Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

Para ver todas as imagens deste episódio, entre nesta galeria.

Capítulo 1 – O Resgate

Jayme inicia o protocolo de emergência e a equipe de busca é acionada.

O primeiro passo era identificar o local exato do acidente. 3 aviões de reconhecimento sobem aos céus, dentre eles está um T-6 pilotado pela própria Ada. Ela insistiu muito em participar da equipe de busca e, com seu histórico de 213 missões de patrulha para a FAB e sua habilidade única de voo visual, Lacerda não tinha motivos para impedi-la. Após 3 horas de patrulha, é ela que reporta:

 Alcântara, T-6 1428, avistei um foco de incêndio na mata, possível local da queda do jato. Coordenadas 3,22 S; 44,43 W.

Fazer um resgate em mata fechada é muito complicado, ainda mais naquela época. Para você ter uma ideia, a Força Aérea só tinha 3 helicópteros, que ficavam no Rio de Janeiro. Requisitaram um deles, mas levaria dias até chegar no Maranhão. Enquanto isso, acionaram um hidroavião Catalina baseado em Belém, que deixou uma equipe tática do exército nas margens do rio Mearim, a 30km do local.

No fim daquele dia, com muito esforço, os patrulheiros encontraram os destroços do Goitacá, mas não havia sinal do Ivo por perto. O seu paraquedas poderia ter caído numa área a quilômetros de distância dali.

Passam-se dois dias sem sinais de Ivo. As rondas aéreas continuam, mas somente no terceiro dia, com a chegada do helicóptero, é que finalmente conseguem avistar um paraquedas rasgado entre a copa das árvores.

Na tarde do terceiro dia a equipe do exército escala aquela árvore para encontrar um Ivo sem vida, enrolado no paraquedas, com o peito perfurado por galhos e uma fratura nas pernas.

Parece que ele se feriu feio na queda e não conseguiu se desvencilhar do paraquedas. Com o pulmão comprometido e uma hemorragia interna, só lhe restava aguardar um resgate milagroso, que não chegou a tempo. Percebendo que não resistiria mais, Ivo escreveu duas cartas, uma para sua família e outra para Ada.

— Minha cara Gaivota Solitária. Se estiver lendo isto é porque eu terei feito meu último voo…

— Não! Eu não quero ler isso. Desculpa, Ivo, mas eu não consigo.

Ela dobra a carta e a coloca no bolso do macacão. Já sentia uma culpa gigante sobre seus ombros, pois ela havia declinado daquela missão para continuar com os testes do novo motor do Apoena. 

— Se eu tivesse cumprido minha escala, Ivo estaria vivo. Era para EU estar naquele voo.

Ada, ninguém tem culpa, foi um acidente. Ada? Ada?

O clima na base de Alcântara ficou muito pesado, uma sombra pairava sobre cada um. Ivo, com sua alegria contagiante e seu sotaque acolhedor, era querido por todos e sua falta era sentida profundamente. O programa espacial, com tantos lançamentos de sucesso e tantos voos espetaculares, tomava um golpe duro, um revés que ninguém esperava.

O Brasil todo comentava sobre a morte de Ivo, com incontáveis declarações de carinho e uma enorme multidão presente em seu velório. Ele foi enterrado sob a bandeira do Brasil e as asas da FAB, com honrarias e disparos de fuzil.

Ao mesmo tempo, surgia uma nova comoção popular, impulsionada pelos tabloides, questionando se o programa tripulado era seguro o suficiente ou até mesmo necessário. Uma coletiva de imprensa foi chamada para conter os danos.

Todos sentimos muitíssimo pelo ocorrido, mas é importante esclarecer que o assento ejetável funcionou corretamente e o paraquedas se abriu como esperado. Foi uma fatalidade o fato do piloto se ferir gravemente no pouso.

— Dr. Richard, já houve dois outros pousos de emergência anteriores, em que uma fatalidade foi evitada por muito pouco. Esses aviões são seguros?

