Muita coisa mudou desde o primeiro texto publicado no meio de abril. O que é consenso no mundo inteiro aqui no Brasil tornou-se uma guerra de narrativas. Cruel ter que acompanhar debates “se a vida é tão importante quanto a economia” e a crise política ser tão grande quanto a pandemia do COVID-19.

Mudanças de ministros; a crença de que saúde pública baseia-se em opinião e não em ciência; o mundo com medo de virar o Brasil; e o risco que o SUS está enfrentando. Temas pesados no texto, eu sei, mas vamos lá.

Mudança(s) no ministério da saúde

Game Of Thrones, 2019

Há mais ou menos um ano estreou a temporada final de Game of Thrones. Já em seus últimos capítulos, Cersei Lannister, rainha da capital dos Setes Reinos, frente a sua iminente queda, traz a população ao redor da capital para dentro das muralhas de Porto Real, não por estar preocupada com o povo, mais sim para usá-lo como escudo na guerra que se aproxima. Por que eu começo esse texto com uma referência a GOT? Porque a estratégia de Cersei é parecida com a de Bolsonaro. Pesado, eu sei, mas o presidente está banalizando a morte da população brasileira em prol de sua proteção política. 

No primeiro texto destaco como o até então ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta vinha se saindo relativamente bem em meio a crise, em um governo que sempre flertou com teorias conspiratórias. E mesmo com um passado recente que compartilhava das ideias do bolsonarismo, inclusive de diminuição dos investimentos na saúde pública, Mandetta vinha ganhando popularidade.

Porém, por não ceder aos “caprichos” de Bolsonaro, que iam desde o uso da Cloroquina como medicamento (cuja eficácia até então não foi comprovada cientificamente em casos de COVID-19) à  flexibilização da quarentena, além de outras opiniões que iam contra as indicadas pela OMS, o cargo de Mandetta começou a ser questionado e sua demissão confirmada ainda em abril. Para o seu lugar,  Nelson Teich.

Crédito: Reprodução
Ministro da Saúde se atrapalha com máscara e vídeo viraliza na web

Com menos de um mês no cargo, Nelson Teich pede demissão. Entre os motivos estão novamente os “caprichos” do presidente que possui opiniões divergentes das do ministro, como de novo o uso da cloroquina e as medidas de isolamento. Até o momento que escrevo esse texto o novo ministro ainda não tinha sido oficialmente escolhido e, sinceramente, não faz diferença. O problema do Brasil ao lidar com essa pandemia claramente não é o ministro da saúde e sim quem ocupa o cargo da presidência.  

Apurado pela UOL em uma matéria que fala da influência da ala militar no Ministério da Saúde, “duas fontes recém-saídas do Ministério da Saúde disseram que a última quinzena de abril foi perdida enquanto Teich ‘tomava pé’ da situação. As decisões sobre testes e novos equipamentos foram adiadas, afirmaram. Mais de 15 especialistas em saúde pública, incluindo epidemiologistas experientes, saíram com Mandetta, segundo uma das fontes. Muitos foram substituídos por militares. ‘Essas mudanças afetam muito a capacidade, a velocidade e a qualidade da resposta’, disse José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde que liderou a reação do Brasil à crise da epidemia de gripe suína em 2009. ‘Foi uma decisão desastrosa.’”

Na mesma matéria ainda é comentado que no início de março o ministério da saúde contava com apenas 1 militar ocupando cargo, com o decorrer da crise, atualmente esse número passa de 13 militares. Nenhum deles possui formação em área de saúde.

“Brazil”, o péssimo exemplo

Não faz muito tempo, o Brasil servia de exemplo para o mundo no quesito de saúde pública. Com o tamanho continental, oferecer saúde universal como o SUS oferece era um desafio que muitos países desenvolvidos até hoje não conseguem. O que aconteceu nesse meio tempo no qual deixamos de ser um bom e passamos a ser um péssimo exemplo em saúde?

Como a matéria da New York Times destacou, “o Brasil no passado ganhava elogios globais pela forma que lidava com as crises de saúde pública, como as pandemias de AIDS e de Zika, porém atualmente a resposta caótica ao vírus minou a capacidade do SUS de lidar com a COVID-19.” 

