Em texto anterior busquei mostrar que, apesar de concordar com Jair Bolsonaro de que o desmatamento é cultural, a sua conclusão de que é impossível acabar essa atividade não faz sentido, pois práticas culturais sempre mudaram e mudam, sendo alvo de disputa entre forças desiguais. Porém, essa declaração do presidente faz sentido como parte de seu projeto de apoio à expansão de atividades dependentes de desmatamento em larga escala. Precisamos então entender melhor quem está desmatando e como.

Spoiler: não são os pequenos agricultores em assentamentos rurais, nem os indígenas os responsáveis pelo aumento da taxa de desmatamento na Amazônia. E por incrível que pareça, ao contrário das acusações do presidente e das imagens da nossa capa – divulgadas com exclusividade na Folha de São Paulo, risos –, nem o Leonardo DiCaprio “tacou fogo na Amazônia” (!).

Práticas diferentes e impactos desiguais

Antes de culpar o ator de Hollywood pelo nosso desmatamento, o presidente recomendou, em agosto de 2019, que fizéssemos cocô um dia sim e um dia não em nome da preservação ambiental com crescimento econômico. Frente às denúncias de aumento das taxas de desmatamento [1] e de sua relação com a agropecuária, Bolsonaro estava defendendo que precisaríamos do agronegócio – se referindo aos grandes produtores que produzem para a exportação – para alimentar uma população mundial crescente. Para ele, se alguém critica os danos ambientais do Agro-É-Pop, que coma menos e reduza as idas ao banheiro…

O sacrifício de cada um ao crescimento econômico em meme

 

Em outubro, em situação semelhante de pressão diante da comoção internacional contra a intensificação do desmatamento na Amazônia atrelada à grilagem [2] e ao esvaziamento da fiscalização ambiental, o secretário ruralista do Ministério da Agricultura Nabhan Garcia ressaltou que indígenas queimariam “para que venha o capim novo”, sendo “uma cultura deles”.

Segundo Nabhan e Bolsonaro, indígenas, agricultores familiares, grandes sojicultores e pecuaristas “honestos” teriam TODOS essa mesma Cultura inabalável: queimar para trabalhar na produção de comida, seja para consumo próprio, seja para exportação. A essa massa de “honestos”, opõe uma minoria de criminosos que estaria transgredindo a ordem natural (secas anuais) e cultural (produção de bens de consumo) do desmate.

A única solução que apresentam é o que chamam de “regularização fundiária” – vulgo, a legitimação da grilagem de terras públicas. Isto é, dar títulos de propriedade nos cerca de 25% da Amazônia que não seria nem propriedade privada, nem assentamento, unidade de conservação ou terra indígena. Como se não bastasse, defendem a redução dessas áreas protegidas e de uso coletivo para que haja mais terra apta a ser “regularizada” (privatizada).

Essa narrativa silencia sobre alguns fatos e questões, tais como:

1) A seca de 2019 foi considerada normal, o que não explicaria o aumento da taxa de desmatamento. E como o cientista Paulo Artaxo resumiu, nenhum incêndio na Amazônia é natural;

2) Se o desmatamento fosse predominantemente causado por fatores culturais no sentido de práticas visando a alimentação para o Brasil e o mundo, como explicar que 2019 apresentou o terceiro maior aumento percentual de desmatamento amazônico da história depois de 1995 e 1998? Que demanda por alimentos explicaria isso?

3) Segundo dados do IPAM e da NASA referentes ao período de janeiro a agosto de 2019, quase 25% do bioma amazônico que “não tem dono” (na concepção do atual governo federal, apesar de serem terras públicas não destinadas ou sem informação) respondeu por 40% dos desmatamentos e 30% das queimadas. Já as propriedades privadas (isto é, “regularizadas”), que ocupam 18% da área, desmataram 28% e queimaram 33%!

Se as propriedades “regularizadas” (de pessoas “honestas”) desmatam tudo isso hoje, o que vai mudar dando título de propriedade àqueles que não estavam regularizados?

