“Compromisso com o passado não significa estudar o passado pelo passado, apaixonar-se pelo objeto de pesquisa por ser a nossa pesquisa, sem pensar no que a humanidade pode ser beneficiada com isso. Compromisso com o passado é pesquisar com seriedade, basear-se nos fatos históricos, não distorcer o acontecido como se fosse uma massa amorfa à disposição da fantasia de seu manipulador. Sem o respeito ao acontecido, a História vira ficção. Interpretar não pode ser confundido com inventar” (Pinsky, 2004).

Não é de hoje que a História “anda mal” entre muitos estudantes. Acham que ela “não serve para nada”, que “parece com um bang-bang, pois têm de um lado os mocinhos, de outros os vilões”, ou, o que é pior, “é matéria para dar uma lida rápida, decorar e esquecer…”.

Fora os evidentes exageros naturais, esses comentários, infelizmente, encontram eco no locus histórico escolar. O ensino da história há muito vem sendo criticado pelos educadores, historiadores, bem como por todos aqueles que se ocupam do assunto. Com frequência nos deparamos com expressões que afirmam que somos um país sem memória, que não preserva seu patrimônio cultural, onde a cultura histórica é praticamente nula.

Ao se falar sobre o ensino da História do Brasil, associa-se, de modo praticamente automático, à constituição da identidade nacional, que muitas vezes está ligada ao nacionalismo, ao patriotismo, ao culto dos heróis nacionais, às festas cívicas, que os educandários tanto apreciam e que muitos acreditam que faça parte do ensino da História do Brasil.

Este tipo de abordagem não contribui para o conhecimento do país e de seu povo. O papel da História deve ser voltado para a formação política dos educandos, entender as organizações das sociedades, os seus processos de mudanças e permanências, e que o indivíduo, atuando como sujeito coletivo na sociedade, tem um papel fundamental na construção do passado.

Descrição da imagem: dois livros, um verde e um rosa. Braços saem da lateral desses livros, como se a capa fosse parte de sua vestimenta e os livros estão agarrando um ao outro, como que em uma luta.

Questionamentos e lembranças são vitais para se reduzir o grande desencontro entre a História e a sociedade brasileira. Diminuir esse abismo é necessário para a melhor compreensão do país em que vivemos. Ademais, quais as razões deste descaminho, que afeta especialmente os nossos jovens, um segmento particularmente interessado em “conhecer a verdade”?

Durante bastante tempo nossa História foi “mal contada” e nossa memória mal preservada. Antigos historiadores, influenciados pela ideologia do colonizador e ligados às classes dominantes de suas épocas, interpretaram com noções conservadoras, elitistas e preconceituosas a realidade brasileira em geral. Elitismo e preconceito em relação aos indígenas, negros, operários, sertanejos, colonos imigrantes – a todos aqueles que foram “selecionados” para participar da vida social apenas com o trabalho braçal, mas que foram (e são) elementos angulares da formação da sociedade brasileira.

Ao tratar a História como disciplina destinada essencialmente a glorificar os acontecimentos e personagens, esses historiadores difundiram a ideia de que o papel da História era transmitir aos jovens os “bons exemplos” legados pelos “heróis nacionais”, o que deveria ser feito, basicamente, através da memorização dos grandes feitos das elites dominantes nacionais.

A “velha” História limitava-se assim a exaltar e a justificar a supremacia dos poderosos, ao passo que desvalorizava e até omitia a presença das classes e grupos sociais dominados. Era uma História que não fazia menção a desigualdades, injustiças e conflitos sociais. Uma História, enfim, sem povo ativo e criativo, pois, de um lado havia os “heróis”, de outro, estava um povo ora passivo, ora “desordeiro, fanático, bandido”, uma mera perturbação na vida das elites.

Era a História das estátuas, dos nomes de ruas e praças, dos nomes de escolas, dos feriados… Verdades estabelecidas e homogeneizadoras, amplamente divulgadas por essas metanarrativas, que se incumbiam de propagar modelos de sociedade, definir modos de vida, de relações com o conhecimento, de homem, mulher, centralidade, identidade.

Era inevitável que esta História, nos dizeres de Alencar (1996), “ao invés de ampliar o conhecimento dos brasileiros a respeito de si próprios, provocasse um distanciamento crescente entre si mesma o povo”. Por conseguinte, este último não se reconhece inteiramente na sua História, nem a valoriza como devia.