— Não, não são seguros. São aviões experimentais que são feitos para voar no limite. É por isso que os pilotos de teste tem que ser muito habilidosos, para lidarem com problemas que aviões normais não tem.

É…, só para esclarecer, os aviões são seguros dentro do possível. Nada diferente do que os outros países fazem. E, lembrando, a morte do major Ivo não foi por problemas no sistema de segurança.

— E você Ada, como se sente com tudo isso? Considerando os recentes incidentes com explosão de motor, falhas no trem de pouso e capotagens, você ainda tem confiança em voar?

— Quando eu me inscrevi no programa, deixaram claro para mim quais eram os riscos. Sim, o Richard me disse a mesma coisa que falou pra vocês “os aviões não são seguros”. E ainda assim eu decidi me inscrever. Ninguém me forçou a nada e eu continuo escolhendo, a cada dia, pilotar aqueles aviões. Eu nasci para voar, é nisso que eu durmo e acordo pensando todos os dias. Durante a minha vida atravessei montanhas, florestas e desertos. Voei até o limite do norte e depois fui ao extremo sul. Hoje subi mais alto que todo mundo, mas isso não é suficiente, os americanos vão tentar um novo salto semana que vem. Caros jornalistas, a minha vida eu doei para o céu, assim como o Ivo, e a pior coisa que pode nos acontecer não é morrer, mas nos impedir de voar. Com licença agora, pois eu tenho que me preparar pra minha próxima missão.

Não havia como continuar a coletiva depois daquilo. Ada era uma força tão poderosa que apequenava tudo ao redor. Aquele discurso contagiou de tamanha maneira o Brasil que houve um recorde de inscritos para a seletiva do novo piloto de teste. Centenas de homens e dezenas de mulheres se candidataram para a vaga, a Jamile não dava conta de registrar todos aqueles pedidos.

— Jesus amado, eu tenho certeza que tem mais carta aqui do que o Brasil tem de piloto de avião.

Não era só isso, os feitos e palavras de Ada Rogato viriam a inspirar toda uma geração de garotas que cresceriam sabendo que uma mulher podia ser quem ela quisesse.

Capítulo 2 – O Salto

Enquanto a equipe do Zé termina de instalar o novo motor no Apoena, Ada fica ajudando na avaliação dos candidatos a piloto de teste. Com a quantidade enorme de inscritos, eles puderam pré-selecionar 30 aviadores muito habilidosos e a disputa foi extremamente acirrada. No fim, quem se destacou mais, principalmente nos testes de pilotagem, foi um jovem prodígio da FAB de 28 anos, o capitão gaúcho Francisco Santos.

— Seja bem vindo, novato!

— Mas que barbaridade! Que honra, Dona Rogato! Chega me arrepiar as melenas de te conhecer!

— Não sei o que é isso, mas obrigada hahahaha!

—  Hahahah mas nem dê bola. Quando fico nervoso a língua véia parece que não para quieta dentro da boca.

Nesse meio tempo, chegou a notícia que um piloto americano havia cruzado a barreira dos 70km, com 73.200m de altura, voando um avião-foguete com asas pra frente e canards, porém havia falecido no retorno, quando as asas se partiram durante o mergulho.

No dia 7 de abril de 1957, Ada embarcou no Apoena equipado com o novo motor, o XBR-11, que era mais sedento que a versão anterior, consumindo 9,2 litros de álcool e 8,2 litros de oxigênio líquido por segundo, para criar uma força de 4 toneladas de impulso.

— Boa sorte, Ada. Lembra que agora você só tem 3 minutos e 42 segundos de queima, em vez dos 5 minutos que tá acostumada. Mas deve ser suficiente pra passar do gringo.

— Valeu Zé, brigada por tudo. Vou pra cima deles!

Ao se liberar do bombardeiro B-17 a 10km de altura, Ada liga o novo motor, que rapidamente a leva até 3.000km/h, quando ela puxa o manche com força para trás.

