É curioso como estamos muito mais envolvidos com ciência do que imaginamos, não é? Explico: estava eu conversando com mainha, e, enquanto ela me contava sua rotina, comentou algo que despertou minha curiosidade: “Quando a gente almoça rápido não dá saciedade. É como se a gente não percebesse que comeu.” Assim que ela acabou de falar, percebi que minha mãe, tal qual um cientista, tinha acabado de lançar uma hipótese! E é sobre isso que falaremos hoje: ciência e alimentação.

Para facilitar o rolê de todo mundo e tornar esse texto mais acessível, vamos começar falando por que você já foi um cientista. É isso mesmo, você não leu errado! Quando somos bebês e durante a infância, passamos por intensos períodos de descoberta e experimentação do mundo. Jogamos a colher no chão infinitas vezes, colocamos coisas na boca ou nariz – e quase matamos nossos pais do coração –, fazemos mil perguntas e criamos explicações sobre como o mundo funciona. De um jeitinho simples, e às vezes muito fofo, agimos como cientistas mesmo sem saber como isso tudo funciona.

Fazendo ciência na vida adulta

É justamente na tentativa de melhor explorar e explicar os fenômenos que usamos o método científico. Ele é um conjunto de regrinhas para padronização das pesquisas científicas, de forma que seus resultados sejam confiáveis e não apenas achismos por parte do pesquisador. Aqui cabe a ressalva que nem todas as áreas do conhecimento conseguem aplicar integralmente o método científico em suas pesquisas – principalmente as ciências humanas e sociais –, mas isso não significa que estas não sigam seus pressupostos.

De todo modo, em uma pesquisa científica seguimos alguns passos básicos, vamos a eles:

    1. Perguntar não ofende

Todo estudo começa com um problema de pesquisa. Ele pode ser uma questão teórica, prática ou teórico-prática. A meta da pesquisa é justamente responder essa pergunta.

    2. Todo mundo supõe alguma coisa de algo ou alguém

Antes de começar a responder à pergunta, são formuladas hipóteses, definidas como suposições sobre o problema de pesquisa. Porém, elas seguem um padrão importante: precisam ser válidas, falseáveis e testáveis, de modo que possam ser consideradas verdadeiras ou falsas.

    3. Vamos testar?

Após supor o que pode acontecer, são feitos experimentos ou análises que vão testar as hipóteses. A partir disso será possível saber se os dados confirmam ou refutam as possíveis explicações listadas anteriormente.

     4. Decifrando os achadinhos

Sabe os desfiles de moda com aquelas roupas esquisitíssimas, que ninguém tem coragem de usar, e que depois as marcas traduzem em coisas mais usáveis? O que acontece nessa etapa da pesquisa é meio parecido. Os dados encontrados são analisados e interpretados, podendo responder ao problema de pesquisa ou gerar novas hipóteses (e aí o ciclo todinho se repete, nesse último caso).

E quem ia imaginar que dessa referência iam surgir as maxi batas?

    5. Fofocando os resultados

Depois de uma trabalheira dessas para achar uma novidade, vocês acham mesmo que os cientistas iam ficar caladinhos? Não mesmo! Os resultados são publicados em veículos reconhecidos pela comunidade científica. Corrente do WhatsApp não conta, mas sabe o que vale? Monografias, teses, dissertações, artigos e livros que podem ser acessados em bases de dados gerais (Scielo, por exemplo) ou próprias das universidades e institutos onde as pesquisas foram realizadas.

Perceberam que, de certa forma, aplicamos muitas dessas coisas no nosso cotidiano? Somos pequenos cientistas e continuamos sendo conforme crescemos. A diferença é que alguns de nós vão trabalhar com isso. E é aqui onde entram as pesquisas sobre fome e saciedade que mainha não conhecia.

