No ano de 2021, a Disney nos presentou com, a meu ver, um dos seus melhores filmes já feitos. Encanto, um filme com inspirações latino-americanas, trouxe a história de uma família disfuncional, que precisou passar por seu ponto mais baixo, onde a casa cai, literalmente, para haver algum espaço para melhoria na vida familiar com, novamente de forma literal, a reconstrução do lar, bloco por bloco.

Embora a história se passe sob o ponto de vista da protagonista, a adolescente Mirabel, ele aborda, em maior ou menor grau, o drama de todos os membros da família. É um filme que, em seus breves 102 minutos, dá personalidade e profundidade a todos os personagens do elenco, mesmo alguns dos menos relevantes, e faz o espectador ter uma excelente oportunidade para exercitar sua empatia e chance de reflexão sobre sua própria vida familiar.

[ALERTA DE SPOILERS]

Esse texto conterá uma análise sobre o filme Encanto, da Disney. Para que a análise possa ser feita de uma maneira mais justa, será necessário entrar dentro de pontos relevantes da história do filme e de seu final. Então, se você não assistiu e quer experimentar a obra sem ficar contaminado pelo meu viés, recomendo que você vá assistir ao filme, que é excelente, e depois volte aqui para ler. Obrigado!

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A história começa com o planejamento de uma celebração, o dia em que Antônio, o caçula da família, primo da protagonista, iria receber um dom mágico, uma habilidade especial e extraordinária, assim como todos os membros da família.

Todos, menos Mirabel.

Já nessa pequena cena, somos apresentados, a partir de uma divertida música, a um resumo rápido dos dramas da família.

Temos o tio Bruno, que sabemos existir, mas não está presente por algum motivo. Até mesmo falar seu nome é considerado um tabu.

Isabela, irmã de Mirabel, é endeusada pela família como uma garota perfeita, e aparenta estar claramente incomodada tanto com a falta de liberdade em se expressar como quiser como com um casamento arranjado pela avó com um rapaz da vila onde moram.

A tia Pepa tem problemas para lidar com as próprias emoções, que se refletem em seu poder de alteração do clima.

Luísa, a irmã mais velha de Mirabel, tem superforça, e é responsável por todo o trabalho pesado, não só da família como da vila inteira, sem direito a descanso ou sensibilidade.

E, tudo isso, e mais um pouco, sob os olhos rígidos da Abuela Alma, que se apresenta como uma matriarca carrancuda que exige nada menos que a absoluta perfeição dos membros da família, numa devoção absoluta aos interesses da vila onde mora, vivendo em favor de uma aparência de invencibilidade.

No meio disso tudo, está Mirabel. Ela não tem dons mágicos. Em tudo que ela faz, ela se dedica de corpo de alma para ganhar um mínimo de amor e apreço de sua Abuela, que, quando não a ignora, pede expressamente para que ela saia do caminho para não ser um fardo aos demais, os verdadeiramente escolhidos com seus dons mágicos.

A história então se desenrola quando Mirabel percebe rachaduras na casa onde mora, que corre o risco de desmoronar. Somente ela presencia a aparição das rachaduras, que somem sem vestígios logo depois. Mas aquilo de fato aconteceu, e aquela visão faz com que ela percebe os conflitos e atritos entre os membros da família, escondidos pela aparência de perfeição que a família se dedica tanto a manter por ordem da Abuela.

E, claro, quando Mirabel alerta a família e busca consertar as coisas, ela é rechaçada por todos, especialmente pela Abuela, que a culpa e a trata como uma pessoa amargurada por não ter um dom mágico.

Esse filme mexeu muito comigo em um nível pessoal. Isso porque, e sei que não estou sozinho nessa, eu convivi e ainda convivo com muitos problemas dentro da minha família.

Vindo de um lar que segue um ideal similar ao compartilhado pela Abuela, eu sempre fui incentivado a manter uma imagem pública de perfeição. Os problemas familiares deveriam ficar escondidos da porta para dentro, e não havia real interesse em um esforço compartilhado para a solução de conflitos e melhoria das pessoas. Todo desenvolvimento era de responsabilidade pessoal e toda culpa e falha era suprimida para manter a casa forte.

Eu carreguei isso comigo à minha própria família depois que me casei. E, só depois sofrer muito, percebi o quanto estava errado.

O primeiro passo para recuperar a saúde mental e social é reconhecer o problema e, a partir daí, assumir que o trabalho de recuperação vai, por vezes, ser doloroso.

Assim como se recuperar de uma fratura requer um trabalho doloroso junto ao fisioterapeuta, no qual você vai ser obrigado a trabalhar seu fortalecimento aos poucos bem onde ainda dói, para se recuperar de um problema de saúde mental é necessário o tratamento junto ao psicólogo e/ou terapeuta.

Eu falo sem vergonha que quase perdi meu casamento. Meu relacionamento com minha filha e minha esposa eram péssimos. Quando iniciamos terapia de casal, eu e minha esposa estávamos em nosso mais profundo problema, mas, ainda assim, falávamos muito pouco sobre o que nos afetava e no que buscarmos solução.

Foi dolorido, foi sofrido. Nas seções de terapia, por vezes, eram os piores momentos, em que brigávamos e nos chateávamos. Era um momento de tirar as bandagens de velhas escaras e deixar elas secarem.

Mas assim como cortes se fecham, as cicatrizes sentimentais se formaram. Com o tempo, somente frente à desconstrução daquilo que acreditávamos ser ideal, nós reconstruímos o que era nossa família, e o nosso amor.

Claro que isso só foi possível quando ambos estávamos dispostos a essa mudança. Se eu ou minha esposa tivéssemos fechado nossos olhos a isso, era mais provável ver a nossa casa ruir sobre nossas cabeças, liquidando de vez as estruturas, do que haver chance de reconstruir.

Em Encanto, é necessário que isso aconteça para a Abuela reconhecer seus erros e abrir mão da perfeição. Somente então ela reconhece o valor da imperfeição e permite o retorno de seu filho Bruno, as pessoas da vila onde moram deixam de ser meros espectadores e trabalham em conjunto, e todos, de alguma forma, têm sua vida melhorada.

E a própria Mirabel, que antes almejava apenas ser reconhecida por seus méritos, passa, ela mesma, a reconhecer sua força e importância.

Todos somos relevantes. Todos merecemos respeito, e devemos prestar respeito aos que nos cercam. Respeito, amor e carinho precisam ser cedidos antes de serem recebidos. Um relacionamento unilateral é infeliz, e devemos deixar de romantizar a estrutura da família acima da felicidade de cada um dos seus membros.

A coesão é uma consequência da saúde dos integrantes. E, isso, Encanto nos leva a perceber em cada detalhe, inclusive no final da história do filme, que deixa claro que a família ainda está cheia de defeitos. A reconstrução da casa e o retorno da magia é só o primeiro passo para uma cura completa.

E mesmo curados, imperfeições ainda existirão. E o verdadeiro amor é reconhecer essa imperfeição e amá-la, mesmo assim.