— Atenção pessoal, a nossa “Rainha do Ar” começou o “salto”, esse é o momento crítico da missão. A gente quer passar os americanos. Vamo Ada, você consegue. O Apoena acabou de cruzar os 40 km e tá acelerando, tá subindo…

O Apoena respondia muito bem e Ada estava confiante:

— Alcântara, cravei nos 68 graus, tudo nominal.

— Tudo certo, Ada. 

Ela tinha conseguido inclinar o Apoena numa subida de 68°, o valor exato que o Jayme calculou para passar dos 70km e ainda conseguir um mergulho seguro. Quanto mais na vertical você sobe, mais na vertical você desce e maior é o impacto da queda.

— Ada, teste de rádio, você copia?

— Alcântara, alto e claro.

— Ótimo, a nova antena consegue cruzar a ionosfera. Estou contigo até o final, Ada. Vai filhão!

O combustível termina aos 65km e o Apoena continua subindo.

— Tudo certo, tudo nominal galera. Os motores apagaram e agora a Ada tá subindo na banguela. 70km de altura, já é recorde brasileiro. Mas a gente quer mais, a gente quer bater os americanos, 71 … 72… falta pouco.

Nesse momento Ada começa a ouvir um chiado estranho na cabine.

— Ai, diacho de pavão atrapalhado! Alcântara, éee, temos um problema. A pressão da cabine tá baixando.

— Zé! Zéee! Vem aqui. Tem algum vazamento na cabine.

Ai porra. Ada? Quanto tá marcando?

— 0,7 Bar… 0,65.

— Abre o sistema auxiliar de oxigênio.

— 74km de altura, recorde pro Brasil, chupa Estados Unidos. Ada Rogato está fazendo história novamente, que momento incrível. Galera, atenção. O alarme de descompressão disparou, problema grave na cabine.

A 74km de altura, o ar era tão rarefeito que a vedação da escotilha não suportou e começou a ceder. Mesmo com os dois tanques de oxigênio liberando ar no máximo, a pressão continuava a cair.

— 0,2 bar, dificuldade de respirar.

— Ada, você precisa achar o vazamento, não tem outro jeito. São Longuinho São Longuinho… vamo de 3 pulinhos dessa vez vai?

Segurando o fôlego para não apagar, ela pega a flanela de limpar o vidro e a agita perto da escotilha. Alguns fiapos são atraídos para um ponto na direção da dobradiça.

— Achei!

— Fecha com silver tape.

Com a oxigenação baixando, ela luta para não apagar. O remendo com silver tape começou a fazer efeito e a pressão foi subindo lentamente.

— 0,4 bar… Deu certo, Zé!

— O alarme desligou! Ufa! Boa Ada. Vai controlando aí o vazamento, daqui a pouco você já tá de volta. 1, 2, 3.

— Galera, o alarme parou, parece que tá tudo bem com a nossa piloto. Ela conseguiu segurar o vazamento e o Apoena já tá voltando… o ponto mais alto foi 75.200m de altura. Momento histórico.

Conforme o Apoena baixava, o vazamento foi diminuindo até parar completamente. Durante o mergulho, nossa piloto veterana não teve dificuldades de trazer o avião para a horizontal, dessa vez só precisou suportar 8Gs por 20 segundos. O problema é que ela não tava encontrando a pista de pouso. O salto foi mais comprido do que o esperado e ela tinha passado em muito a base. Planando a 12km de altura, Ada faz uma curva de 180 graus e avista a pista quase no horizonte. Ela usa toda a sua habilidade de planador para encontrar a taxa ideal de descida, o que parece insuficiente. Procurando as rajadas de vento, ela vai surfando as correntes, buscando espremer cada metro a mais de distância conforme o avião vai caindo – ainda era insuficiente.

A 100m de altura, a cabeceira da pista estava a uns 300m de distância. Ada foi trazendo o nariz do Apoena para trás, para ganhar mais sustentação, perdendo velocidade, se aproximando perigosamente do limite de estol, quando o fluxo de ar descola da asa e o avião despenca. Mesmo tendo “amansado” o Apoena, agora ela estava exigindo demais dele. As rodinhas tocam no limite da pista, mas a instabilidade é tão grande que o avião gira. A asa esquerda se parte e o Apoena vai se arrastando de lado, até parar de barriga pra cima, igualzinho ao pouso do Ivo.