Juntando a fome com a vontade de comer

O hipotálamo, região responsável pela homeostase do nosso corpinho, ou seja, o equilíbrio entre nossas funções e o ambiente, é a grande estrela da nossa alimentação! Seus receptores interagem com a insulina e a leptina, responsáveis pela nossa saciedade alimentar e controle de reserva de gordura.

De forma bem simplificada, em certos momentos do dia, uma substância chamada grelina é produzida pelo estômago e intestino, sinalizando no cérebro que estamos com fome. A partir daí, comemos e os receptores do nosso sistema digestivo passam os sinais de que estamos cheios e controlam o chamado apetite pré-absortivo. A etapa pós-absortiva começa a partir da digestão dos nutrientes, atravessando as paredes intestinais e caindo na circulação sanguínea.

O meme é velho, mas… quem nunca?

Tanto na fase pré, quanto na pós-absortiva, o Sistema Nervoso Central (SNC) vai recebendo sinais de saciedade e interagindo com neurotransmissores que vão controlar a nossa ingestão alimentar. E considerando que este é um processo complexo, ele pode ser influenciado por fatores variados, incluindo a velocidade de ingestão, atenção, socialização e estado emocional.

Não precisamos ir muito longe para apontar situações onde a nossa alimentação muda, principalmente em quantidade. Festas de aniversário e de natal são as campeãs no desconforto de estar muito cheio, em oposição a isso basta lembrar de quando estamos doentes – com enjoos ou dor de garganta, por exemplo – e perdemos o apetite até mesmo para alimentos que gostamos. Com isso vemos que um grau de variação no comportamento alimentar é algo comum e até mesmo esperado, mas…

E quando o comer se torna um problema?

De acordo com a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5), a classe de Transtornos Alimentares pode ser definida de modo geral como disfunções na ingestão de alimentos, levando a prejuízos na saúde global do paciente.

Atualmente o manual traz 6 diagnósticos nesta seção:

Pica (alotriofagia)

Ingestão de substâncias não alimentares como sabão, giz, terra e costuma aparecer após os 2 anos de idade – quando a fase de explorar os objetos se dá mais com as mãos do que com a boca. Apesar de ser comum na infância, pode acontecer em qualquer idade, gerando complicações clínicas associadas a obstruções e perfurações no sistema digestivo, além de intoxicação e infecções.

Transtorno de ruminação

O nome já dá uma pista do que seja – se você é sensível a esse tema, sugiro que pule ao próximo tópico – e é bem isso mesmo, a pessoa que apresenta o quadro regurgita o alimento, remastigando-o e podendo engolir ou cuspir logo após. É mais comum em crianças e seus sintomas não podem ser causados por quadros gastrointestinais.

Transtorno alimentar restritivo/evitativo

Lembram do meme? A ideia é parecida.

Basicamente é a evitação repetida de determinados tipos de alimentos por causa de suas características sensoriais. Isso não seria necessariamente um problema – até porque todos evitamos algum tipo de comida que não gostamos –, mas a grande questão aqui é a amplitude da restrição, que pode levar a quadros graves de desnutrição, sendo necessária a suplementação ou até mesmo a alimentação via sonda. É um quadro descrito com frequência na infância, principalmente em pessoas dentro do espectro do autismo, mas também pode aparecer em pacientes com quadros frequentes de engasgo, sufocamento ou vômitos, levando a recusa de alguns alimentos.

Anorexia nervosa (AN)

Talvez o mais conhecido dos transtornos alimentares, o quadro geralmente tem início na adolescência ou juventude, sendo mais comum em mulheres. Possui como características principais a restrição alimentar persistente, o medo intenso de ganhar peso que não é aliviado mesmo com a desnutrição extrema, e a percepção distorcida da própria forma corporal. Se apresenta nos subtipos restritivo e purgativo – que não serão descritos aqui para evitar indução desses comportamentos – e sua gravidade varia de leve a extrema de acordo com o grau de incapacidade funcional e complicações clínicas que podem ser fatais.

