dentro de um ninho fundado originalmente por uma rainha A.
Em outras palavras: a rainha A garante a continuidade da sua própria linhagem pela via tradicional (machos e rainhas da espécie A), mas ao mesmo tempo “fabrica” toda a força de trabalho da colônia a partir de outra linhagem (espécie B), aproveitando o material genético de machos B. É como se a espécie A tivesse terceirizado a produção de operárias, mantendo sob seu controle a produção de novas rainhas da sua própria espécie.

Existem também espécies, como Cerapachys biroi, que não possuem rainhas, e então as operárias alternam entre fases de postura de ovos e cuidado coletivo. Curiosamente, essas mudanças não envolvem metilação do DNA, mas parecem depender de microRNAs e modificações transitórias de histonas, mostrando como a plasticidade epigenética regula o comportamento.
E algumas espécies também podem ter colônias com múltiplas rainhas. Em Solenopsis invicta, por exemplo, o gene Gp-9, que codifica uma proteína ligadora de odor, determina se a colônia será monogínica (uma rainha) ou poligínica (várias rainhas). Uma inversão cromossômica de 13 Mb, envolvendo centenas de genes, altera o comportamento das operárias e o reconhecimento químico, garantindo a manutenção do tipo social.
Em muitas espécies se observa também o polifenismo, ou seja, a produção de operárias de diferentes tamanhos e funções. Em Camponotus floridanus, por exemplo, existem operárias “grandes” e “pequenas”.
Apesar de geneticamente idênticas, suas diferenças se originam de perfis epigenéticos distintos: as grandes expressam genes ligados ao desenvolvimento muscular e defesa, enquanto as pequenas ativam genes de sinapses e comportamento exploratório. Até 18% do genoma pode estar sujeito a modificações de histonas que determinam essa diversidade, um exemplo de como a mesma sequência de DNA pode gerar múltiplos fenótipos sociais.
Além disso, em espécies com rainha, a presença ou ausência da rainha na colônia altera radicalmente tanto o comportamento quanto a expressão gênica. Em colônias sem rainha, operárias reduzem a agressividade e permitem a sobrevivência de mais larvas reprodutivas, mostrando que a regulação social é capaz de reprogramar funções biológicas em questão de dias.

E além de toda a complexa diferenciação de castas da formigas, existe também a comunicação entre elas. Formigas se comunicam através de feromônios, e existe uma complexa rede de sinais que elas são capazes de produzir e captar, permitindo comportamento coletivo e estratégico. O exemplo mais clássico é o que todos já vimos por aí: a marcação de trilha. Basta uma formiguinha exploradora encontrar um alimento, ela volta para o ninho deixando uma trilha de feromônios de rastreio, e outras formigas podem seguir a trilha. Cada formiga que passa no caminho também deixa mais marcações de feromônio, reforçando o sinal.
Feromônios são substâncias voláteis, então eles vão evaporando com o tempo, o que significa que as formigas também conseguem ter noção do tempo desde que um sinal foi deixado.
Além dos feromônios de marcação de alimento, trilha e recrutamento, outros importantes utilizados pelas formigas são: reconhecimento individual (cada formiga tem um “nome” em língua de feromônios, não é poético?), os de alarme, marcação de território, sinalização de trabalho (por exemplo formigas cortadeiras em que as formigas que cortam as folhas marcam os pedaços para que eles sejam transportados para o ninho), e claro os sexuais para encontrar os parceiros para reprodução.