Naquele momento, Ada não conseguiu mais ignorar a morte do companheiro. Ela tava tentando esconder tudo aquilo num canto escuro da sua mente, até que aquele pouso arrancou as cortinas e trouxe Ivo pra perto novamente.

Colocando a mão no bolso do macacão, ela retira a carta, toda suja e manchada de sangue, em que se lia as palavras “para Ada Rogato”.

“Minha cara Gaivota Solitária. Se estiver lendo isto é porque eu terei feito meu último voo. Foram dois anos desde que aportamos juntos em Alcântara. Dois anos de aventuras aéreas, de desafios arrepiantes, de grandes feitos e de pousos espetaculares (os meus mais que os seus pois eu insistia em terminar de cabeça para baixo)”

— Agora você não é o único.

“Ada, sua destreza, coragem e paixão pelo céu não conhecem limites. Em nossos voos, vi em você não apenas uma companheira, mas uma verdadeira pioneira, uma força da natureza.

Agora, enquanto o silêncio da floresta me envolve e as estrelas brilham acima, sinto uma paz estranha. Talvez seja o céu se preparando para me receber, ou talvez seja apenas a tranquilidade de saber que você vai continuar, que seus sonhos seguem adiante, que seus voos chegarão mais e mais alto e, eu, de alguma maneira, poderei me realizar em ti.

Ada, minha cara Gaivota, eu tenho um último pedido, uma promessa que gostaria que você fizesse para mim: seja a primeira pessoa a chegar no espaço. Você sempre teve os olhos voltados para as estrelas, e eu não consigo pensar em ninguém mais merecedora para reivindicar o céu em nome de todos nós. Prometa-me, Ada, que você levará nossos sonhos além desta Terra, que cruzará a fronteira final e tocará o grande desconhecido.

Com todo o meu carinho e admiração,

Ivo Lopes”

— Eu prometo Ivo! Eu prometo.

Capítulo 3 – A Bunda da Formiga

Com seu novo voo, Ada trazia novamente o Brasil para o lugar mais alto no céu, só que a corrida para o espaço tava só começando. A descompressão da cabine foi importante para revelar algumas falhas de projeto que seriam melhoradas na próxima cápsula. O Apoena, porém, foi impedido de voar mais alto, 75km era o seu teto. Ele seria reformado e ainda serviria para outras missões, porém, seria necessário um novo avião-foguete para ir além. Também era preciso um novo jato para entrar no lugar do Goitacá, mas sua construção não começaria agora, pois nesse momento os engenheiros estavam focados em outra coisa: o foguete orbital.

Bom, pra ser honesto, não era exatamente no foguete, e sim na torre de integração. Para se construir um foguete daquele porte era preciso, antes, ter uma torre de 3 andares, toda equipada com guindaste, máquinas pesadas, tanques com propelente etc. Levou quase um ano para que os 102 engenheiros da base terminassem a torre de 40m, quando então se juntaram a eles mais 20 recém contratados para acelerar ao máximo a construção do novo foguete.

O Ano Internacional da Geofísica começava agora, em julho de 1957, e iria até o final de 1958 (ou seja, na verdade o Ano da Geofísica era de fato 1 ano e meio). E nesse período, 67 países se comprometeram em compartilhar dados científicos relacionados ao planeta Terra, como um esforço de cooperação para o avanço da ciência mundial e diminuir as barreiras entre os países. Para tanto, foram criados 3 bancos de dados mundiais, cada um contendo uma cópia de todos os dados gerados durante esse ciclo. Um nos Estados Unidos, um na União Soviética e um terceiro subdividido entre a Europa, Austrália, Japão e o Brasil. Juscelino conseguiu entrar nessa elite justamente por seu programa espacial, ao fazer uma promessa de que o Brasil lançaria um satélite antes do fim daquele período. Tanto os EUA quanto a URSS já haviam feito essa promessa também, era por conta disso que os russos estavam em Alcântara, para tentar fazer órbita antes dos americanos. Porém, quando Juscelino fez o mesmo anúncio, aquilo virou uma piada internacional. Claro que os avanços do Brasil eram inegáveis, principalmente no programa dos super aviões. Mas lançar um satélite era algo muito mais complexo. De qualquer maneira, para não soar um deboche, decidiram inserir o Brasil como um dos guardiões do banco de dados, na pendência da gente conseguir honrar tal promessa. Por isso, o programa do Foguete Orbital estava a todo o vapor, aquilo era questão de orgulho para JK.

