A não ser que você seja uma pessoa muito nova, ou então tenha tido sorte demais até agora, você certamente já passou por uma situação de luto. Algumas são piores que outras, fato. Mas toda experiência desse tipo traz uma série de desafios. O primeiro deles, a meu ver, é a paralisação.

Você está lá, tocando a sua vida da melhor maneira que pode, tentando cumprir prazos, botar as leituras em dia, fazer atividade física, comer direito, dormir direito, quando toca o telefone e de cara você já sabe que não devem ser boas notícias (tocar o telefone hoje em dia é tão raro que já causa um alerta quase que automático). Então vem o choque, um misto de medo e tristeza, e a necessidade de ser resolutiva. Se for alguém muito próximo, talvez seja você a pessoa encarregada de cuidar de detalhes do velório e enterro; ou, se você estiver longe, vai ter que providenciar passagens aéreas caríssimas de última hora. Pausa em tudo o que estava em andamento; as marmitinhas prontas para cada refeição que estavam impecavelmente organizadas na geladeira provavelmente vão estragar, os prazos de trabalhos a serem entregues vão atrasar, o ritmo de treino já era. Essa pausa é o primeiro sintoma do luto, como descreve Joan Didion.

Didion foi uma jornalista e escritora premiada bastante reconhecida nos Estados Unidos e no mundo. Ela faleceu no finalzinho de 2021, mas antes disso passou por duas experiências de luto marcantes e traumáticas, que ela descreve em detalhes nos livros O ano do pensamento mágico e Noites azuis. O documentário The center will not hold, de 2017, disponível na Netflix, vale muito a pena também, porque conta sobre a vida pessoal e profissional de Didion e mostra a rotina que ela tinha com o marido, o também escritor John Gregory Dunne, antes de o mesmo falecer. Um casal intelectual, morando em Hollywood, cheios de conexões importantes. É no mínimo interessante. Eles trabalharam juntos em uma série de projetos, entre eles o roteiro de Nasce uma estrela, versão de 1976, com Barbra Streisand. Não importa como, eles estavam sempre escrevendo juntos: roteiros, crônicas, matérias para jornais, livros. Por isso, perder o marido foi brutal para Didion.

Ela inicia o livro O ano do pensamento mágico desta forma:

A vida muda rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina.

É assim que Didion começa a descrever a ruptura que houve em sua vida, porque de uma hora para a outra tudo que ela entendia como rotina, como familiar e seguro, se desfez. Perder uma pessoa que convive com você diariamente é o luto mais agressivo. Nem sempre se segue uma lógica tão precisa, mas entende-se que quanto mais próximo se é de alguém, mais a perda desse alguém vai doer.

Para mim, a mais impactante das (até o momento) poucas perdas que já sofri, foi a de um dos meus melhores amigos. No dia que ele faleceu, fui com a irmã dele no hospital para pegar um documento que deveria ser enviado à funerária.

Enquanto esperávamos pelo documento, uma das enfermeiras vinha no corredor segurando uma pequena sacola plástica nas mãos. Naquela sacola estavam os poucos pertences do meu amigo, que foram tirados do seu próprio corpo, no momento da internação. Um relógio, uma carteira, e até mesmo uma escova de dentes, ali naquela sacolinha, foi o que restou.

Essa cena me impactou de formas que até hoje sigo processando, tentando encontrar as palavras certas para descrever o que senti. Essa derrota das palavras é o que Chimamanda Ngozi Adichie coloca no Notas sobre o luto, livrinho curtinho e brilhante sobre o tema. Ela diz que:

O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras.

Ainda sobre a problemática com as palavras, quando estamos passando por isso sentimos como “os pêsames podem soar rasos”. Rasos e repetitivos. Muitos “Meus sentimentos”, “Meus pêsames” e “Sinto muito”, toados com toda boa intenção, mas convenhamos, um tanto vazios. Lembrar de uma característica marcante daquele que se foi, uma história significativa, ou até mesmo engraçada, me parecem formas mais recheadas de sentido de honrar as memórias de um ente querido.

Toda a ritualística de luto, começando pela “derrota das palavras”, como diz Chimamanda, é fúnebre. Fúnebre não somente pela tristeza e pela saudade, mas por toda a burocracia, do hospital à funerária, e todo o ritual de velório e enterro em um cemitério cheio de pedras e azulejos frios que deixam a coisa toda muito pior do que deveria ser. O corpo no caixão, as coroas de flores, o discurso do padre que nem conhecia aquela pessoa, os cantos tristes, as pessoas todas cabisbaixas, todo esse conjunto entoa “derrota”.

Talvez seja ilusão minha pensar que poderia existir outros jeitos de morrer, mais bonitos, mais significativos, mais personalizados. Que tenha menos derrota e mais poesia. Afinal, é o destino de todos nós. É a única certeza, infalível e absoluta. Enquanto buscamos outros caminhos, seguimos nas leituras e reflexões sobre o tema. Deixo aqui duas sugestões, para começar:

O ano do pensamento mágico, de Joan Didion

Notas sobre o luto, de Chimamanda Ngozi Adichie