Foto: Jorge William / Agência O Globo

Ainda na mesma matéria foram ressaltados os bancos lotados, a baixa adesão da população ao isolamento e principalmente as “manifestações” que o presidente da república participa/incentiva. “A confusão nacional ajudou a alimentar a propagação da doença e contribuiu para tornar o Brasil um centro emergente da pandemia, com uma taxa de mortalidade diária perdendo apenas para a dos Estados Unidos”. Um dos principais focos do COVID-19, no meio da crise, o presidente Trump viu que seria necessário proibir a entrada de viajantes vindos do território brasileiro.   

Brasileira, Marcia Castro com formação em saúde global e professora da Universidade de Harvard falou “O Brasil poderia ter sido uma das melhores respostas a essa pandemia (…), Mas, no momento, tudo está completamente desorganizado e ninguém está trabalhando em busca de soluções conjuntas. Isso tem um custo, e o custo é a vida humana.” 

“Uma coisa que vinha brilhando no Brasil é o sistema de saúde pública (…) Ver tudo se desintegrar tão rapidamente é muito triste.” disse Albert Ko, professor da Escola de Saúde Pública de Yale, com décadas de experiência no Brasil, para a matéria da UOL.

Vindo para nossos vizinhos Sul-americanos, em entrevista coletiva no início de maio Alberto Fernandez, presidente da Argentina, fala da importância de manter o isolamento social e mostra o gráfico (abaixo) sobre o que aconteceria caso não adotassem políticas rígidas. Ele ainda pontua sobre os números baixos de mortes em seu país serem devidos ao um esforço coletivo.  Enquanto isso, em terras tupiniquins, o presidente cria uma “guerra” entre os que querem e os que não querem fazer isolamento social. Como se decisões assim fossem de cunho político e não científico.

Em entrevista a uma rádio de seu país, o presidente argentino ainda falou sobre o risco do Brasil para com os outros países Sul Americanos: “Falei com [Sebastián] Piñera e com Lacalle [Pou] (presidentes respectivamente de Chile e Uruguai). Obviamente que é um risco muito grande. O Brasil é um país que, com exceção de dois países, faz fronteira com toda a América do Sul. Vivem entrando aqui caminhões do Brasil que vêm de São Paulo, um dos lugares mais infectados do Brasil.”

Uma breve passada na França, em editorial o jornal Le Monde disse: “o Brasil de Bolsonaro habita um mundo paralelo, um teatro do absurdo onde fatos e realidade não existem mais. Nesse universo tenso, alimentado por calúnias, inconsistências e provocações mortais, a opinião é polarizada em uma nuvem de idéias simples, mas falsas (…) A negação mantida pelo governo dissuade metade da população de se limitar, enquanto os pedidos de distanciamento físico lançados por profissionais de saúde, governadores e prefeitos são apenas moderadamente acompanhados. A atividade econômica deve continuar a todo custo, diz Bolsonaro, que está lutando acima de tudo para medir a pandemia enquanto faz um cálculo político insano: os efeitos devastadores da crise serão atribuídos a seus oponentes, ele espera.”

Alguns pontos que levou a Brasil a chegar nesse nível:

  • Achar que medicamento é opinião, o tal milagre da Cloroquina. Nesse ponto chega até a ser curiosa a insistência de um presidente que não tem formação médica, farmacêutica ou em qualquer outra área voltada à saúde, em um medicamento que não funciona para os casos de COVID e pode botar em risco a população que faz o seu uso sem indicação médica.     

Tudo isso é só alguns dos ingredientes da forma de não combater o COVID-19, só citei a saúde pública. Mas fica o questionamento: o que seria melhor para a economia, o Brasil mostrar a sua força no combate do Corona com programas de saúde pública que já possuímos, os fortalecendo e executando baseados em evidência ou querer voltar ao “normal”, abrindo comércios e todos os outros setores, entrando em guerras de narrativas com um vírus?

Em tempos de COVID-19 a saúde está realmente sendo universal?

Angela Davis e Naomi Klein protagonizaram um debate sobre a globalização no mundo pós Coronavírus. Citando diretamente a fala de Klein sobre o capitalismo “Esse sistema econômico se expressa de tantas formas, desde o sistema de saúde privado lucrativo nos EUA, a degradação do trabalho na área de Saúde até ao falhar em fornecer equipamentos de proteção necessário aos trabalhadores” (1).