Elaboração: Revista Piauí, 4 set. 2019.

 

4) Como a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha explicou ao Valor Econômico, é uma injustiça jogar no mesmo saco os indígenas ao se referir à perda de floresta, uma vez que contribuíram historicamente para sua preservação e ampliação:

Para os índios no bioma Amazônia, o uso do fogo é tradicional e importante. A agricultura tradicional é de queima e pousio […], e este descanso é que permite a recuperação da floresta. […] Fazem aceiros [faixas em que a vegetação é eliminada para prevenir a passagem do fogo] […] São roçados pequenos, de no máximo um hectare […] muita desta floresta que se imaginava virgem é antropizada [resultante da ação do homem].

5) Pesquisadores do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) demonstraram em 2016 que 72% da área desmatada em assentamentos no bioma Amazônia se dá em polígonos maiores que 10 hectares (21% são em polígonos maiores que 50 hectares), o que não condiz com o desmatamento anual dos assentados. Esses fazem uso da agricultura de corte e queima, que desmata de 1 a 3 hectares por ano (ALENCAR et al., 2016, p.13 e p.66) [3]. Isso indica:

[…] um possível processo de reconcentração ou acúmulo de lotes [grilagem] por agentes externos aos assentamentos da região (i.e. médios fazendeiros e/ou pecuaristas não registrados na lista do registro de beneficiários do Incra).

6) Segundo a mesma pesquisa do IPAM (2016), o monitoramento de desmatamento do Inpe não capta desmatamentos em polígonos menores que 6,5 hectares. Como já foi mencionado, isso é muito mais do que costuma ser retirado por ano pelos indígenas e pequenos agricultores, até porque para desmatar 1 hectare (equivalente a um campo de futebol) é necessário de 200 a 400 dólares, de acordo com o coordenador da ONG Mapbiomas Tasso Azevedo, no Podcast O Assunto.

7) Pequenos agricultores e indígenas têm que enfrentar invasores em suas terras que os ameaçam e destroem seus plantios e casas, muitas vezes através do fogo. E é através do desmatamento que invasores buscam comprovar para o governo a posse de suas invasões, como demonstram os pesquisadores Torres, Doblas e Alarcon em “Dono é quem Desmata” (2017);

8) Desde o início do ano, o governo federal tem reduzido o efetivo e os recursos da fiscalização ambiental. O que se tem visto é a recompensa aos que cometem crimes ambientais e até ameaçam servidores de agências de fiscalização. Se a solução é a titulação de propriedade, quem vai fiscalizar os futuros donos?

Ironias escatológicas

Inspirada na escatologia do cocô (e, por que não, do episódio do golden shower do carnaval de 2019), te pergunto: você já ouviu que deve fazer xixi no chuveiro pra economizar água? Pois é. Por mais que seja bacana da nossa parte economizar água em casa, já parou para pensar que isso não resolve o problema da falta d’água ou de seu desperdício?

Por um lado, só a metade dos brasileiros que tem acesso à coleta de esgoto pode se dar ao luxo de gastar 1,5 trilhão de litros de água por ano para dar 7 descargas ao dia. Por outro lado, a irrigação para fins de agricultura de larga escala gasta em torno de 32 trilhões de litros por ano, o que corresponde ao dobro do total usado para todo o abastecimento urbano do país.

Por sinal, não é aleatório que a falta de abastecimento de água e de coleta de esgoto atinja sobretudo os mais pobres e as regiões Norte e Nordeste do país. E mais, o impacto do uso da água pelo agronegócio afeta de forma mais grave a população mais pobre das periferias, sertões e fronteiras do Brasil – principalmente pessoas negras, povos indígenas, comunidades tradicionais e pequenos agricultores [4].