E não é que os soviéticos saíram na frente? No dia primeiro de julho de 1957, assim que começou oficialmente o Ano Geofísico, um foguete enorme chamado R-7, que era, na verdade, um míssil adaptado, decolou da Base de Alcântara carregando um satélite chamado Sputnik (que significa satélite em russo, eles são muito criativos). O lançamento deu certo e assim os soviéticos inauguraram o placar. Os americanos reclamaram, dizendo que se não fosse a ajuda do Brasil eles nunca teriam conseguido e blablabla, mas, fato é que o Sputnik-1 cruzava os céus do mundo a cada 96 minutos, emitindo um bip que podia ser ouvido por qualquer radioamador do planeta. Aquilo foi um gol de mestre.

Meses depois, mais um gol soviético, ao lançarem a cadela Laika para o espaço, o primeiro animal a fazer órbita na Terra.

Em 6 de dezembro os EUA tentaram lançar seu primeiro satélite a bordo do foguete Vanguard, mas após 2 segundos da decolagem, os motores perderam potência e o foguete deu marcha ré, explodindo no solo.

Um mês e meio depois era a vez do Brasil. Contratando mais 58 engenheiros nesse período, o Brasil conseguiu um feito ao colocar na plataforma um lindo foguete de 22m de altura, dos quais 16m consistiam em um cilindro grande, de 2,15m de diâmetro, e o restante era um cilindro menor, de 1,25m, que terminava num cone pontudo. Seu corpo branco era adornado por faixas verticais azuis que subiam só até a metade de cada cilindro. Um anel dourado marcava a separação entre o primeiro e o segundo estágios, encimado por uma saia azul que fazia a junção entre o cilindro grande e o pequeno. No topo, o satélite brasileiro em forma de cone dourado, com o número 1 estampado, se projetava de uma coifa azul, feita para se abrir como uma flor e liberar o satélite no momento certo. No centro do foguete, sobre a parte branca, estava o logo vistoso da AEB, a Agência Espacial Brasileira, e na base, escrito na vertical, fulgurava o VAI FILHÃO com bandeira do Brasil separando o VAI do FILHÃO. Na competição de foguete mais bonito, o Brasil ganhava disparado.

Todo mundo da base queria ver o foguetão de perto, e claro que a Jamile não faria diferente:

— Olha aí, que foguete maneiro, tu que desenhou Jayme?

— Ah, oi Jamile. Foi. Eu e o Richard. Mas agora que eu vi você, me lembrei que falta por um nome nele.

— Ah, lá vem você. Por sorte ainda é 4 da tarde. Você já pensou em alguma coisa Zé?

— Só umas ideias. A gente primeiro tem que escolher o nome da classe do foguete, que é como se fosse o modelo de um carro. Esse nome é sempre indígena.

— To sabendo, eu que registro isso Zé.

— Ah, é verdade, foi mal. É que eu tenho que ficar explicando isso pra todo mundo: Arapuá é a classe do foguete, Garbosa é o nome daquele Arapuá específico. Mas… sei lá, tava pensando em Tupã, o deus do Trovão.

— Sei não Zé, aí amanhã a gente faz um foguete maior e vai chamar do quê? Vai acabar igual os americanos, fizeram um Júpiter, depois um Atlas… o que pode ser maior que um titã que carrega o planeta nas costas? Espertos são os soviéticos: R-1, R-2, R-3… já chegaram no R-7.

