Olá, leitoras e leitores! Esse é o segundo texto da minha série sobre direitos fundamentais. No primeiro, falei sobre os fundamentos teóricos e o surgimento desses direitos. Agora, vamos começar a falar sobre como eles se transformaram até chegar ao que são hoje, ou seja sobre a história desses direitos. Nesse segundo texto, vamos falar da sua fase liberal.

Fase liberal

Só pra lembrar do outro texto, os direitos humanos fundamentais vêm das ideias iluministas (racionalismo, liberalismo e individualismo – nada de comunismo, como querem fazer crer por aí). A noção de liberalismo que vou trazer aqui é a clássica e está presente em um contexto muito específico, ainda que algumas características sejam aproveitadas na ideologia liberal contemporânea.

Como explicado no outro texto, os direitos fundamentais, como direitos de todo homem e cidadão vão aparecer apenas nas declarações de direito, como a do Bom Povo da Virgínia, de 1776, e a do Homem e do Cidadão, de 1789 (e homem é só o homem mesmo).

Mas esses documentos, inicialmente, não tinham força jurídica, não eram direito e, portanto, não criavam obrigações ao Estado. Esse caráter jurídico vai aparecer apenas nas 10 primeiras emendas à constituição americana, em 1789, e na Constituição francesa de 1791.

Se vocês derem uma lida nas declarações da Virgínia e da França (são curtinhas), vão ver que os direitos nessa fase, que estou chamando de liberal, rodam entorno da liberdade, igualdade e fraternidade propriedade. A ideia básica, portanto, é que todo homem era livre e igual perante a lei, sendo livre, inclusive, para o acumulo de propriedades.

Igualdade formal

A igualdade, nesse contexto, é o que chamamos de igualdade formal ou igualdade perante a lei. Em descrição um pouco anacrônica, não importa se as pessoas sejam diferentes entre si ou se o tratamento igual vai perpetuar desigualdades: a igualdade formal manda tratar todos de forma igual.

Antes de descer o pau na igualdade formal (embora eu meio que já tenha feito isso), é preciso fazer duas considerações.

A igualdade formal como conquista

A primeira é que a igualdade formal é uma grande conquista não apenas para a burguesia da época, mas também para a plebe. Vamos lembrar que, antes da sua consolidação, havia “leis” diferentes para nobreza, clero e plebe, o que essa igualdade vem combater.

Veja bem, hoje, se você tem uma conta no banco e tem muito dinheiro nessa conta, o que o banco faz? Te dá mais dinheiro (lógico que tem que seguir as dicas da Isabela Fonatanella nos textos e spins para fazer o dinheiro render). Agora, se você tem tão pouco dinheiro no banco que a matemática teve que inventar números negativos para calcular, o banco faz o que? Pega mais dinheiro seu.

E por que isso é melhor que antes? Porque sem a igualdade formal, o banco ia (num mundo hipotético) te dar dinheiro porque você é de família nobre e tirar se fosse plebeu. É… Não parece muito diferente, mas agora você tem alguma chance de ficar rico menos pobre (é só seguir as dicas da Isa).

Exageros a parte, não se pode desconsiderar que esse fim da sociedade de castas abriu espaço para outras conquistas (que vou abordar nos próximos textos).

Igualdade formal como generalidade

O segundo ponto pra ressaltar sobre a igualdade formal é que ela está presente no direito até hoje. Ela exige que as leis editadas sejam gerais, que valham pra todas as pessoas indistintamente. Lógico que podem colocar alguns critérios objetivos para se beneficiar da lei (ser idoso, mulher etc.).

Por isso, não é possível uma lei que reconheça que a risada da Debbie traz alegria para o mundo e ela deve receber $$$ por isso. Mas pode ter uma lei pela qual todas as pessoas cuja risada traga alegria pro mundo tenham esse benefício.

O exemplo é exagerado, mas isso é tão forte que, mesmo na ditadura civil-militar teve um episódio em que isso foi importante: o da Lei Fleury.

Caso não saibam, o nosso Código de Processo Penal é do ano de 1941, quando o Brasil estava passando pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (confere o Fronteiras sobre o tema). Não foi o momento mais democrático do Brasil e, como esperado, não gerou um Processo Penal muito favorável à defesa da inocência.

Esse Código já sofreu muitas reformas por lei ou declarações de inconstitucionalidade (mas passou da hora de fazer outro, né?). Uma dessas foi a Lei Fleury. Antes dessa lei, o Código previa que caso alguém fosse condenado em 1ª instância, ou fosse pronunciado, deveria responder o processo preso.

