Bola e sua argumentação: ‘papel aceita até m****”…

Dizer que ele é meu amigo seria um exagero; no máximo é um conhecido, tanto que sequer seu nome eu sei, apenas o conheço pelo apelido: Bola.

Bola é um sujeito que divide comigo um grupo de WhatsApp daqueles criados para trocar piadas e discutir futebol, mas que, como quase tudo neste país nos últimos tempos, tem se polarizado significativamente nestes tempos sombrios, e assim temos constamente nos enfrentados no ring das ideias, já que ele é um dos membros da chamada ‘nova direita’ e eu, apesar de não ter uma posição política definida, sou assumidamente um defensor do método científico.

“Mas peraí”, talvez pense o leitor desavisado, “você está opondo uma ideia politica a uma ideia sistemática, está confundindo maçãs com laranjas!” Ledo engano, querido leitor, concordo com você que isso deveriam ser maçãs e laranjas, mas nos últimos tempos está instalada no Brasil(1) a ‘maçanja’, ou seja, a mistura de política(2) com a ‘crença’(3) científica.

Efeitos adversos x eficácia

Há alguns meses, por exemplo, Bola defendia fervorosamente o uso da Cloroquina como uma verdadeira panaceia contra o novo Coronavírus (SARS-CoV-2). Quando confrontado com artigos científicos, respondeu simplesmente: “papel aceita até m****”; e seguiu defendendo abertamente o uso da substância sem qualquer comprovação científica de que esta tivesse alguma eficiência contra a doença e com várias evidências de que ela poderia piorar o quadro já que os efeitos adversos(4) podem ser graves.

Mas não adiantou falar ou mostrar isso para ele; “é melhor ter uma esperança do que não ter nada”, ainda disse ele apelando para a falácia do apelo emocional, mas não adiantaria dizer para ele que Nietzsche condenaria esta lógica canhestra (5). Assim tentei argumentar que a esperança era válida, mas que deveria ser concretizada apenas após mais testes para comprovar a eficácia do remédio contra a doença e com mais estudos sérios contrapondo os benefícios da substância x seus malefícios.

Para exemplificar extrapolando, urânio vai acabar com quaisquer bactérias que estiverem causando problemas em seu organismo, mas acabará também com seu organismo…

De centímetros a quilômetros

Mais recentemente Bola tem defendido a abolição das máscaras. Para isso, repetindo a frase de um ‘filósofo’ brasileiro cujo nome não citarei, ele afirmou que, se gases intestinais conseguem passar pelos buracos de uma máscara, então um vírus também consegue. Novamente comecei da maneira errada… comecei mostrando-lhe os inúmeros artigos mostrando que, sim, o uso de máscaras reduz consideravelmente o contágio.

Mas ele prosseguiu em sua arenga de gases x vírus. Assim tive que confrontá-lo com a ideia de que os gases que dão maus cheiros aos puns – metanotiol (CH4S), sulfureto de dimetilo ((CH3)2S) e sulfureto de hidrogênio (H2S) – são compostos por poucos átomos, o maior deles com apenas 9, enquanto um vírus são formados por milhões deles, ou milhares de moléculas se você preferir; enquanto moléculas são medidas em angstrons (1-10 ou 0,0000000001 metro), vírus são medidos em micrômetros (1-6 ou 0,000001 metro). Em resumo para quem não está habituado a notação científica, se ampliássemos vírus e gases na ordem de 1 trilhão de vezes, os vírus seriam medidos em quilômetros com os menores deles medindo 0,2 km, já os gases seriam medidos em centímetros!

Ciência, essa comunista…

Obviamente não adiantou mostrar tudo isso a ele. Bola foi incisivo e tentou acabar com a conversa que lhe estava sendo inconivente etiquetando: “isso é ciência comunista!”

