There’s something wrong with the world today
I don’t know what it is
Something’s wrong with our eyes
(Aerosmith, Living on the edge)

 

Uma das cenas icônicas de The Matrix é aquela em que o Agente Smith (Hugo Weaving) finalmente consegue aprisionar um dos líderes da resistência humana: Morpheus (Laurence Fishburne). Acorrentado a uma cadeira e sobre efeitos de medicação, o herói resiste bravamente a um interrogatório que objetivava extrair a chave de entrada para Zion, a fortaleza dos rebeldes. Tratava-se do momento auge da trama, quando o vilão consegue enfim desvendar os planos de seu rival.

Com ar de superioridade e certo deboche, Smith destila seu total desprezo pela “raça” humana, como quem expõe a racionalidade por trás da decisão de subjugar a humanidade aos seus desejos. Sem muitas expressões faciais e com um tom monocórdico na voz, como esperamos que uma máquina se comporte, o agente conta alguns segredos a Morpheus. Este é o momento em que somos informados de que aquela versão da Matrix, apresentada no filme, não era a primeira. Enquanto uma simulação da realidade construída para ocupar as mentes humanas durante o processo de retirada de energia de seus corpos adormecidos, o primeiro projeto fora desenhado para que se parecesse a um mundo perfeito, onde todos seriam felizes e reinaria a igualdade. Assim, a satisfação dos humanos garantiria o sucesso do experimento de modo que, felizes, não percebessem que, na verdade, estavam sendo explorados.

Contudo, a experiência foi um desastre. Como ocorre em alguns casos de transplantes de órgãos, a mente humana rejeitou aquela realidade, levando à perda de milhares de vidas e suprimentos de energia para as máquinas. Tal equívoco foi atribuído à incapacidade das inteligências artificiais em produzir uma linguagem de programação capaz de capturar os significados mundanos de felicidade. Porém, essa não era a tese defendida por aquele agente. Segundo ele: “como espécie, os seres humanos definem sua realidade através da miséria e sofrimento. Então o mundo perfeito era um sonho que o seu cérebro primitivo continuava tentando despertar”.

The Matrix completou vinte anos em 2019. Um ano antes, porém, a humanidade produziu um feito até então inimaginável. Pela primeira vez na história mais de cinquenta por cento dos seres viventes encontrava-se concentrados entre as classes altas e médias da sociedade, sendo que a população que vive em condição de extrema pobreza caiu de 35% para 9,6% nos últimos vinte e cinco anos [2]. No mundo inteiro, com maior ênfase no continente asiático, foram mais de 1 bilhão de pessoas alçadas às classes sociais mais altas. Ao mesmo tempo, o continente africano, associado de maneira quase sempre equivocada ao caos, pobreza e tragédias, também apresentou nítida evolução [3].

Esses e outros dados conduzem-nos à afirmação de que vivemos no momento mais próspero da humanidade. Porém, como no caso dos humanos de Matrix, a percepção que temos do mundo é a de que há algo de errado com ele. Nos últimos anos, um sentimento de descontentamento parece ter se generalizado na cultura ocidental, o auge de um fenômeno detectado por Freud há noventa anos sob a alcunha de “mal-estar na civilização” [4].

A primeira hipótese que levantamos para pensar essa relação paradoxal entre a “realidade” e sua percepção está direcionada à esfera política. Assim como no momento vivido pelo médico austríaco, atravessamos um período de recesso de nossa democracia. Se fizermos uma rápida busca na Amazon sobre livros cuja temática é a democracia (lançados nos últimos cinco anos), veremos que existe um número incontável de títulos, sendo que a maioria deles transmite um tom de preocupação com este sistema de governo [5].

Figura 1 – Gráfico com a incidência da palavra Democracia em livros, na língua inglesa, entre 1700 e 2008 [6]

 

Dentre esses vários autores, destacaremos para nossa análise, o francês Pierre Rosanvallon, historiador que dedica seus estudos especificamente ao tema da democracia desde 2002, quando assumiu a Cátedra de História Moderna e Contemporânea do Político no College de France. Desde então, Rosavallon nos alerta para o fato de que a democracia não é apenas um Regime de Governo, mas, também, uma Organização Social. Enquanto regime, ela se materializa nas instituições, partidos, governo e no Estado, aquilo que ele chama de Política. Enquanto organização, materializa-se na sociedade civil, local próprio de articulação do Político.

É muito importante que se faça essa distinção, pois, o bom funcionamento da democracia depende da boa articulação entre político e política. No político, de maneira fluida e difusa surgem as demandas, os anseios e os desejos de uma sociedade que serão organizados, deliberados e oficializados no âmbito da política, sendo os partidos um dos meios responsáveis pela intermediação de tais anseios e as estruturas de poder.

Uma das maiores contribuições de Rosanvallon para esse debate reside no fato de que, em sua visão, o estado normal da democracia é o do conflito, uma vez que uma sociedade plural é composta por várias visões de mundo postas em disputas. Porém, enquanto na esfera do político produz-se o dissenso, o ruído e o embate, a política deve incumbir-se de promover os debates, mediar as concessões às quais cada grupo estiver disposto a fazer, e buscar o consenso.

Seguindo tais premissas, em seu último livro de 2018, Parlamento dos Invisíveis, Rosanvallon reuniu algumas de suas reflexões sobre o atual mal-estar da democracia. Segundo ele, existem três pontos de destaque para entender esse fenômeno: a) o desenvolvimento de instituições compostas por indivíduos não eleitos na democracia; b) dissociação da Democracia como Regime de Governo e a Democracia enquanto uma Organização Social; e c) a hipertrofia do Poder Executivo.

