Em meados de 2020, ano 1 da pandemia, eu era apenas um estudante de engenharia química, trabalhando em um laboratório de eletroquímica e corrosão no departamento de engenharia metalúrgica da UFRGS. Estava em um projeto de IC (iniciação científica) vinculado a uma mestranda de engenharia de materiais, que visava obter um tipo diferenciado de capacitor a base de nanotubos de nióbio para o uso no armazenamento de energia, que, até aquele momento, eu achava que era uma área da engenharia elétrica.

Essa história, além de demonstrar o caráter cada vez mais multidisciplinar da pesquisa em engenharia, me instigou a tratar desse dispositivo deveras importante para auxiliar na busca por formas cada vez melhores de armazenarmos a nossa energia, os chamados supercapacitores pseudocapacitivos. (E o quê o Elon Musk tem a ver com isso ???).

O que é?

Supercapacitor ou ultracapacitor é um dispositivo de armazenamento de energia que mescla características de baterias recarregáveis e capacitores convencionais. Possuem uma densidade de energia significativamente maior que os capacitores clássicos (ou seja, podem armazenar mais energia por unidade de massa), ao passo que, quando comparados com baterias, têm uma velocidade de carga e descarga maior (levam menos tempo carregando e podem liberar energia mais rápido). Além disso, conseguem aguentar mais ciclos de carga e descarga antes de perder a eficiência (mais tempo de uso sem “viciar”).

Apesar de terem uma pesquisa ainda incipiente, os supercapacitores já são usados em muitas aplicações, pelo menos desde os anos 2000. Em 2010, a cidade de Sado, no Japão, os utiliza em conjunto com painéis solares para a sua iluminação pública. Desde 2014, na China, alguns bondes são carregados em 30 segundos por um dispositivo supercapacitor no meio dos trilhos, resultando em uma autonomia de 4 km, quando o ciclo é repetido.

Porém, o uso mais difundido é como um híbrido com baterias de lítio, principalmente para o mecanismo de partida rápida (aqueles carros que desligam por alguns instantes quando parados) e é a base para o sistema KERS (recuperação de energia de frenagem) dos carros da Fórmula 1.

 

Qual é o melhor nome?

Como foi dito na apresentação, os termos mais comumente utilizados para se referir a esse dispositivo são supercapacitores ou ultracapacitores, em função de sua capacitância elevada quando comparados com um capacitor dito “normal”. Apesar disso, eles também são conhecidos como capacitores eletroquímicos, que eu acredito ser uma terminologia melhor, pois faz referência direta ao mecanismo de armazenamento de energia, que possui caráter eletroquímico (a dupla Camada de Helmholtz ou o transporte de cargas faradaicas, dois fenômenos eletroquímicos).

 

História

Essa questão terminológica vem da história de sua pesquisa. Durante a segunda metade do século XX as pesquisas realizadas para seu desenvolvimento foram feitas por departamentos de várias empresas privadas, de maneira independente. A primeira patente registrada que menciona um tipo de capacitor análogo ao que conhecemos como capacitor eletroquímico data de 1957, por um funcionário da General Electric (Fig. 1). Nessa patente não fica especificado o funcionamento do apetrecho, o que iria acontecer apenas em 1966 com uma patente da Standard Oil.

Desenho esquemático da primeira patente de um supercapacitor

Figura 1: :desenho esquemático do primeiro capacitor eletroquímico, retirado da patente original de 1953. Consiste em um corte lateral de um câmara cilindrica contendo dois eletrodos quadrados imersos em um líquido (Becker, 1957).

 

Capacitores “clássicos”

Acredito que convém explicar rapidamente o que é um capacitor “clássico” e como ele funciona: o fenômeno da capacitância aparece quando se aplica uma tensão entre dois materiais condutores próximos um do outro e separados por um material isolante. Isso leva o acúmulo de cargas em um dos lados do condutor criando um potencial elétrico, o que dá espaço para diversas aplicações, uma das quais o armazenamento temporário de energia.

Olhando agora para a Fig. 2, se a bateria fosse retirada do circuito, as cargas ainda se manteriam nas placas, mantendo o potencial. Se ligássemos agora esse capacitor em algo que necessitasse de energia ele iria liberá-la (de maneira rápida, cabe ressaltar).

Desenho esquemático básico de como funciona um capacitor

Figura 2: representação gráfica simplificada de um capacitor clássico. Consiste em uma bateria ligada em série a duas placas retangulares, dispostas a uma pequena distância uma da outra, além de um interruptor ligado em série (Halliday e Resnick, 2010).