A falta de consciência histórica soma-se, assim, a inúmeras outras “faltas” (de trabalho, de moradia, de saúde, de alimentação, etc.) – sem falar na polaridade que envenena os tempos hodiernos -,  dificultando ou mesmo impedindo o desenvolvimento de uma cidadania plena.

Descrição da imagem. Três livros com braços saindo de suas laterais. O livro vermelho, maior, controla os livros azul e verde, menores, com cordas de marionete. Os livros menores parecem estar debatendo algum tópico.

Ora, o ensino de História estuda as transformações pelas quais passaram e passam as sociedades humanas através do tempo e do espaço, processo através do qual os homens organizaram e organizam a sua vida em comum, ordenando-se em grupos humanos – sociedades –, ao mesmo tempo em que se constituíam e se constituem a si próprios enquanto sujeitos nas diferentes épocas e nos diferentes espaços.

A humanidade não é um todo homogêneo, e a História considera idas, vindas, desvios, avanços, recuos, inversões, etc. O homem é um ser histórico e vive num contexto social no qual desenvolve relações culturais, históricas, políticas, sociais, econômicas, éticas e inúmeras outras. E, “por incrível que pareça”, tais observações também se aplicam à sociedade pindoramense.

Mister ressaltar que a formação da sociedade brasileira é produto do multiculturalismo, e o multiculturalismo encara a cultura através de suas contradições e tensões. Aliás, o multicultural vai além da diversidade cultural, as diferenças devem existir nas suas riquezas; não há grupos homogêneos, há diferenças dentro dos próprios grupos. E a questão das hierarquias? E as desigualdades? Não é suficiente dizer que há negros/as, indígenas, etc. É preciso entender como essas diferenças implicam relações fortemente hierarquizadas.

Também decorre disso que o multicultural se manifesta num mundo onde a hegemonia de uns não desapareceu. Neste sentido, é premente a necessidade de desafiarmos a construção dos outros, das margens, das franjas e das culturas dominantes, bem como a democracia racial, que pretensamente caracterizaria a sociedade brasileira.

Na perspectiva crítica, o educador enquanto mediador do conhecimento, relaciona os fatos no passado e no presente, não exalta a história dos vencidos ou dos vencedores, mas cria situações de ensino-aprendizagem para que os educandos identifiquem semelhanças, diferenças, examinando minuciosamente relações de dominação e resistência entre diferentes grupos, e as convivências com as diversas sociedades. Essa metodologia é que permite ao jovem conhecer os aspectos que dinamizaram e dinamizam o processo histórico.

Descrição da imagem. Dois livros com braços saindo das laterais jogando xadrez. O livro vermelho está aberto e é possível ver que é um livro sobre xadrez. Ele move a rainha branca enquanto o livro verde coloca a mão no que seria sua cabeça em um sinal de desespero.

O ensino de história pressupõe o esforço de todos em compreender o universo social pelas suas forças de resistência às mudanças, suas rupturas e suas continuidades, porque ao entender esse processo no passado, com todas as suas características e contradições, poderão atuar criticamente, sem idealização ingênua (heroização) nem auto-depreciação (a história do ponto de vista conservador) da transformação social (Perrenoud, 1999). Em suma, um ensino de História em que o jovem possa compreender, participar e ver-se como parte integrante do meio em que está inserido, possibilitando-lhe a apreensão dos conteúdos históricos, bem como o posicionamento frente aos conhecimentos de uma forma construtiva e responsável.

Neste sentido, é preciso recriar, “espaços de encorajamento para a multiplicidade de vozes em nossas salas de aula e de se criar uma pedagogia dialógica na qual as pessoas vejam a si e aos outros como sujeitos, e não como objetos. Quando isso ocorre, os estudantes tendem a participar da história, em vez de tornarem-se suas vítimas” (McLaren, 2000).

Concluindo, fica a lição do mestre Sérgio Buarque de Holanda, o qual afirma que “para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história”.

Descrição da imagem: três livros, um vermelho, um azul e um verde, com braços saindo de suas capas jogando cartas. O livro vermelho joga uma carta no centro e tem um copo de uísque ao seu lado. O livro azul segura as cartas em uma mão e um copo de uísque em outra, já o verde segura um cachimbo na mão sem as cartas.

Para saber mais:

ALENCAR, Francisco. História da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996.

KARNAL, Leandro (org). História na sala de aula – Conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003.

MCLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez, 2000.

PERRENOUD, Philippe. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

PINSKY, Jaime. O ensino de História e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 2004.