Eurídice Gusmão vive uma vida invisível.

Ela é uma mulher brilhante. Apesar disso, Eurídice é invisível em tudo o que ela poderia ser. O que importa é que ela seja uma esposa obediente, uma mãe dedicada, uma dona de casa esmerada. É isso que acredita a sociedade do Rio de Janeiro da metade do século XX. É isso que esperam todos ao redor de Eurídice.

Capa do livro A vida invisível de Eurídice Gusmão de Martha Batalha

Curtinho, divertido e inteligente

Foi com essas palavras que minha irmã me recomendou o livro. Sem nenhuma informação sobre o que era a história, eu apenas aceitei a sugestão e logo estava com ele no meu Kindle. Antes de passar para uma análise do livro, posso dar um spoiler: eu gostei tanto dessa leitura que acabei colocando em prática um projeto que estava engavetado desde 2020. Então, você já sabe que a minha opinião é bem positiva.

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é o livro de estreia de Martha Batalha, publicado em 2016. Ele tem 192 páginas, mas a fluidez da narração é tão envolvente que faz parecer só metade disso. Há muita coisa acontecendo em cada página, muitos comentários sobre a sociedade em que vive Eurídice (e também sobre a nossa própria sociedade) e muitos personagens interessantíssimos.

Além disso, a forma com que Batalha faz críticas sociais é bastante engraçada: ela aponta o absurdo em tantas coisas que são simplesmente aceitas como natural, que nossa única reação é rir. Muitas vezes durante a leitura eu me peguei balançando a cabeça, pensando “nossa, isso é tão real!”, ao mesmo tempo em que misturava um riso com uma sensação de incômodo com as situações retratadas no livro.

Martha Batalha, autora de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Martha é uma mulher branca adulta, magram com cabelos castanhos, longos e ondulados. Na foto, usa uma calça jeans mais solta, camisa regata branca, além de pulseiras e colares coloridos e brincos pequenos.

Mas vamos por partes…

 

Sinopse da Vida Invisível

O livro aborda a vida de Eurídice Gusmão, através das décadas no meio do século XX. De tempos em tempos, Eurídice tem uma inquietação e se dedica a um novo projeto, como escrever um livro de receitas ou costurar. Entretanto, Antenor, marido de Eurídice, é contra essas iniciativas da protagonista. Ele apenas deseja que sua esposa cumpra os papéis esperados de uma senhora casada, ou seja: cuidar da casa, cuidar das crianças, cozinhar, fazer sexo quando ele quer.

Pressionada pelas convenções sociais, Eurídice frequentemente abandona os seus projetos. O tempo todo, o mundo diz a Eurídice que ela não deve ser quem ela quer, e sim quem os outros esperam que ela seja.

O contraponto de Eurídice é sua irmã mais velha, Guida. Enquanto Eurídice se dedicou a ser uma boa filha, esposa e mãe, Guida fugiu de casa para viver um amor. Isso não significa que Guida esteve livre das pressões vividas por Eurídice. Pelo contrário. Por desviar do padrão imposto e esperado, Guida precisa enfrentar as consequências que a sociedade reserva às mulheres rebeldes.

 

Personagens vivos

Na minha opinião, o ponto mais forte do livro são os personagens. Mesmo que o foco da história seja primariamente sobre Eurídice, e depois sobre Guida, em vários momentos a autora apresenta o passado daqueles que estão ao redor da protagonista e sua irmã. Com isso, acabamos por entender porque é que cada pessoa na narrativa se encontra da forma que está.

Estas descrições sobre a origem e a vida dos personagens secundários são feitas de uma forma que permite ao leitor uma visão ampla do mundo habitado por Eurídice. Porque temos acesso à história de muitos dos coadjuvantes, a narrativa sobre Eurídice Gusmão parece viva. Aquelas pessoas são pessoas possíveis, com vidas próprias que não revolvem em torno da protagonista do livro. Pelo contrário: cada uma é protagonista da própria história, mesmo sendo personagens secundários no livro em que se encontram.

Além disso, as vivências desses personagens, principalmente das mulheres no livro, permitem identificação e paralelos com as vidas das diversas mulheres em nossas vidas. Nossas irmãs, mães, avós, tias e vizinhas são facilmente reconhecidas nas personagens do livro. E isso faz A Vida Invisível de Eurídice Gusmão cutucar em feridas.

 

Críticas sociais

Como já deve ter ficado explícito, o livro carrega várias críticas à sociedade brasileira, tanto do passado ficcional vivido por Eurídice quanto do presente real em que nos encontramos. A maior parte destas críticas diz respeito às imposições colocadas sobre as mulheres e o papel que se espera que elas cumpram.

No entanto, o livro não fica nisso.

Logo no início da narrativa, somos apresentados a um comentário sobre a questão da virgindade e das maneiras de atestá-la. Como Eurídice não sangrou em sua primeira vez com Antenor, o marido passa todo o matrimônio acreditando que sua esposa era uma “vagabunda”. Essa questão também serve como um comentário sobre como se furtar às conversas sobre sexo é prejudicial para o conhecimento sobre o próprio corpo, principalmente para mulheres (cis. O livro não entra em discussões sobre identidade de gênero, mas eu, enquanto pessoa transmasculina, não posso deixar de fazer essa observação).

A autora também traz críticas a questões de classe. Alguns dos personagens secundários preocupam-se excessivamente com o status social, seus e das outras pessoas. Mesmo quando perdem todo o dinheiro, eles mantêm sua pose soberba, considerando-se melhores que os outros, “abaixo” deles.

E de uma forma rápida mas bastante mordaz, o livro também revela o racismo presente na sociedade brasileira. Isso fica explícito nos comentários sobre Das Dores, a empregada doméstica que trabalha na casa de Eurídice.

 

Tornando visível

A leitura de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão nos convida a observar as mulheres ao nosso redor. Mais que isso: somos provocados a enxergar as invibilizações que nossa sociedade impõe às mulheres, nos mais variados graus, de acordo com recortes como classe social, raça, escolaridade etc.

Quantas Eurídices você conhece? Mulheres brilhantes são soterradas pelas exigências absurdas, na busca de um modelo ideal do feminino. Não há nada de errado em uma mulher ser dona de casa e mãe; o problema reside em ter apenas isso como possibilidade, mesmo quando a mulher gostaria de ser uma flautista, uma escritora, ou qualquer outra coisa que seja de sua vontade.

Precisamos enxergar essas vidas invisíveis, criando mais espaço e oportunidade para mulheres. É isso que eu carrego comigo depois de ler A Vida Invisível de Eurídice Gusmão.

Aqui no Deviante tem uma outra resenha sobre o livro. Ela foi escrita pela Renata, em 2020. Convido você a ler o texto dela também, que aborda aspectos antropológicos do livro.