Bulimia nervosa (BN)

Muitas vezes confundida com a anorexia, a bulimia é conceituada como episódios de compulsões alimentares em segredo, marcadas pela grande ingestão alimentar que continua até o desconforto e dor de estar cheio, sendo seguidas de comportamentos purgatórios ou compensatórios – não descritos aqui por razões óbvias – na tentativa de evitar o ganho de peso. Assim como em quadros anoréticos, a auto avaliação da paciente está muito ligada ao peso, no entanto, em casos de bulimia o peso se mantem na faixa esperada ou são vistos quadros de sobrepeso, o que dificulta o diagnóstico. Este muitas vezes é feito a partir das complicações clínicas apresentadas, geralmente ligadas a problemas cardíacos, dentários, hormonais ou do aparelho digestivo.

Transtorno de compulsão alimentar (TCA)

Descrito pela 1ª vez em 1950, é definido como episódios de grande ingestão alimentar em um intervalo restrito de tempo (cerca de 2 horas) e sem comportamentos compensatórios ou de purgação. Estresse, ansiedade e sentimentos negativos podem precipitar o aparecimento de novas crises. Um ponto importante é que sua prevalência pode ser aumentada entre indivíduos obesos participantes de programas de emagrecimento com dietas restritivas.

Relatos de pacientes com alguns desses transtornos são parecidos com as descrições de fissura, uso compulsivo e relevância presentes em pessoas com histórico de abuso de substâncias, o que provavelmente sinaliza o envolvimento de áreas cerebrais em comum – como as ligadas ao autocontrole e o sistema de recompensa – e contextos semelhantes para instalação e manutenção dos quadros diagnósticos.

Mas abra o olho: no uso de substâncias há o desequilíbrio químico gerado pelas características da droga ingerida – alucinógenas, depressoras, estimulantes, etc – e sua ação em diferentes áreas cerebrais, enquanto que na comida não. Por isso ainda é um grande ponto de discordância entre os pesquisadores a existência ou não da dependência comportamental, ou seja, vício em algo que não seja uma substância.

É interessante observar que em quadros de transtornos como AN, BN e TCA o comportamento alimentar assume um papel quase que central na vida do indivíduo, onde horas e horas são gastas em preparação, rituais, pesquisas, compras e também em formas de esconder o quadro de outras pessoas – o que traz algumas semelhanças com o abuso de substâncias, onde outras preocupações se tornam secundárias.

No caso desses transtornos, porém, a comida é usada como forma de regulação emocional ao lidar com ansiedade, estresse, conflitos, problemas de autoestima e de socialização. Ainda que cada quadro se apresente com diferentes sintomas, estes se mantem por exercerem funções muito parecidas. Mas espera, quantas vezes você já usou a comida como válvula de escape para algum problema? Será que…?

Calma, não é bem assim. É comum que ao longo da vida nós tenhamos algum grau de disfunção alimentar, principalmente em épocas de estresse ou flutuação emocional – estar muito feliz ou muito triste influencia diretamente na quantidade de comida que você ingere –, mas o que vai caracterizar um transtorno propriamente dito são 3 coisas: a frequência dos sintomas, sua intensidade e o grau de prejuízo ou sofrimento que isso traz ao paciente e seus familiares.

Ok, pensou direitinho e viu que possivelmente tem algo de errado na forma como você tem se relacionado com a comida? É possível buscar ajuda! O tratamento é feito por uma equipe multiprofissional com psicólogos, nutricionistas, psiquiatras e clínico geral, acontecendo de maneira ambulatorial – a internação somente é feita em casos graves – e o foco não é o peso do paciente, mas sim questões relacionadas ao emocional, como ansiedade, conflitos, questões de autoestima e de autoimagem. Esse acompanhamento pode ser feito através do SUS, via postos de saúde, serviços ambulatoriais ou hospitais de referência e também em clínicas e hospitais particulares.

 

REFERÊNCIAS:

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