Em outras palavras, para Rosanvallon, viveríamos um momento em que compartilhamos uma percepção de que a comunidade não detém mais o poder sobre as ações tomadas pelas instituições responsáveis por gerir a democracia enquanto um regime. Da mesma maneira, alguns órgãos do Estado teriam ganhado maior protagonismo, produzindo decisões que impactam sobre a vida das pessoas sem que seus representantes tenham sido escolhidos pelo povo, como o Poder Judiciário, o Banco Central, as Agências Reguladoras e o Ministério Público (no caso do Brasil). Esse ponto é importante, pois nos leva a uma outra questão: as formas de representação. De alguma forma, os métodos tradicionais de representação não agradam mais os eleitores que não se veem como parte representada nos processos decisórios. O mesmo pode ser dito em relação à noção de maioria, uma vez que recorrentemente os governantes não são eleitos pelo número maior dos eleitores, deixando a parte majoritária da população “órfã” de um representante. É nessa camada onde se forma o parlamento dos invisíveis.

Tal situação poderia ser remediada na eleição do parlamento, uma vez que, mesmo não tendo conseguido eleger um presidente, uma pessoa poderia se sentir representada por um deputado ou deputados do partido pelo qual ela votou. Porém, devido à hipertrofia do Poder Executivo ao longo do século XX, o poder legislativo não é mais visto como um instrumento capaz de se contrapor ao presidente e passa a ser enxergado como suporte para que o mesmo impere.

Não fosse isso ruim, as coisas podem se agravar. Dentro do âmbito da representação é cada vez mais notável que os partidos não conseguem mais cumprir o papel de articuladores da democracia enquanto canais de representação política. O fenômeno da Internet torna isso mais visível uma vez que possibilita o compartilhamento de visões de mundo e, ao mesmo tempo, possibilita uma explosão de participação política, ainda que efêmeras e desorganizadas. O modelo de nossa democracia atual, ou melhor, os canais que produzem o diálogo entre o político e a política não conseguem acompanhar as velocidades de nossos tempos. Recorrendo a uma analogia feita por Fernando Schuller, é como se os partidos fossem os táxis e as redes sociais o Uber [7].

A tecnologia impõe desafios também ao poder executivo. Ainda que aproxime os líderes das parcelas mais amplas da sociedade, por sua vez exige que se produzam instrumentos de compliance mais atuais e velozes, de forma que os passos do governo possam ser medidos e acessados por aqueles que o “seguem”. Não à toa muitos líderes recorrem às redes sociais para dar visibilidade a ações de sua administração, como forma de demonstrar para onde vai o dinheiro do contribuinte, por exemplo.

Por um lado, tal quadro produz uma democracia ainda mais ruidosa e barulhenta, deixando ainda mais evidente a dissolução na boa relação entre o Político e a Política [8], por outro, dessa fissura, redunda uma desilusão com a cidadania e seus instrumentos de representação; a descrença na capacidade de existir pesos e contrapesos nas esferas do poder, dando margem à impressão de que os destinos das pessoas estão sendo controlados por interesses de outros que não os seus representantes. Não é preciso nem dizer que, um cenário como este é um prato cheio para o desenvolvimento e proliferação de teorias da conspiração, uma vez que se encontra amplamente difundido o sentimento de perda de comando sobre os destinos da vida de um sujeito e sua comunidade.

Claro, a manipulação de tais sentimentos ajuda a agravar a péssima relação entre o campo político e a política, nos termos de Rosanvallon e, talvez, seja justamente nos sentimentos que resida uma outra explicação para a compreensão desse fenômeno em relação à percepção da realidade por parte dos seres humanos.

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[1] Texto escrito em coautoria com Marcel Ribeiro-Dantas

[2] Leia mais, aqui

[3] Nos últimos trinta anos o número de estados democráticos saltou de 1 para 10 e as autocracias foram reduzidas de mais de três dezenas para apenas três unidades. Neste mesmo período, o PIB da maioria dos países africanos cresceu mais do que 4% ao ano. Outros números na educação, saúde, nutrição e mortalidade infantil também apontam para uma situação animadora ao futuro do continente. Ver: http://mercadopopular.org/internacional/africa-otimismo-graficos/

[4] Lembremos que o livro de Freud com este título foi escrito meses antes do estopim que levou à quebra da Bolsa de NY, em 1929, em um período marcado pela desilusão com o ocidente surgido após a primeira guerra. A busca pelo inconsciente na medicina e as formas artísticas menos realistas (para não dizer surrealistas) demonstram a descrença na razão, base do pensamento moderno.

[5] O mais famoso é “Como as Democracias Morrem” de Steven Levitski & Daniel Ziblatt, publicado em 2018. Outros nomes famosos do público brasileiro compõem esta lista, como Manuel Castells, Yascha Mounk e Robert Kuttner, todos de 2018. Entre os mais desconhecidos, Jean Pierre Le Goff traz o título mais sugestivo: “O Mal-Estar da Democracia”, de 2016.

[6] Gráfico disponível aqui

[7] Como não se lembrar de um dos gritos famosos proferidos durante as “marchas de junho de 2013” que diziam: “sem partidos”. Veja o vídeo em que Schuller aborda este tema, à partir do minuto 12:30

[8] Não cabe no escopo deste texto, mas podemos dizer que as redes também potencializam o narcisismo, elemento que contribui para a deterioração do sistema democrático, uma vez que promovem uma ruptura na confiança inerente ao sistema de “representação” (pois somente eu posso saber o que é melhor pra mim) e corrói o sentido plural de comunidade implícito na democracia.