Talvez hoje em dia Pablo Ruiz Picasso seja um dos pintores mais marcantes da história, e o principal do século XX. No ano de 1937, Picasso era o artista vivo mais famoso do mundo. Um prolífico inovador das formas da arte, pioneiro no movimento Cubista, inventor da Colagem, e com inúmeras contribuições para o Simbolismo e o Surrealismo. E que a essa altura estava prestes a criar a mais poderosa pintura antiguerra da história, e uma de suas obras primas. Guernica.

Para se entender o contexto de criação dessa obra, devemos voltar ao 26 de abril de 1937, às 16:30, quando aviões de guerra alemães começam a aparecer sobre o céu de uma pequena vila no interior do país basco, chamada Guernica. Os aviões vinham a mando do regime fascista do então General Franco. Durante três horas, 25 bombardeiros despejaram mais de 40 toneladas de explosivos e bombas incendiárias sobre a cidade, reduzindo o vilarejo à destroços e matando cerca de um terço da população. Esse ataque brutal e sem precedentes chocou o mundo e serviu como ponto de partida para Picasso produzir uma pintura política que é tão relevante hoje em dia quanto era quando ele a pintou, mais de 80 anos atrás.

No ano antes do ataque, em meados de 1936, um grupo de generais de direita lançou um golpe militar no então governo espanhol eleito legalmente, dando início assim a Guerra Civil Espanhola. A guerra já estava acontecendo por seis meses quando Picasso recebeu a encomenda de produzir uma tela para o Pavilhão da República Espanhola, na Exposição Internacional de Artes e Técnicas Aplicadas à Vida Moderna que aconteceria em 1937, na cidade de Paris, justamente onde Picasso residia na época. Picasso era famoso por não ter partido político e sempre afirmar aos republicanos que que não fazia política, mas após meses encarando uma tela em branco, ele ainda lutava para obter inspirações para o seu trabalho. E foi nesse ponto que a história interveio e o tema de sua pintura foi encontrado.  Assim como o resto do mundo, ele abriu o jornal na manhã do dia 27 de abril de 1937, e encontrou imagens do vilarejo de Guernica completamente devastado. Isso o deixou horrorizado e ele começou a trabalhar em rascunhos para o quadro da Exposição. Picasso finalizaria a gigante pintura em poucas semanas.

Entre as grandes habilidades de Picasso, destaca-se a capacidade de reinvenção, assim como no quadro “Les Demoiselles d’Avignon” onde ele brinca e reinventa a idealização da beleza feminina, em Guernica, ele iria reinventar o gênero da pintura histórica.  A primeira característica que se destaca na pintura é o seu tamanho, são quase oito metros de comprimento por quase quatro metros de altura (7,77m x 3,49m). Uma tela que se espalha sobre um único quadro de mesma medida, ao invés de vários pequenos quadros emendados, o que tornava necessário o desmonte e retirada da tela após cada exposição, assim como o processo de enrolar, empacotar e enviar, com muito cuidado, a pintura que viajaria o mundo em exposições para arrecadação de fundos.

 A tela foi preparada com várias camadas de luzes brancas refletivas, e um fundo de pintura bastante antiquada baseada em modelo usado por Da Vinci. Ele queria obter uma superfície fosca para pintar, a camada de fundo é importante nesse sentido porque ela se tornaria parte da composição. Ele usou uma tinta caseira comum, com a quantidade mínima de brilho, fazendo com que a parte clara da pintura seja iluminada enquanto as partes escuras se tornam preto fosco. Devido a urgência da pintura, e o seu atraso em iniciá-la, a velocidade com que ele pintou pode ser observada em algumas partes do trabalho, como tinta escorrida nos dentes inferiores do cavalo, entre outros pequenos defeitos.

Quadro Guernica

Agora nesse momento, peço que você querido leitor abra uma outra aba em seu navegador com a pintura observe atentamente comigo. A cena é intencionalmente caótica, justamente para evocar o horror e confusão da guerra, nós somos jogados em uma paisagem apocalíptica onde os caracteres são sobrepostos e cruzados. Destruição, violência, morte e mutilação, estão por toda parte. Apesar de Picasso possuir qualidades de um artista de vanguarda, nesse quadro ele também aplicou suas qualidades de artista clássico. Em Guernica, a linguagem clássica é usada, pois apesar do caos, existe de fato uma ordem visual. Picasso balanceia a cena organizando as figuras em três grupos verticais, se movendo da esquerda para à direita.  As figuras centrais são estabilizadas por um grande triângulo de iluminação. Na extrema esquerda nós temos a imagem do touro de olhos arregalados, com o corpo em preto e a cabeça em branco. O cavalo e o touro são imagens que Picasso sempre usou em sua carreira como parte do ritual de vida e morte (como no quadro After Bull and Horse – 1927, que faz alusão às festas espanholas de tourada).  O touro é a única figura que realmente está olhando para nós espectadores da cena, Picasso pensou que o touro representasse a brutalidade e escuridão com seu olhar frio e desapegado, em uma tentativa de representar o fascismo ou o próprio General Franco. Um detalhe a se notar é sua cauda em formato irregular, assim como a fumaça que subia na cidade recém atacada pelas bombas. Abaixo do touro uma mulher está segurando uma criança morta, gritando em direção aos céus, com um dos seus seios, que um dia serviram para alimentar sua criança, à mostra, e os olhos em formato de lágrimas. Uma das categorias manchadas pela guerra.

