Essa resenha é uma parceria do Portal Deviante com a Cia da Letras, que disponibiliza livros do seu catálogo para os nossos redatores escreverem as resenhas. Livro de hoje: “Através do vazio”.

Perdido em marte filosófico. Se eu tivesse que descrever o livro em apenas uma frase, seria exatamente essa que eu usaria. Mas como eu não tenho essa limitação, vamos pra resenha completa.

Você provavelmente já leu essa frase em milhares de textos sobre sci-fi, mas é um clichê que não podemos deixar de lembrar: A maravilha da ficção cientifica é usar a tecnologia como pano de fundo para discutir a sociedade. E esse livro vai bem nessa pegada, porque, apesar de ser um livro que se passa numa ambiente de ficção cientifica, ele fala basicamente sobre os desejos humanos. Ele vai tratar sobre a dificuldade da relação conjugal, a ganância desmedida, o cinismo das pessoas em posição de liderança, a discussão fundamental sobre o significado da vida. Todas essas questões que não são tecnológicas per si mas que são muito aprofundadas quando postas na luz da interação entre humanos e tecnologias que ainda não desenvolvemos no nosso presente.

Vamos pra ambientação. O livro se passa em dois ambientes principais, a nave onde se encontra a nossa protagonista Mariam Knox, comandante da primeira missão tripulada de reconhecimento de Europa, uma das luas de Júpiter, local que por sinal é onde atualmente se especula que possa haver vida microbiana abaixo da camada de gelo superficial da Lua. Só que no começo do livro nós já sabemos que alguma coisa nessa missão deu errado, a May (como ela é chamada em grande parte do livro) acorda aparentemente sozinha na nave, sem memória nenhuma recente. Ela desperta na ala médica aparentemente curada de alguma doença que ela não consegue identificar qual. Junto com ela desperta a inteligência artificial da nave (na minha opinião a melhor personagem do livro), que também teve um “apagão” e não tem muitas informações para dar a comandante.

E no outro ambiente acompanhamos a vida de Stephen Knox, marido da May, que desenvolveu a tecnologia que possibilitou a escavação da crosta de gelo em Júpiter. O livro começa na estação de controle da missão baseada na Lua. Como eles não tinham sinal da nave há vários dias, o controle já estava considerando a missão como fracassada e todos os tripulantes mortos.

Lembra alguma coisa, né? Uma pessoa perdida e sozinha num lugar muito distante da terra, tendo que enfrentar diversas dificuldades para sobreviver a tempo de ser resgatada por uma nave. É, só faltou o Matt Damon mesmo. Mas esse livro foi uma grande lição de como você pode aproveitar um mesmo cenário e desenvolver uma narrativa completamente diferente.

‘Perdido em marte’ é um livro sobre voltar pra casa, sobreviver tempo suficiente para ser resgatado. ‘Através do vazio’ é um thriller, ALGUMA coisa aconteceu, ela acorda sem memórias numa nave danificada e tem que não só descobrir como voltar pra casa, mas o que aconteceu até chegar até ali. Uma tripulação não pode simplesmente sumir de uma nave espacial, a inteligência artificial a prova de erros não poderia estar desligada, mas estava. Uma grande parte da história se passa com ela tentando entender esse mistério. Ele tem essa pegada bem thriller mesmo. Na real, do jeito que ele tá escrito, ele tem tudo para virar um excelente filme.

Indo para uma parte mais opinativa, eu curti bastante o livro. É fácil de ler, a narrativa se desenvolve muito bem, a dinâmica entre a May e a inteligência artificial é muito maneira. Lembra um pouco a relação que o John Perry tem com BrainPal dele (personagem principal da saga Guerra do Velho). Mas apesar de tudo ele não representa um grande desafio para quem curte adivinhar finais, ele é BEM óbvio nas dicas que ele dá sobre o que aconteceu e como vai ser o desfecho do livro. Eu pessoalmente não acho isso um defeito, nem todo livro precisa de plot twist. Essa economia dele no mistério é muito bem utilizada na ambientação psicológica que ele dá da Mariam. Ela é uma personagem muito complexa e quanto mais vamos descobrindo sobre a vida dela, mais sentido vão fazendo as decisões dela. É uma jornada linear porém muito recompensadora.

Tem uma parte que eu não vou explorar aqui pelo motivo óbvio, mas que é bem interessante. REPRESENTATIVIDADE. A Mariam é uma mulher negra. E isso não passa batido no livro. Ele toca nesse ponto, dela ser uma mulher negra líder da missão mais importante da humanidade desde a ida a lua. Vou adorar que alguém com lugar de fala leia e deixe um comentário falando se isso teve a abordagem maneira ou poderia melhorar.

No geral um puta livro. A parte thriller dele não é desafiadora mas é bem desenvolvida, os personagens são ótimos, tem extrapolações tecnológicas bem interessantes. Recomendo a todos curtem ficção (não necessariamente cientifica).