“Não, Bola, não existe ciência comunista, capitalista, anarquista ou qualquer outro -ista… existe ciência e descobertas com evidências ou não, publicadas com revisão por pares ou não…”

“Ah é?” disse ele já cantando vitória “Vai dizer agora que não existia uma ciência nazista e que os cientistas alemães não concordavam com ela?”

“Bola,” respondi com paciência pois não se mudam mentes xingando, “a ‘ciência nazista’ é justamente o que tem acontecido nesse embate direita x esquerda. Aceitam-se as descobertas científicas que condizem com nossas pré-concepções e ignoram-se as descobertas que as contradizem; não à toa os únicos cientistas que atuavam na Alemanha nazista eram… os nazistas!

Hoje, por exemplo, se tem evidências moleculares de que não existem ‘raças’ humanas e que um africano de pele escura pode estar muito mais próximo geneticamente de um alemão loiro do que, às vezes, outro alemão loiro. Mas tente argumentar isso com um neonazi para ver o que ele lhe diz sobre ciência judaica… Da mesma forma, quando você ideologiza o debate científico (e isso não é exclusividade de um lado do espectro político, mas de ambos extremos), você pode estar fazendo qualquer coisa, menos ciência!”

Doutorados x descobertas

Ainda lhe argumentei que descobertas ou invenções científicas não têm em si ideologia, ainda que quem as tenha descoberto/inventado tenha.

“Ah, não? Me diz uma coisa, uma patente ou um doutorado valem em outro país?”

Não, meu caro Bola, você está confundindo um cargo ou um registro de direitos com descoberta/invenção! Veja só, fosse Einstein ainda vivo e produzindo e decidisse dar aula no Brasil, seu diploma de doutorado precisaria passar pelo processo de reconhecimento. Entretanto, as descobertas que ele fez sobre as determinações de dimensões moleculares e apresentou como tese não precisariam, pois a descoberta que ele fez vale em um país como o Brasil, assim como valeriam na Alemanha nazista(6) na ex-União Soviética ou em qualquer outra parte do mundo! Da mesma forma uma máscara não funciona ou deixa de funcionar porque uma vertente política acredita ou não em seu uso.

Pragmatismo

von Braum entre oficiais nazistas: pragmatismo, não ideologia

Para dar um exemplo mais palpável, Bola, os americanos, que estiveram entre as potências mais importantes na derrota dos nazistas levaram Werner von Braum, um nazista, para implantar seu programa espacial. Isso significa que os USA se tornaram um país nazista? Claro que não! Embora existam lá simpatizantes do regime de Hitler e o racismo naquela época fosse ainda pior do que hoje, ainda assim eles não se tornaram um país nazista. Levar von Braum para lá através da Operação Paperclip foi algo totalmente pragmático, não político, pois o governo norte-americano sabia muito bem que método científico não tem ideologia.

Outro bom exemplo foi o desenvolvimento das bombas atômicas pelos americanos durante os anos 40. A União Soviética, principal adversário do ‘Tio Sam’ após a 2ª Guerra, não estava conseguindo desenvolver a sua, então o que fizeram? Conseguiram através de espiões os planos das bombas americanas e, assim, conseguiram também as suas, usando ciência ‘capitalista’.

Ciência é ciência

Já os EUA, correndo atrás da máquina, copiaram o Sputnik soviético e no ano seguinte, em 1958, lançavam o seu Explorer 1. Da mesma forma copiaram o feito de Yuri Gagarin, que em 12 de abril de 1961 foi o primeiro homem a chegar ao espaço sideral, a bordo da Vostok 1; e apenas 23 dias depois lançaram ao espaço Alan Shepard, que entretanto só conseguiu ficar 15 minutos na viagem contra os 108 minutos de Gagarin.

Tudo isso significa que a URSS se tornou uma nação capitalista ao usar a ciência americana ou que os USA se transformaram uma nação soviética ao copiar os russos? Claro que não! E sabe por quê? Porque método científico não é ideológico, meu caro Bola!

