As jornadas de Junho de 2013: ferida aberta ou tatuagem?

Tudo começou, há um tempo atrás, na Ilha do Sol…

…quando milhões de brasileiros e brasileiras tomaram as ruas reivindicando, inicialmente, melhorias na mobilidade urbana e exigindo o direito à cidade. É neste período, junho de 2013, que alguns cientistas sociais consensuaram como o início da “repolitização do cotidiano” no Brasil. Sim, podemos notar essa politização com uma simples checada nas redes sociais, revistas pregadas nas bancas de jornais, um pit-stop no bar da esquina, ou um simples almoço na casa da família ou dos amigos: o assunto política embrenhou-se em todos os espaços de convívio e sociabilidade dos brasileiros.

Conversar sobre política é o novo conversar sobre futebol porque, por um lado, é assunto comum à maioria dos brasileiros e, por outro, trouxe a rivalidade (ou a polarização) típica do esporte. Vale lembrar que há pouquíssimos anos atrás era corriqueiro ouvirmos o ditado “política e religião não se discutem”.

Esse ditado servia basicamente como uma dupla advertência para o falante: “A crença na política é próxima à crença religiosa, ou seja, cada um tem a sua” e “- Sai com seu assunto chato para lá”. Agora se discute política sim e, não raro, associada a algum argumento religioso. Glória a Deux!  É surpreendente lembrar como cinco anos atrás, o assunto política era escanteado ou apenas lembrado de dois em dois anos quando as eleições ocorriam.

Para resumir em uma frase, a “repolitização do cotidiano” no Brasil foi a incorporação do assunto política na vida e no cotidiano de milhões de brasileiros e brasileiras de diferentes faixas etárias, locais de moradia, crenças religiosas, raça/cor e etnia, gêneros e classes sociais. Dito isso, é importante vermos em profundidade, como essa politização ocorreu.

Aliás, politização não. REpolitização.

Diz-se que houve uma “repolitização” porque tivemos vários precedentes, alguns mais recentes, outros mais longínquos, de politizações do cotidiano. Lembremos apenas de dois exemplos: os protestos em favor da redemocratização, reconhecido pelo nome de Diretas Já! e o movimento dos Caras Pintadas, que pediu pelo Impeachment do então presidente Fernando Collor de Melo. Ou seja, falar sobre política, no trabalho, com amigos, com a família, no boteco, na academia não é algo realmente novo. Entretanto, há uma especificidade na politização recente: sua magnitude e longevidade. Mas o que aconteceu em junho de 2013?

Não há exatamente um consenso de quando e aonde as manifestações começaram[1]. Os primeiros protestos contavam com poucos ativistas, algo em torno de cem pessoas, e ocorreram em apenas algumas capitais como Belém, São Paulo e Rio de Janeiro e as temáticas centrais eram o Direito à cidade e a mobilidade urbana. Não à toa, as palavras de ordem nesse momento circundavam a questão do “Vem pra Rua, contra o aumento” da passagem de ônibus. Se, inicialmente, a adesão das pessoas estava em torno do transporte urbano, outras pautas foram, devagarinho, sendo incorporadas.

Entretanto, foi o polêmico (para dizer o mínimo) discurso do comentarista Arnaldo Jabor, no dia 13 de junho de 2013, no qual afirmou que a classe média não valia 20 centavos, que concretou de vez a relação entre os protestos e as pautas sobre direitos sociais. “Não é só por 20 centavos”, “é pelo fim da violência policial”, “Copa pra quem?”, “Não é Egito. Não é a Grécia. É o Brasil saindo da inércia”, “Enfia 20 centavos no SUS”, foram algumas das palavras de ordem. E sobretudo, “Não é por centavos, é por direitos”.

Os dias se passaram e as manifestações cresceram exponencialmente. No Rio de Janeiro, cidade em que resido, de cerca de cem manifestantes na primeira semana de junho, passaram a integrar os atos mil, em 10 de junho, 10 mil no dia 13 de junho, 100 mil pessoas no dia 17 de junho e, em 20 de junho, mais de 1 milhão de pessoas se reuniram carregando cartazes com pautas diversas. Entre eles, “era um país muito engraçado, não tinha escola, só tinha estádio”, “Quando seu filho ficar doente, leve ao estádio”, “Saúde e educação de qualidade para todos”, “A PM que bate aqui é o PM que mata na favela”, etc. Vale dizer que, exatamente na medida em que as manifestações se espalharam para outras cidades e adquiriram pautas para além da mobilidade urbana, a repressão aos protestos também se intensificaram.