Mais abaixo da mulher temos um soldado, morto, que representa a futilidade e esperança, com seus membros desconjuntados e espalhados pelo chão. Um de seus braços segura uma espada quebrada, símbolo do seu fracasso na luta, e uma pequena muda de flor de papoula branca, o símbolo da esperança. No seu outro braço, na palma de sua mão, temos a marca de uma chaga, que assim como de Jesus Cristo, simboliza o seu último sacrifício.

Entre o touro e o cavalo nós podemos ver um pombo, quase apagado, na parte escura. Normalmente uma representação de paz, na pintura de Picasso ele vem retratado com expressão de sofrimento e um corpo fragmentado, sugerindo que a paz está totalmente destruída. Na parte superior do desenho temos uma lâmpada que é simplesmente o retrato da tecnologia desenvolvida do século XX, com vários significados, podendo ser desde o olho de Deus, observando a insanidade da guerra, como a ideia mais aceita que é a representação da tecnologia responsável pela destruição de Guernica. Outra curiosidade é que em espanhol a palavra para lâmpada é “bombilla”, que lembra imediatamente a palavra ‘’bomb’’.

O cavalo na parte central está urrando, morrendo por uma ferida aberta, mas a sua cabeça ainda aponta para o céu como um último esforço de sobrevivência, sendo quase possível ouvir seus gritos agonizantes. Picasso representa o cavalo como o povo de Guernica.  Na extrema direita, temos a imagem de uma mulher em chamas, que é talvez a maior representação nessa pintura do sentimento antiguerra. A mulher está presa em um edifício que está incendiando, suplicando aos céus, talvez a Deus, ou talvez aos aviões alemães para parar a destruição, e mesmo enquanto ela pede o prédio continua a queimar e desmoronar ao seu redor. A morte será inevitável.

Abaixo temos outra figura aterrorizada de uma mulher com uma das pernas machucadas, o joelho inchado, olhando ansiosamente para cima, para o que seria uma lamparina ou vela, que é justamente a fonte de luz de toda cena (não a lâmpada). A pequena chama é a esperança, sendo forte o suficiente para lançar luz sobre toda a cena, o traço de iluminação que corta o braço que segura a chama define o triângulo inicial de iluminação central. A tentativa da chama é representar o espírito de renascimento da República Espanhola.

Guernica não é proposta para ter uma interpretação singular e única. Nas palavras de Picasso, “Todos nós sabemos que arte não é verdade, arte é uma mentira que nos faz perceber a verdade”.  A ambiguidade de Guernica e a falta de detalhes específicos, faz a pintura ser atemporal. Picasso trabalhou na pintura por apenas 35 dias, terminando-a em 4 de junho de 1937. Quando ela foi revelada na Exposição de Paris, a reação do público foi diversificada. Na opinião dos Oficiais do Pavilhão Espanhol era um trabalho muito de vanguarda, já que eles preferiam uma pintura mais tradicional. No entanto, depois da Exposição de Paris a reputação de Guernica começou a crescer intensamente, viajando a Europa em exposições arrecadando dinheiro para a causa republicana. Alguns anos depois, o início da Segunda Guerra Mundial fez a imagem mais reconhecida e dolorosamente familiar.

Após três anos, a Guerra Civil Espanhola chegou ao fim com o General Franco no poder. Picasso se recusava expor a pintura na Espanha enquanto franco governasse. Então Guernica saiu em nova viagem, pelas Américas, dessa vez para arrecadar dinheiro para os refugiados espanhóis, fugitivos do regime fascista de Franco. Em 1940 a obra foi exposta no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, onde ficaria em exibição semipermanente pelos próximos 35 anos. Picasso continuou vivendo em Paris, a cidade estava ocupada pelos nazistas quando Picasso recebeu a visita de um oficial alemão, que ao se deparar com uma fotografia de Guernica na parede da casa de Picasso perguntou: “-Você fez isso? ” Picasso respondeu: “- Não, vocês fizeram. ”

Em Nova York a fama de Guernica cresceu, e durante a guerra do Vietnã, nos anos 70, se tornou um grande símbolo antiguerra. Em 1974 um manifestante danificou a pintura, pichando as palavras “ kill lies all ”, isso criou manchetes internacionais, e repercutiu no mundo todo. A pintura foi limpa e restaurada, e o vandalismo não causou danos permanentes na pintura.

Imagens de jornais da época com manchetes sobre a pixação em Guernica

O fato de Guernica inspirar paixão e ódio é um testemunho de seu poder duradouro. Picasso morreu em 1973 com 91 anos de idade, ele produziu cerca de 50.000 trabalhos de arte, dentre os quais 1.885 pinturas, sendo Guernica uma de suas obras primas permanecendo intacta. O General Franco morreu em 1975, e após um longo tempo de exílio a pintura voltou para casa.  Nenhum trabalho de arte no século XX deixou sua marca na história de uma forma como Guernica deixou, se tornando um símbolo global de um massacre indiscriminado e ajudando a moldar a luta de um século de guerras. As lições apresentadas em Guernica, de um sofrimento universal ainda não foram aprendidas, por isso a pintura é tão importante hoje assim como foi em 1937.

Guernica não é apenas arte contemporânea, é história.


Matheus Barreto de Góes. Formado em Arquitetura  e Urbanismo pela faculdade, e formado em arte por curiosidade