Essas desigualdades são bem captadas pelos conceitos de injustiça ambiental e racismo ambiental, surgidos nos Estados Unidos nos anos 1970 e 1980. De acordo com a pesquisadora Lays Silva (2012), essas noções emergiram em meio à defesa da justa distribuição dos recursos naturais, embora a primeira seja mais ampla e focada na desigualdade de classe, enquanto a segunda ressalta desigualdades impostas pelo racismo. No I Seminário Cearense contra o Racismo Ambiental, que introduziu os conceitos no Brasil, a pesquisadora Selene Herculano explicou que:

Racismo ambiental é o conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos, que aceitam a degradação ambiental e humana, com a justificativa da busca do desenvolvimento e com a naturalização implícita da inferioridade de determinados segmentos da população afetados – negros, índios, migrantes, extrativistas, pescadores, trabalhadores pobres, que sofrem os impactos negativos do crescimento económico e a quem é imputado o sacrifício em prol de um benefício para os demais.

Ironicamente, discursos escatológicos que culpabilizam excrementos individuais e desmatamentos em pequena escala, enquanto silenciam ou defendem os maiores produtores de injustiça e racismo ambientais, se dão na disputa entre escatologias de outra ordem: as apocalípticas – é isso mesmo, temos duas palavras “escatologia” no português, com origens e significados diferentes, apesar da mesma grafia e pronúncia! No Dicionário Houaiss (2009) encontramos:

1 escatologia

s.f. (1873) 1 doutrina das coisas que devem acontecer no fim do mundo 1.1 teol doutrina que trata do destino final do homem e do mundo; pode apresentar-se em discurso profético ou em contexto apocalíptico ¤ etim 1 escato– (gr. éskhatos,é,on ‘extremo, último’) + –logia

2 escatologia
s.f. (1899) tratado acerca dos excrementos; coprologia ¤ etim 2 escato– (gr. skôr,skatós ‘excremento’) + –logia

Por um lado, o círculo próximo ao presidente dissemina as palavras “protegido pelo sangue” da passagem bíblica do Apocalipse 12:11, fazendo acreditar que Bolsonaro seria o “messias-mito” enviado por Deus pra derrotar “o mal” na batalha final: ambientalistas, “comunistas”, defensores do Estado laico e qualquer um que discorde do governo. Para este grupo, a Humanidade, que deteria a Cultura, estaria predestinada a desmatar e a explorar ao máximo a água, a mata, os minérios etc., entendidos apenas como recursos naturais a serem utilizados para nosso consumo.

Inversamente, há os pessimistas para quem o próprio Bolsonaro seria a besta que sinalizaria o fim dos tempos:

Desde a facada, espalharam-se rumores de que Bolsonaro seria a besta “ferida de morte pela espada, [que] contudo sobrevivera” (Apocalipse 13:14). Se somar as letras de seu nome com o alfabeto na base 6, o resultado é 666…

Quanto aos ambientalistas e cientistas preocupados com as mudanças climáticas que ameaçam a vida na Terra como a conhecemos, um setor costuma propor soluções individuais, como o tal xixi no chuveiro. Ou até insinua que o problema diminuiria se pequenos agricultores ou indígenas reduzissem ou parassem com suas queimadas tradicionais em pequena escala – culpabilizando aqueles que, na verdade, são os mais afetados pelo problema.

Outro setor, por sua vez, entende que esse trágico fim, chamado pelo xamã Yanomami Davi Kopenawa de “queda do céu”, está sendo provocado pelo colonialismo e capitalismo. Nessa percepção, os usos do fogo e da água em pequena escala não são a causa da grande ameaça que paira sobre nossas cabeças. E para combater as verdadeiras ameaças seriam necessárias soluções estruturais para além das individuais (não necessariamente excludentes).

Como se não bastasse, tudo isso se passa em meio à contagem regressiva do apocalipse da democracia, o que torna ainda mais desafiadora a luta pelas diferentes formas de vida, para além da vida humana…

Nesse embate entre escatologias, por que não seguir os passos de quem já vem adiando a queda do céu há muitos séculos?