Se sobre a pauta da mobilidade urbana se irromperam algumas outras pautas com o mesmo teor, digamos, progressista, por outro lado, foi neste mesmo período que começou-se a notar o crescimento de alas que clamavam pelo anti-partidarismo durante as manifestações. Foi neste momento em que bandeiras de partidos foram queimadas e militantes agredidos: “Fora, todos os partidos”, “Meu partido é meu país” constavam entre os cartazes.

Foi a partir das primeiras manifestações que alguns cientistas sociais afirmaram ocorrer o início da repolitização do cotidiano no Brasil. Em outras palavras, no coração ficou, além de lembrança de nós dois, a necessidade de saber mais sobre a política em geral e sobre os políticos em particular. Sobre o funcionamento do Estado e suas instituições, as diferentes leis e programas sociais em voga, etc.

A demanda por informação sobre política explica, em parte, o crescimento (da oferta) de pessoas, muitas delas bem intencionadas (outras nem tanto) que tentavam explicar como a democracia no Brasil funcionava e funciona. O ponto fundamental é: pessoas que se destacaram na militância durante os protestos acabaram tendo mais visibilidade e passaram a produzir informação. E muita desinformação também, afinal, o tema é complexo. Contudo, estávamos ávidos por qualquer um que explicasse de forma simples e rápida a complexidade da política no Brasil. E principalmente, tínhamos que ter a posse  de um discurso ou argumento que fizesse um pouco de sentido lógico e pudesse ser facilmente repetido. E por que? Porque tínhamos que dominar o assunto sobre o qual todo mundo estava falando no momento, ora bolas. Ser visto como despolitizado nesse momento era ser visto como uma pessoa que não gostava de futebol em plena copa de 98. Um desmiolado, portanto.

Contudo, essa informação (veloz e de fácil assimilação) não precisava se fundamentar em fatos, dados ou na veracidade. Bastava ela se fundamentar na legitimidade (porque o sujeito era reconhecido dos protestos, ou porque era figurinha carimbada da televisão, ou mesmo porque falava de modo simples, etc.) do orador para a informação ganhar repercussão com estatuto de opinião oferecida por especialista.

Ô Política! Mil e uma noites de conversas sobre você. Entre amigos, na família, na praia, no trabalho, no círculo de vizinhança, no farol apagado, nos bares, entre desconhecidos, no moinho abandonado, e nem sempre em grande alto astral. Afinal, a política em modo simples é a identificação do lado certo e a execração do lado errado. É a luta do bem contra o mal. É a identificação do grande inimigo. É, no fim, a eliminação do inimigo.

A política em modo complexo é a compreensão de que somos diferentes, temos valores morais e éticos diferentes, visões de mundo diferentes, mas que podemos equalizá-los e/ou encontrar uma intersecção, seja por meio do afeto e ou da razão, da conversa ou do debate, que nos permita ter uma sociedade justa, igualitária, livre e pacífica.

Eu e você. Na Ilha do sol.

 

[Disclaimer] Este pequeno textão faz parte de um conjunto de textos que desenvolverei e cujo objetivo central será compreender essa “repolitização”. Ou seja, mapear os principais personagens da trama, circular suas causas, entender suas consequências, a fim de, no final, oferecer alguma consideração mais ou menos embasada. Confesso que não tenho respostas de antemão. Portanto, conto muito com a ajuda de vocês, seja por comentário na página do Deviante, ou no perfil do Deviante nas redes sociais. As críticas, sugestões e/ou histórias serão muito bem vindas e incorporadas, em menor ou maior grau, na análise. Nos vemos em breve!  

 

[1] Jornadas de Junho: Explorando os sentidos da Indignação social no Brasil. https://revistas.ufrj.br/index.php/enfoques/article/view/12606/8807