Naomi Klein fala de uma realidade americana na qual não se possui saúde pública, aqui no Brasil o sistema de saúde já entrou em colapso em alguns estados com as filas de espera em UTI (Unidade de Terapia Intensiva). É justamente no acesso às UTI’s que evidencia um dos maiores perigos que a saúde brasileira enfrenta, deixar de ser universal.  

A cidade de Manaus (AM) foi a primeira em que o sistema de saúde colapsou. Ou seja, não consegue atender as demandas de pacientes que necessitam de atendimentos em UTI’s, não só os acometidos por COVID-19 mais também outros casos como, por exemplo, AVC e acidentes automobilísticos. Apurado pelo The Intercept BR, “os principais hospitais privados de Manaus estão cobrando depósitos antecipados para aceitar a internação de pacientes com suspeita de covid-19 em seus leitos de UTI. Os valores variam de R$ 50 mil a R$ 100 mil e são cobrados pelas redes hospitalares para atender pacientes particulares, que não contam com planos de saúde.”

Práticas como essas são ilegais (lei 12653), colocando em evidência algo que vem sendo pouco debatido e de extrema importância: se a saúde no Brasil é um direito universal, então por qual motivo, em meio uma pandemia, leitos de UTI estão disponíveis apenas aos que podem pagar?

(Photo by Silvio AVILA / AFP)

Na Espanha no início da pandemia, com pouco mais de 7 mil casos, o governo espanhol anunciou uma medida que definiu o controle público total ao hospitais privados do país. Tais medidas criavam um fila única nos leitos de UTI.  Enquanto o Brasil  torna-se o principal foco do vírus, o debate de fila única passa longe de chegar a uma conclusão.  

O número de UTI no sistema público é menor quando comparados ao sistema privado, como apurado pela BBC: “O Brasil tem 55.101 desses leitos, segundo o Ministério da Saúde. Desse total, 49,8% são do SUS. (…) Ou seja, três quartos da população têm acesso a só metade dos leitos de UTI no Brasil. A outra metade está reservada ao quarto da população que tem planos de saúde.” Alguns estados veem atuando no limite com 90% dos leitos ocupados, já outros com filas de espera nos serviços públicos,exemplo o RJ no início de maio tinha uma fila de espera com mais de 800 pessoas

O princípio da fila única, de acordo com o Conselho Nacional de Saúde (CNS),  baseia-se em utilizar leitos disponíveis nos serviços privados para o uso público, para que assim a prioridade no atendimento seja de qualquer doente por Covid-19, tenha plano de saúde ou não, obedecendo a ordem de entrada no sistema conforme os diagnósticos e gravidade da doença em cada paciente (A recomendação da CNS na íntegra link). Tal princípio tem como amparo Lei nº 13.979/2020, § 2 parágrafo II – o direito de receberem tratamento gratuito e Art. 3, VII –  requisição de bens e serviços. 

O diretor da CNS Fernando Pigatto afirma que “é imprescindível utilizar este princípio para salvar vidas (… ) É inadmissível pessoas morrerem por não haver leitos de UTI, enquanto vemos hospitais privados com leitos vagos. Isso não pode ser permitido”. Aqui vale destacar que o SUS tem como princípio fundamental a Universalidade que determina que todo cidadão brasileiro tenha acesso a saúde. 

No momento que faço a edição final desse texto o número de óbitos pelo COVID-19 no Brasil já passa 25 mil pessoas, quando você estiver lendo vai ser maior,  isso é quase toda a população do meu município natal aqui no interior do CE. Isso não pode nunca ser normalizado, principalmente por entidades governamentais.    

Não sei como você está no momento em que lê esse texto, talvez seja uma pessoa no futuro e veja como tudo ficou bem, ou talvez você esteja assim como eu, vivendo esse momento com uma mistura de raiva, ansiedade, falta de ânimo, um sentimento de inutilidade por ter estar em casa como se sua vida estivesse escorrendo entre seus dedos. Entendo tudo isso, e sabia que não está sozinho nessa. Acredite, a situação estaria bem pior se você não tivesse respeitando a quarentena, e, sim, isso é fazer muito, não estamos perdendo tempo ficando em casa, estamos salvando vidas.      

 

REFERÊNCIAS:

Grande parte das referências estão em links no decorrer do texto. 

  1. Angela Davis e Naomi Klein; Construindo Movimentos – Uma conversa em tempos de Pandemia, Editora Boitempo, 2020.