A pronúncia é algo muito inicial no processo de Tribunal do Júri. O Tribunal do Júri só ocorre no Brasil em crimes dolosos contra a vida (como homicídio e aborto). A pronúncia, basicamente, é a decisão que ocorre no início do processo para decidir se é ou não caso de júri. Basta que se demonstre que aconteceu um crime doloso contra a vida e que existem indícios (não provas) de que foi o réu quem o cometeu. Pronto, tá preso o réu.

Acontece que, na Ditadura Civil-Militar, um promotor chamado Hélio Bicudo usou isso para prender um delegado chamado Sérgio Fleury. Esse delegado era da base do governo ditatorial e foi preso por atuar no grupo de extermínio chamado Esquadrão da Morte.

Lógico que ele ia acabar sendo absolvido, mas, para que não tivesse que ficar preso até lá, em 1973, o Congresso dominado pelo governo passou uma lei conhecida por Lei Fleury.

Por causa da igualdade formal, a lei não poderia dizer que o Fleury tinha direito de responder em liberdade. Por isso, colocou que, mesmo após a pronúncia ou a condenação em 1ª instância, o réu poderia recorrer em liberdade se fosse primário e de bons antecedentes.

Essa lei era o que muitos juízes precisavam para não decretar prisões sumárias nessa época de forte repressão política.

Liberdade negativa

Os direitos de liberdade presente nas primeiras constituição não eram tão diferentes dos que temos hoje: liberdade de expressão, de locomoção (o conhecido “ir e vir”), de associação, reunião, imprensa etc. Contudo, assim como a igualdade, a liberdade não tinha a mesma concepção que hoje (além de não ligar muito pra escravidão).

Atualmente, temos duas dimensões da liberdade. Pela liberdade positiva, o Estado tem dever de atuar para garantir real liberdade das pessoas. Pela negativa, basta que o Estado respeite as liberdades.

Nesse momento do Estado liberal só existia a concepção negativa. Assim, o Estado não estava nem aí pra saber se você  estava conseguindo ou não ser livre, mas só se comprometia a, ele mesmo, não tirar sua liberdade. Em outras palavras, o Estado não ia te impedir de falar, se reunir e, o que importava muito pra época, fazer contratos. Também não ia intervir de qualquer forma nesses atos da sua vida privada, nem mesmo pra te ajudar.

Um exemplo da força dessa liberdade é O Mercador de Veneza, apropriado pela nossa cultura no Auto da Compadecida. Nele, duas pessoas fazem um contrato em que a garantia do pagamento é uma tira de couro que pode ser retirada do devedor. Como todos são livres pra fazer esse contrato, ele deve ser cumprido.

-Ah, mas e a dignidade da pessoa humana? (você me pergunta)

Não tá valendo ainda não. O Estado não vai intervir nos seus negócios privados, a não ser pra te fazer cumprir.

Eu empolgo um pouco nas críticas, mas é para fins lúdicos (apesar de que tem um povo que ainda defende ideias de séculos atrás). Novamente, essa noção de liberdade deve ser entendida dentro do contexto de ruptura com um Estado absolutista (olha o fronteiras sendo citado aqui de novo).

Liberdade não é fazer o que quiser

Vale, porém, trazer um ponto que muita gente ignora e que vale até hoje: liberdade não é fazer tudo o que você quiser, sem consequências.

Tem muitos conceitos de liberdade, mas, em geral, todos trazem a ideia de limitação, sendo a mais influente no direito a de Montesquieu: “Liberdade é o direito de fazer tudo o quanto as leis permitem”. Parece estranho, mas ele já explica: “se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, não teria mais liberdade porque os outros teriam idêntico poder”.

Isso diferencia “liberdade” de “licenciosidade” e, como notaram, está muito ligado à ideia de “minha liberdade termina onde começa a do outro”. Como as leis são gerais e iguais para todos e são frutos da vontade do povo (essa última parte é meio questionável, mas liguem a suspensão de descrença), faz sentido pensar que somos livres se seguirmos as leis, que nós mesmos nos impomos.

Liberdade implica responsabilidade

É por isso que a liberdade implica responsabilidade, o que, no direito, significa dizer que você pode ser preso e pode ter que pagar indenização (desde que isso seja previsto em lei).

Portanto, se você falar alguma besteira e todo mundo te mandar ficar quieto (eu sou educado e não escrevo expressões rudes como “calar a boca”), não venha com o mimimi de falar que as pessoas estão de mimimi e que não pode mais falar nada (sim, reclamar do mimimi também é mimimi).

Então, se você ofender alguém e tiver que pagar danos morais, não venha falar que cercearam sua liberdade de expressão. Por quê? Porque liberdade é fazer o que a lei não proíbe. Porque liberdade implica responsabilidade pelos seus atos. Se você conseguiu falar o que queria, ainda que tenha que responder por isso, você não teve sua liberdade tolhida.