 

No entanto, esse não é o uso mais comum para o capacitor, pois ele tem limiares para a capacidade de energia armazenada muito complicados, a principal sendo o valor da tensão de ruptura do isolante utilizado, que geralmente é muito baixo.

Esse problema é contornado em parte pelos capacitores eletroquímicos que geram o potencial através de outros mecanismos que não a separação de cargas entre um isolante — não dependendo, dessa forma, da tensão de ruptura do isolante. Cabe ressaltar que os capacitores eletroquímicos são um dos vários tipos de capacitores que existem, cada qual com seu mecanismo próprio, destinados às mais diversas aplicações (ver mais tipos de capacitores).

Dentre os capacitores eletroquímicos, temos três grupos, distintos por seu mecanismo de geração de capacitância:

Capacitores eletroquímicos de dupla camada – Utilizam uma propriedade chamada Dupla Camada de Helmholtz, gerando o potencial na superfície de um eletrodo imerso em um solvente iônico. Foram os primeiros descobertos e são muito comuns comercialmente. Não os abordaremos nesse texto

Pseudocapacitores – armazenam a carga de maneira faradaica (transferência de elétrons), por meio de reações redox de superfície e intercalação. Esses serão abordados com mais profundidade.

Supercapacitores híbridos – utilizam os dois mecanismos acima ao mesmo tempo. Também não serão abordados aqui.

 

Uma merecida pausa

Um momento para respirar. Ainda estão aí depois dessa salada de nomes de capacitores e patentes arcaicas???  Agora entraremos nas partes divertidas: o mecanismo, os usos e o futuro dessa tecnologia. Isso que ainda nem falamos onde que o Mané-Que-Comprou-o-Twitter entra nessa história.

 

Mecanismo da pseudocapacitância

Bom, para criar o potencial é necessário que as cargas positivas e negativas se separem de uma certa maneira, conforme já foi explicado alguns paragrafos acima. O mecanismo do pseudocapacitor é parecido com o do capacitor normal no sentido que envolve o aparecimento de uma « capacitância », mas também lembra muito a forma eletroquímica que uma bateria armazena sua energia, através de “reações redox“.

Nós teremos o nosso eletrodo feito de algum óxido metálico como RuO2, MnO2 ou Nb2O5 dentro de um solvente iônico (capaz de separar suas cargas).  Quando o potencial for aplicado, os cátions livres do eletrólito irão se deslocar para a superfície do eletrodo metálico, formando uma dupla camada adsorvida. Essa camada media a reação redox entre o eletrólito e o eletrodo e, por acontecer em distâncias microscópicas, é muito rápida (muito mais rápida que o mecanismo eletroquímico de uma bateria, por isso a velocidade de carregamento).

Além disso, devido ao processo de adsorção não modificar quimicamente o eletrodo, quando o potencial for aplicado no sentido contrário, a energia poderá ser recuperada facilmente (é daí que vem a grande vida útil de um pseudocapacitor). Portanto, a energia será armazenada como uma mudança de estado de oxidação do eletrodo e pode ser liberada facilmente com a reação contrária. Esse é o chamado mecanismo de pseudocapacitância redox (Fig. 3a).

O mecanismo da intercalação ocorre quando caminhos verticais são formados na superfície do eletrodo e contribuem para a movimentação de íons de dentro para fora desses “furos” (Fig. 3b) o que contribui para o aumento da capacitância. Pode-se notar que conforme a área superficial do eletrodo aumenta, também aumenta sua capacidade de armazenar cargas. Portanto esse é um ponto crucial na pesquisa com pseudocapacitores e era a parte principal do nosso projeto.

Imagens explicativas dos dois mecanismos de pseudocapacitância

Figura 3 : representação gráfica dos dois mecanismos de pseudocapacitância. Na esquerda (3a) temos a pseudocapacitância redox, consistindo em bolinhas amarelas representando o material redox ativo grudadas próximas a parede do eletrodo e bolinhas azuis e vermelhas representando as cargas positivas e negativas. A figura indica que as cargas positivas, as bolinhas azuis, estão indo em direção do eletrodo. Na direita (3b) há o mecanismo da pseudocapacitância de intercalação, no qual temos pequenos tubos formados losangos cinzas, representando o material oxidado, e bolinhas azuis com “Li+” inscrito, que representam os íons de lítio, que no desenho, entram nos pequenos tubos (Choi, 2020).

 

Nióbio??

Vários metais de transição já foram testados como materiais candidatos para pseudocapacitores. O mais antigo é o Rutênio, o qual possui uma excelente condutividade elétrica, e é estudado desde os anos 70. Apesar disso tem um impeditivo de ser caro demais para ser viável.