— Tem razão quatro-olho. Bom, a gente começou bem com Arapuá, a abelha. Depois o Laurare, marimbondo. Qual o próximo passo?

— Olha, vou dizer que fico olhando pro foguete e só consigo ver essa bunda enorme, parece uma Tanajura, sabe? Essas formigas com a bunda gigante? haha

— Hahah pior que parece mesmo, mas duvido que o Lacerda aceitaria colocar um nome por conta da bunda avantajada do foguete.

— E o que ele entende de tupi? É só falar que tanajura significa, sei lá, “rainha da tribo” ou qualquer coisa assim. Deixa comigo, hahah.

Na manhã do dia 28 de janeiro de 1958, a Tanajura 1 – Pioneira, estava sendo abastecida na Torre de Integração. Havia uma multidão nas proximidades, incluindo o próprio presidente do Brasil. Pensa na vontade política para fazer aquele foguete sair em apenas 3 anos. A parte mais complicada foi, obviamente, com os motores. O primeiro estágio era impulsionado por uma cópia do motor soviético RD-108, feita a partir da engenharia reversa de uma peça queimada. Foram dois anos de muito trabalho e muito dinheiro para começar a gerar os primeiros protótipos. E pra ser honesto, esse motor que tava embarcado na Pioneira, ainda era um protótipo: um motor só termina de amadurecer mesmo, depois de uma dezena de lançamentos.

Às 10 da manhã a Torre de Integração começou a andar para trás, deixando o foguete à mostra. Isso mesmo, não era o foguete que saía da casinha, era a casinha que saía do foguete.

— Estou impressionado, galera, a torre inteira tá se mexendo. Palmas para o Brasil, essa ideia é fantástica. Mover um foguete desse tamanho pode gerar um monte de problema, vai que solta uma solda, ou enverga um parafuso… Atenção, vai começar a contagem regressiva. 10, 9, 8, é o Brasil galera, a gente vai por um satélite em órbita antes dos americanos, 3, 2, 1… Vaaaaaaaai Filhãaaaaao…. partiuuuuuuuu. O motor acendeu, que bonito, tá subindo, 100 metros, 200 metros… opa, parece que tá reduzindo… o motor parece que deu problema, tá com pouca força. Ixi, Pioneira tá voltando, e agora começou girar, tá caindo de lado.

— Vai cair na plataforma, aciona Jayme.

— Ah, não acredito. Lá vai. Acionando detonação de segurança em 3, 2, 1.

Explosão.

Epílogo

Você ouviu o décimo episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

O recorde americano de 73km de altura, não ocorreu na realidade. Nessa época, o programa americano de aviões experimentais estava testando diversos modelos para aplicações diferentes e não estavam focando somente em chegar mais alto. O recorde que eles tinham de 7 de setembro de 1956 era 38km de altura com o X-2. Porém, acredito que no momento que o Brasil chega nos 69km, os EUA ficariam muito mordidos e tentariam de tudo para bater o recorde brasileiro. Na história real, os americanos só passariam dessa marca na década de 1960 com o avião X-15.

Aposto que muita gente ficou em dúvida se já existia silver tape em 1957. Sim, existia. A fita foi criada durante a segunda guerra para resolver um problema de embalagem. Uma funcionária de uma fábrica de munição, a Vesta Stoudt, estava incomodada em usar cera para lacrar as caixas, pois os soldados tinham muita dificuldade em abrir depois, e ficavam expostos no meio da batalha tentando abrir a caixa de munição. Ela teve a ideia de criar uma fita emborrachada à prova d’água pra substituir a cera. Seu supervisor gostou da ideia, mas achava que seria muito complicado. Ela, então, enviou uma carta para o presidente Roosevelt explicando em detalhes como seria possível fazer tal fita. Ele ficou tão empolgado que mandou a receita para Johnson & Johnson desenvolver o que eles chamam de duct tape, e a gente chama de silver tape. Curioso como a gente criou um outro nome em inglês que não é o que eles usam. É igual pendrive, que lá fora o nome é flash drive. Logo os soldados perceberam que a tal duct tape era muito útil para remendar botas, tendas e reparar qualquer coisa. Então é bem possível que já se usasse essas fitas por aqui 14 anos depois do seu invento.