Da mesma forma, meu querido, se você não usar máscara e for exposto ao SARS-CoV-2 poderá contrair o vírus e, ou desenvolver a Covid-19, ou atuar como um vetor para outras pessoas, inclusive pessoas que você ama e que podem não ter sua sorte de não ter desenvolvido a doença!

Pragmático como um vírus…

Vírus e bactérias: sem discriminações ideológicas

Para finalizar, talvez o caro leitor, a cara leitora, esteja pensando “tudo isso só pra mostrar que está mais certo que outra pessoa no WhatsApp?” Bom, caro leitor, se a ideia que você teve de meu texto até agora foi essa então eu falhei como escritor… eu não estou mostrando que ‘ganhei o debate’, até porque o objetivo não era ganhar nada – nem mesmo competir – e sim conscientizar.

Não pense, por exemplo, que os ‘Bolas’ da vida são pessoas más. Eles são como nós, também querem o melhor para si, para os seus e para a humanidade, o caso aqui pode ser explicado por uma frase de Donald Rumsfeld, ex-secretário de defesa dos USA:

“Há conhecimentos conhecidos; há coisas que sabemos que sabemos. Também sabemos que há desconhecimentos conhecidos; ou seja, sabemos que há coisas que não sabemos. Mas também há desconhecimentos desconhecidos – aqueles que não sabemos que não sabemos… E é a última categoria que tende ser a mais difícil.” (6)

Em resumo, o caso todo é que o Bola, como tantos outros, não sabem que não sabem mais a fundo sobre o Coronavírus, sobre a Covid-19 ou mesmo sobre biologia básica… e meu objetivo com esse texto e mesmo com a discussão com o Bola foi conscientiza-lo disso; mostrar que talvez não saibamos muitas coisas que pensamos saber; e vacinar-se contra esse não saber. E a vacina para isso, meu caro, minha cara, é uma só: estudar o assunto!

Não acredite em mim!

Obviamente não estou pedindo aqui que você acredite em mim! Estou sim pedindo que você não aceite ideias prontas (incluindo-se aí as minhas), que pesquise por você mesmo, mas que, quando o fizer, pesquise em fontes responsáveis e respeitáveis, de preferência em fontes científicas com revisão por pares, ou seja, cientistas que têm ‘conhecimentos conhecidos’ sobre o assunto corrigindo outros cientistas de eventuais deslizes ou más interpretações – sim, cientistas erram como todos nós!

E que sobretudo você não se deixe levar pela falácia de que a verdade sobre algo grave como a Covid-19 ou outras doenças tem algo a ver com ideologia política. Que tal seguirmos usando o WhatsApp, mas deixá-lo para confraternizar, contar piadas ou tocar flauta em quem torce pro time que perdeu?

Vírus e bactérias são pragmáticos como o foram americanos e russos, eles vão infectar a todos que puderem, não importando para quem votam, que religião professam ou para que time torcem. Que tal não fingirmos que sabemos o que não sabemos e aprender com esses seres minúsculos na hora de cuidar de nós mesmos e de quem amamos?

 

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1 E em outros países tais como os USA, boa parte da Europa e da América Latina…

2 E não da ciência política, deixe-se claro, mas da ideologização política.

3  Deixo claro que a palavra crença está entre aspas porque não se deve ‘crer’ na ciência, deve-se compreender como ela funciona e concordar ou discordar a partir do método utilizado e das conclusões encontradas.

4 Denomina-se efeito colateral como um efeito diferente daquele considerado como principal por um fármaco. Esse termo deve ser distinguido de efeito adverso, que se refere a um efeito colateral indesejado, pois um fármaco pode causar outros efeitos potencialmente benéficos além do principal.

5 Para Nietzsche a esperança é o mal derradeiro; é o pior dos males porque prolonga o tormento.

6 Tradução de Gavin Roy em seu excelente Nunca Diga Abraços para um Gringo (Jandira/SP: Ciranda Cultural, 2020, p. 43-45).