Propriedade privada

(esse é curtinho)

A propriedade era justificada como um pressuposto da liberdade, pois, você não é livre se tiver tirado de você os frutos da sua herança que você tem porque mereceu do seu trabalho. Portanto, em primeiro lugar, você é proprietário de si mesmo e, por isso, é proprietário de seus bens.

Novamente, o contexto explica bem a valorização desse direito. No Estado absolutista, não se tinha o conceito de propriedade privada como conhecemos hoje, pois a sociedade era mais coletivista. Além disso, o Estado usava os tributos para confiscar sem muitos limites, que não o nível de tolerância das pessoas, os bens das pessoas.

Além da limitação do poder de tributar, o que resulta desse contexto é um poder pleno que o proprietário tem sobre seus bens, não cabendo ao Estado, em qualquer nível, dizer o que cada um pode ou não fazer com suas coisas.

Se quer usar, não usar, quebrar, tacar fogo etc., faz o que tu queres, pois é tudo da lei. Hoje, felizmente, a propriedade precisa cumprir sua função social, por isso ninguém põe fogo nas terras.

O (não) poder dos direitos e a noção de democracia

Para além desse conteúdo material dos direitos, o último ponto que vale destacar é o poder que (não) tinham. Embora hoje estejamos muito acostumados a ver que o STF declarou uma lei inconstitucional ou que reconheceu algum direito que não estava previsto em lei, isso nem sempre foi assim.

Democracia formal

A noção que se tinha é a que hoje chamamos “democracia formal”, que é a que muita gente acha que tá valendo até hoje: a da vontade da maioria. Por ela, a Constituição determina a separação dos poderes e alguns procedimentos que esses poderes devem seguir pra fazer alguma coisa.

Portanto, a tomada de decisão fica condicionada a duas coisas: autoridade competente e procedimento adequado.

Autoridade competente significa que é a autoridade a quem a constituição compete determinada função. Não tem relação com o governante que sanciona a lei ser um incompetente (ou não teríamos muitas leis).

Então, se uma lei fosse aprovada pelo legislativo e sancionada pelo Presidente, ela estaria valendo. Não cabia, na maioria dos casos, que o judiciário declarasse a lei inconstitucional.

Percebam, portanto, que os direitos fundamentais não tinham um papel muito significativo. Eram mais objetivos que o governo e o legislativo deveriam ter em mente do que limites reais, que obrigatoriamente deveriam ser seguidos.

Os casos excepcionais em que se declarava uma lei inconstitucional eram quando se entendia que a Constituição não havia dado aquela competência àquela autoridade. O caso mais citado, o primeiro caso de controle de constitucionalidade, é o Caso Marbury vs. Madison. Pra fazer uma analogia bem grosseira, foi delcarado que, diferente do que dizia a lei, a Supremo Corte não podia julgar um mandado de segurança de um juiz de paz pois a constituição não lhe dava essa competência (algum dia eu devo abordar por aqui).

Quem era o cidadão?

Acontece que qualquer coerência teórica desse modelo de que as leis, fruto da vontade de uma sociedade de pessoas livres e iguais, podiam quase tudo, ia por água abaixo quando não eram todos que votavam.

Aqui, precisamos entender o que é um cidadão. Cidadão, pelo direito, é aquele que tem direitos políticos. Por isso que, quando você é descendente de um país e quer virar daquele país, não vai buscar a cidadania, e sim a nacionalidade.

Quem define quem é o cidadão? Quem tem direito de votar e ser votado? A Constituição.

Se hoje, por exemplo, crianças não são cidadãs, no modelo liberal, não eram cidadãos as mulheres, os escravos e os pobres em geral. Para poder votar ou ser votado era preciso ser homem e ter propriedades ou uma boa renda (mas não precisava ser nobre, olha que inclusiva essa democracia).

Palavras finais

Fica claro que os direitos fundamentais, se não tinham muito efeito para proteger a burguesia de eventuais ataques do legislativo, não faziam nada para ajudar os mais pobres ou os escravos. Isso vai demorar algumas fases (e dois textos dessa série para mudar).

Eu dei alguma exagerada em algumas críticas para fins lúdicos. Então tenha em mente que esse modelo liberal deve ser entendido dentro de seu contexto e contra o modelo absolutista. É fácil julgar hoje, assim como vai ser fácil falar mal da gente daqui alguns anos (diria que tenho certeza, mas a desesperança da piora é forte).

Isso não significa que não devemos criticar o Estado liberal, pelo contrário, era um modelo ideal para perpetuar muitas desigualdades sociais.

De fato, são essas mesmas desigualdades sociais que vão levar à segunda fase dos direitos humanos fundamentais. Essas, vamos tratar no próximo texto dessa série.