Vocês devem ter lido o título do texto e talvez estejam tentando entender como é possível a pandemia influenciar na previsão do tempo. Pois bem, vamos a mais um textão e antes de entrar no assunto eu preciso contar para vocês como a previsão do tempo é feita.

Previsão do tempo é um conjunto de procedimentos que reúne esforços humanos e computacionais. Nós precisamos de um supercomputador com grande capacidade de processamento, ou seja, faz contas muito rapidamente. Nesse supercomputador, os meteorologistas precisam que estejam instalados um conjunto de rotinas numéricas que chamamos de modelo meteorológico. Existem vários modelos meteorológicos, pois diversas Universidades e Institutos de Pesquisa de todo o mundo desenvolvem seus próprios modelos, usando diversas linguagens de programação. Os modelos meteorológicos têm como objetivo resolver as equações que descrevem todos os movimentos e transportes de energia e massa na atmosfera.

A atmosfera, como qualquer coisa no universo, está sujeita às inexoráveis leis da Física. Não tem jeito, as leis estão lá e elas são expressas em equações. Resolver manualmente todas essas equações para todos os pontos do planeta e em diversas alturas da atmosfera é impossível, a não ser que você faça muitas simplificações – o que não terá aplicações práticas. Desde o final do século XIX e início do século XX, os cientistas já desconfiavam que dava pra resolver as equações que descrevem a atmosfera, mas sabiam que para isso algo precisaria ser inventado para que os cálculos fossem feitos em tempo hábil. Esse sonho dos cientistas só foi realizado depois da segunda metade do século XX, quando surgiu o ENIAC e o  icônico artigo Numerical Integration of the Barotropic Vorticity Equation foi publicado, inaugurando a área de estudos Previsão Numérica do Tempo.

Atualmente, qualquer celular que tenhamos (até aquele Nokia da cobrinha) supera o poder de processamento do ENIAC. A tecnologia nessa área se desenvolveu rapidamente. No entanto, os supercomputadores utilizados para resolver as equações que descrevem a atmosfera são artigo de luxo, sendo itens pertencentes a grandes Universidades e Centros de Pesquisa. Supercomputadores possuem muitos FLOP/s (FLOP/s é um acrônimo de FLoating-point Operations Per Second – operações de ponto flutuante por segundo). Quanto mais FLOP/s, melhor o computador. E é importante que o computador tenha muitos FLOP/s para que as equações sejam resolvidas rapidamente e tenhamos o resultado da previsão em tempo hábil. Imagine só ter acesso aos resultados da previsão de tempo de hoje apenas amanhã pois seu computador é lento demais? Bom, isso não acontece hoje em dia, tanto que conseguimos ter acesso a previsão do tempo com bastante antecedência.

Além de um supercomputador poderoso, para termos uma boa previsão do tempo, precisamos de meteorologistas capacitados e experientes e também de dados, muitos dados meteorológicos. Dados meteorológicos de todos os tipos. Trata-se de um volume de dados imenso, que corresponde a dados de estações meteorológicas de superfície, boias oceanográficas, dados de radares e satélites meteorológicos, dados de aeronaves, etc. São observações de todo o globo, a todo o momento e em diferentes alturas. E, bom, foi exatamente aí nessa questão dos dados que tivemos um problema em decorrência da pandemia.

Nessa reportagem que comentei no Spin de Notícias #881 (ouça aqui), um cientista do NCAR (National Center for Atmospheric Research) coloca os dados meteorológicos provenientes  de aeronaves em voos regulares como parte do TOP5 entre os dados meteorológicos mais importantes. Com a pandemia, o total de voos regulares caiu e com isso esses voos deixaram de registrar dados meteorológicos que seriam inseridos nos supercomputadores e fariam parte das condições iniciais que dão o start nos modelos meteorológicos.

Em abril/2020, ainda no começo da pandemia, os meteorologistas alertavam para essa questão mas ainda não havia uma publicação fazendo algum tipo de comparação, porque até aquele momento a pandemia estava apenas começando. Só que, em julho/2020, o pesquisador Ying Chen, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, publicou um artigo (leia aqui) comparando a acurácia das previsões meteorológicas feitas de março até maio em 2020 com o mesmo período dos anos de 2017 a 2019. Ao fazer essa comparação, ele constatou uma queda na precisão dos dados de temperatura, umidade relativa, pressão atmosférica e velocidade dos ventos. A piora foi observada tanto em áreas de intenso tráfego aéreo (onde essa fonte de dados meteorológicos é muito importante), como EUA e Japão por exemplo, quanto em áreas mais remotas (Groenlândia e Saara, por exemplo). O autor do estudo alerta para prejuízos na qualidade da previsão do tempo a curto prazo (para daqui algumas horas ou para daqui um ou dois dias) e a longo prazo (para até 10 dias).

Chen, portanto, constatou, através da comparação dos dados, o que os meteorologistas operacionais já desconfiavam através da leitura de trabalhos anteriores e através de sua vivência na profissão. É importante percebermos como a pandemia tem afetado diferentes áreas do conhecimento e diferentes atividades humanas e a pesquisa científica colabora para que possamos quantificar isso e propor ações de mitigação.

 

 

Bibliografia

 

Será que Covid-19 atrapalhou a previsão do tempo? Como isso aconteceu?

 

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/FLOPS

 

Como a pandemia de COVID-19 está influenciando na previsão do tempo? – 14 Driadan (Spin #881 – 09/04/20)

 

O ENIAC e a primeira previsão do tempo – Parte 2

 

https://www.bloomberg.com/amp/news/articles/2020-03-25/the-pandemic-has-started-weakening-the-world-s-weather-forecasts

 

 

Charney J.G., Fjörtoft R., von Neumann J. (1990) Numerical Integration of the Barotropic Vorticity Equation. In: Lindzen R.S., Lorenz E.N., Platzman G.W. (eds) The Atmosphere — A Challenge. American Meteorological Society, Boston, MA.

 

Chen, Y. (2020). COVID‐19 pandemic imperils weather forecastGeophysical Research Letters, 47, e2020GL088613.


Samantha Martins é meteorologista e mestre em Meteorologia pela Universidade de São Paulo. Tem experiência com observações meteorológicas e divulgação científica através de palestras na Estação Meteorológica do IAG-USP. Atualmente escreve no blog Meteorópole, colabora com o Portal Deviante e participa de alguns podcasts.