Ao questionar a noção de Humanidade como homogeneizadora [5] e a noção de Cultura por ser pensada como apartada do cosmos do qual fazemos parte, o líder indígena Ailton Krenak (p.28-33) indaga:

Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? […] A gente resistiu expandindo nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. […] Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte [existencial]. […] Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações […].

Contra o fatalismo, as desigualdades sociais e a homogeneização de todos em um projeto colonizador comum, quem sabe podemos seguir com a resistência da diversidade de modos de vida e a alegria de suspender o céu.

Notas

[1] O presidente na época criticava a divulgação dos dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) em julho de 2019, que mostravam aumentos mensais de 88% a 278% das taxas de desmatamento na Amazônia. Em 7 de agosto, o diretor do Inpe, o cientista Ricardo Galvão, foi exonerado.

[2] Grilagem é a ocupação ilegal de terra pública na expectativa de conseguir regularizar posteriormente. A MP 910, assinada pelo presidente Bolsonaro no dia 10 de dezembro de 2019, que ainda terá que passar pelo Congresso Nacional, aumentou drasticamente o tamanho de áreas passíveis de regularização fundiária apenas “por meio de declaração do ocupante”.

[3] Como medida de redução do desmatamento nesses territórios, o IPAM recomenda o investimento na implantação plena dos assentamentos ambientalmente diferenciados, fornecendo crédito e infraestrutura para os assentados – o que geralmente não ocorre (ALENCAR et al., 2016, p.12).

[4] Por exemplo, uma única fazenda em Correntina, na Bahia, retira mais de 37 bilhões de litros por ano de um rio para uso de irrigação, o que tem gerado falta d’água em uma região hidricamente rica. Segundo o advogado Patrick Mariano (25/11/2017), os dutos dessa fazenda captavam por dia cerca de “103 milhões de litros de água do rio, enquanto que toda a população da cidade junta capta apenas 3 milhões/dia. Ou seja, a cidade toda consome do rio apenas 2,8% do que uma fazenda”.

[5] Essa homogeneização aparece sem meias palavras no discurso de Bolsonaro em dezembro de 2018: “o índio é um ser humano igualzinho a nós. Quer o que nós queremos, e não podemos usar o índio, que ainda está em situação inferior a nós, para demarcar essa enormidade de terras […]”. Trata-se de uma falsa igualdade que busca a sujeição do Outro ao modo de vida colonizador.

Para saber mais

“O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei?”, canal do YouTube sobre mudanças climáticas.

“Manual de Sobrevivência ao Fim do Mundo”, episódio recente do SciCast (#356) sobre as várias possibilidades de catástrofe global e como lidar com isso.

“Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil”, realizado por Neepes/ENSP/Fiocruz.

“Tempero Drag”, canal do YouTube de Rita Von Hunty, com uma visão ecossocialista. Dá uma olhada nos vídeos “O canudo de plástico não é seu inimigo” e “Desenvolvimento sustentável”, tão imperdíveis! Moral da história: melhor lutar pelo fim do capitalismo do que esperar o fim do mundo.

Referências

ALENCAR, Ane et al. Desmatamento nos Assentamentos da Amazônia: Histórico, Tendências e Oportunidades. Brasília: IPAM, 2016. Disponível neste link.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Cia. das Letras, 2015. Disponível aqui.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Foi bem resenhado por Suzane Melo, do Deviante, que lembrou que os indígenas Krenak foram um dos mais afetados pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG), em 2015.

SILVA, Lays Helena Paes e. Ambiente e justiça: sobre a utilidade do conceito de racismo ambiental no contexto brasileiro. E-cadernos CES, v. 17, 2012. Disponível aqui, com a referida citação de Selene Herculano.

TORRES, Maurício; DOBLAS, Juan; ALARCON, Daniela Fernandes. Dono é quem desmata. Conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. São Paulo, Urutu-branco; Altamira, Instituto Agronômico da Amazônia, 2017. Disponível aqui.