Na nossa pesquisa utilizávamos o queridinho de qualquer viúva do Éneas Carneiro: o Nióbio. Apesar de o nióbio ter resultados capacitivos notavelmente menores que os seus “concorrentes”, ele tinha várias qualidades que o colocavam como um bom candidato: mesmo com resultados medianos ele poderia ser moldado (como iremos comentar abaixo) para apresentar resultados melhores, ele era significativamente mais barato que os outros e, principalmente, porque o Brasil realmente é o detentor das maiores reservas de Nióbio do mundo (98,8%) e o maior produtor mundial (93,7%).

Além disso, não há muitos usos práticos para o Nióbio, ao contrário do que muitos conspiracionistas pensam. 90% do nióbio vai para a fabricação de ligas ferrosas para melhora da resistência ao calor, sendo que a quantidade utilizada fica na faixa de 0,04% da liga. Portanto, é uma necessidade buscar por novos usos para esse material e não ficar o alardeando como um material do futuro, que vai nos dar independência econômica e resolver todos os problemas do país, como falava um certo ex-deputado, ex-presidente se tudo correr bem futuro habitante da Papuda.

 

Nanoestrutura

Falei antes que moldávamos o Nióbio para que ele apresentasse resultados melhores. O que fazíamos era buscar criar nanoestruturas tubulares, por meio de técnicas eletroquímicas, para aumentar a capacidade de pseudocapacitância de intercalação do material.

A pseudocapacitância redox já é meio definida pelo próprio material (por isso o Rutênio é melhor que o Nióbio, por exemplo) mas a capacidade de intercalação pode ser aumentada com esse método. Nós buscávamos estruturas nanotubulares, porém muitas outras estruturas já foram testadas para o Nióbio e para outros metais, o que pode ser tema para um próximo texto.

 

Futuro e Elon Musk

E o futuro desses materiais? Os supercapacitores clássicos já estão mais ou menos difundidos nos mais diversos sistemas elétricos, desde auxiliares de arranque quando acoplados em baterias, até armazenamento temporário de energia em aparelhos eletrônicos. Os pseudocapacitores ainda não possuem uso comercial ou prático, mas prometem colaborar para a nossa transição ecológica no futuro. Por enquanto são necessárias mais pesquisas em caracterizações desses materiais e de escalabilidade.

No final das contas, qual era a relação do mestre do capitalismo Elon Musk com tudo isso? Bom, sendo CEO da Tesla e interessado em tecnologias para os seus carros elétricos, ele comprou uma empresa de supercapacitores chamada Maxwell Technologies em 2019, para depois vendê-la de volta para os donos originais em 2021. O que me chamou a atenção foi que várias matérias da época ressaltavam que nosso bilionário favorito quase fez um PhD em ultracapacitores em Stanford nos anos 90 (onde a tecnologia ainda era algo bastante incipiente). A principal fonte é o twitter do próprio Musk:

Tuíte do Elon Musk falando besteira

Figura 4: Tuíte do Elon Musk. Em tradução livre: “Irônico de fato, já que eu estava perto de ir fazer meu PhD em Stanford em capacitores de alta densidade energética para uso em veículos elétricos. Mas baterias de íon-lítio dão conta do recado. Mesmo sem avanços na tecnologia de íon-lítio, é possível a transicionar a Terra para energia sustentável.

 

É engraçado que ele não ache que precisamos de supercapacitores para resolver nossos problemas ambientais. Longe de mim fazer demagogia como o pior presidente da história desse país fazia, mas acredito que iremos precisar buscar todas as oportunidades possíveis para não morrermos num cataclisma nos próximos 30 anos. Eles talvez não estejam tão preocupados com isso…


Referências básicas utilizadas no texto

Dissertação de mestrado da minha orientadora (acho que é o melhor compilado de informações sobre pseudocapacitores de Nióbio em português. Recomendo a leitura se quiserem se aprofundar) – SAMPAIO. Óxido de Nb nanotubular aplicado como eletrodo de supercapacitor. Dissertação (Mestrado em Engenharia). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021;

Principios de Física –  Halliday e Resnick, 10ed, vol 3, 2010;

Advanced Materials: An Introduction to Modern Materials Science – Behera, 1ed, 2022;

Iluminação pública da cidade de Sado no Japão

Primeira patente de um capacitor eletroquímico – Becker, H.I.: Low voltage electrolytic capacitor, 1954, patent no: US2800616A

Mecanismo da pseudcapacitância – C. Choi et al., Achieving high energy density and high power density with pseudocapacitive materials, Nat. Rev. Mater., vol. 5, no 1, Art. no 1, 2020.