O Ano Geofísico Internacional foi um evento real que teve origem no Ano Polar Internacional. No final do século 19 a região dos pólos era muito pouco explorada então houve um esforço internacional para, durante o ano de 1882-83, 11 países fizessem diversas medições em conjunto para entender os fenômenos do Ártico.

Décadas depois, logo após o fim da primeira grande guerra, efeitos estranhos foram sentidos nas linhas de telégrafo, rádio e telefone, o que convenceu os cientistas de que a natureza dos fenômenos eletromagnéticos da Terra precisavam ser melhor compreendidos. Assim realizou-se um Segundo Ano Polar Internacional entre 1932-33 onde 44 países colaboraram para mapear a Ionosfera e realizar medições magnéticas no ártico. O problema é que grande parte desses dados acabou se perdendo devido à Segunda Guerra Mundial.

Por isso, em 1957-58, quando realizou-se o novo esforço de colaboração científica para mapear melhor os fenômenos da Terra, resolveram criar 3 bancos de dados, cada um contendo uma cópia de todos os dados obtidos. Na história real o Brasil participou do Ano Geofísico Internacional, mas não foi agraciado com uma dos bancos de dados. Na nossa história, porém, acredito que fazia sentido o Brasil conseguir esse destaque, desde que pudesse cumprir a promessa de Juscelino.

O primeiro satélite do mundo foi, de fato, o Sputnik I mas, na história real, ele foi lançado em 4 de outubro de 1957. Como, na nossa história alternativa, os soviéticos lançaram de Alcântara e tiveram bastante vantagem energética por conta disso, achei razoável colocar o lançamento do Sputnik alguns meses antes, logo no início do Ano Geofísico.

Já a tentativa do primeiro satélite americano, o Vanguard 1A, ocorreu exatamente como relatado no episódio, e o vídeo desse fracasso pode ser visto no youtube, segue link: https://youtu.be/oULJDQCYmdw?si=ub955q_L1R3oPGgE&t=23

A Torre de Integração que se move foi totalmente inspirada na Torre do foguete brasileiro VLS, que explodiu em 2003, evento que acabou dando origem a este podcast que você tá ouvindo. Eu resolve modelar a torre quase igualzinha a original, como uma forma de homenagem, e porque eu acho a ideia realmente fantástica. É a cara do Brasil inventar algo assim. Eu só não fiz ela idêntica porque eu acho a original meio feia, então dei uma garibada. Mas todos os elementos estão lá, as 3 plataformas basculantes, a bandeira do Brasil na marquise, as rodinhas, enfim, fiz bem caprichado. Você pode ver as imagens no post desse episódio, só acessar o link que aparece no seu agregador.

Por fim, o nome Tanajura, como é chamada a rainha das formigas saúvas, significa em tupi “o senhor da nossa aldeia”. Então, no final, o Zé até que acertou ao inventar pro Lacerda que significava “rainha da tribo”. Que coincidência curiosa, não é?

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Cassani por Sergio Sacani.

Ada Rogato e Jamile por Juliana Vilela (Jujuba).

Lacerda por Marcelo Guaxinim.

Jayme e Chico Santos por Lennon Biancato Ruhnke.

Zé por Fencas.

Ivo Lopes por Felipe Queiroz.

Vozes extras por Vitor Moreira, Silvana Perez e Cesar Agenor F. da Silva.

Consultoria histórica por Willian Spengler, Cesar Agenor F. da Silva e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon Biancato Ruhnke.

Revisão por Silvana Perez.

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Vinheta por Vitor Moreira.

E a distribuição é do portal Deviante.

Lembrando que, como esse programa espacial está sendo simulado num computador, temos imagens. Você vai poder ver o salto da Ada e a Tanajura explodindo. É só clicar no link aí no seu agregador. E aproveita para escrever um comentário lá sobre o que achou.

Muito obrigado por ouvir, até semana que vem.