“Pesquisadores descobrem metal que se regenera sozinho”, “Metal que se regenera sozinho pode revolucionar engenharia”, “Cientistas desenvolvem metal que se regenera sozinho”, “Metal se restaura automaticamente e pode mudar a engenharia”. Talvez você tenha se deparado com alguma dessas manchetes nas últimas semanas. Mas será que é assim mesmo? Será que isso, juntamente com as Inteligências Artificiais, quer dizer que a Skynet vem aí?

Já há estudos que sugerem estratégias para o desenvolvimento de materiais com propriedades de “regeneração” (também podemos encontrar os termos autocura ou cicatrização autonôma), porém em sua maioria são materiais poliméricos ou compósitos. Os poucos estudos sobre esse tipo de propriedade em metais são simulações computacionais e nestas há a indicação da necessidade de alguma fonte de assistência externa (seja mecânica, térmica, elétrica ou outro tipo) para que essa cicatrização ocorra.

 

Em 2013…

… os pesquisadores G. Q. Xu e M. J. Demkowicz publicaram um artigo (”Healing of Nanocracks by Disclinations”) com simulações de dinâmica molecular, que apresentava um novo mecanismo para a cicatrização de trincas em metais. Nesse caso, não havia necessidade de assistência externa, o que caracteriza essa cicatrização como autocura da trinca. A simulação foi feita utilizando um cristal de níquel com apenas dois grãos, sendo que foi simulada uma nanotrinca no grão maior e o cristal sofreu uma tensão de cisalhamento.

Para entender de forma simples o que é a tensão de cisalhamento, imagine uma torre de folhas de papel e vamos considerar que essa torre é um corpo único.

A base está no chão e você esbarra a mão sobre o topo provocando um deslizamento das folhas pertencentes à torre de papel. As folhas da parte superior da torre irão se movimentar na direção em que sua mão tiver esbarrado, enquanto as folhas mais próximas da base da torre talvez nem se movam.

Essa ação da aplicação de uma força em uma direção paralela ao plano de contato (o chão, nesse caso) do corpo que causa um deslizamento relativo entre duas partes adjacentes desse corpo é chamada de cisalhamento. O efeito da aplicação de uma tensão de cisalhamento também pode ser observada em líquidos como na figura abaixo.

Gif: Cisalhamento em líquidos. No gif vemos um líquido de cor ou com fundo laranja e um quadrado preto de tinta sobre o líquido. O líquido se dispõe na forma de rosquinha dentro de um recipiente circular. A parte externa do recipiente (de fora da rosquinha) começa a girar e a parte interna (o centro da rosquinha fica parada). Como resultado, vemos que o quadrado no líquido começa a se distorcer. Nessa distorção, a base encostada na parte interna da rosquinha) permanece no mesmo lugar, já a parte de cima, mais próxima da borda exterior, anda junto com a parte externa do recipiente.

 

Voltando ao artigo de 2013, observou-se nas simulações que, devido à aplicação da tensão de cisalhamento havia movimentação do contorno de grão menor. A figura abaixo mostra o resultado dessa simulação. Note que a tensão de cisalhamento (indicada por τ) tem direções opostas nas figuras (a)-(b), onde a trinca aumenta de tamanho e (c)-(d) onde a trinca se fecha. Ou seja, quando a tensão de cisalhamento era aplicada de forma que o contorno de grão ia em direção à trinca, essa se fechava.

(a) Modelo de bicristal de níquel com uma nanotrinca. O conjunto mostra movimentação no contorno de grão GB1. A trinca (b) abre quando GB1 se move para longe dela, mas (c) fecha e (d) eventualmente se cura completamente quando GB1 se move em direção à trinca.

 

Esse resultado foi bastante surpreendente, considerando os poucos estudos que indicavam alguma propriedade de autocura em metais, mas 10 anos depois, em contribuição com outros autores, Demkowicz observa, desta vez de forma experimental esse mesma propriedade.

Gif 2: T-1000, androide vilão do filme Exterminador do Futuro 2, se regenerando após tomar tiros.

 

Em 2023…

… foi publicado na Nature online em 19 de julho, o artigo intitulado: “Cicatrização autônoma de trincas por fadiga via soldagem fria”, por tradução livre (“Autonomous healing of fatigue cracks via cold welding”, no original), no qual as manchetes de notícias que comentei no início do texto se basearam.

A fadiga é uma falha que ocorre nos materiais após um longo período sob tensões repetidas ou ciclos de deformação. Se você pegar um clipe de papel e ficar dobrando para um lado e para o outro, em dado momento ele irá se quebrar, pois você promoveu uma tensão de flexão repetidamente naquele ponto do metal, culminando na falha por fadiga.

Estima-se que aproximadamente 90% de todas as falhas de metais ocorrem devido à fadiga, sendo um efeito bastante importante em estruturas que são submetidas a tensões dinâmicas e variáveis, como pontes e aeronaves, por exemplo.

O processo de falha por fadiga é caracterizado por três etapas:

  • iniciação da trinca: uma pequena trinca se forma em um determinado ponto do material em que haja alta concentração de tensões
  • propagação da trinca: essa trinca vai aumentando em cada ciclo de tensão
  • falha final: a trinca atinge um tamanho crítico no qual o material rompe rapidamente

Sabendo, de forma geral, o que é e como ocorre a falha por fadiga, vamos voltar ao artigo publicado este ano. Num experimento onde um metal foi submetido a testes de fadiga com ciclos de 200 Hz (ou seja, a tensão era aplicada 200 vezes por segundo) foi observada a iniciação e a propagação da trinca até 644.000 ciclos. A partir de então, observou-se a diminuição da trinca até que se alcançassem 684.000 ciclos.

No vídeo abaixo é possível observar essa sequência de ciclos e o comportamento da trinca.

 

Ainda, o estudo mostrou que após 116.000 ciclos adicionais de carga aplicada, a trinca passou a crescer em outra direção, indicando que a trinca inicial realmente tinha se fechado. No caso em que a trinca não estivesse “curada”, ela iria continuar se propagando (e, portanto, crescendo) na mesma direção.

Assim como o estudo de 2013, o resultado deste experimento em 2023 é surpreendente. Mas da mesma forma que foram 10 anos entre a modelagem computacional e a observação experimental, o próprio Demkowicz disse em entrevista para a Reuters: “Meu palpite agora é que as aplicações tangíveis de nossas descobertas levarão mais 10 anos para serem desenvolvidas”.

 

Em 2033?

Até aqui as notícias recentes chegaram a acertar. Porém, essa fala do autor do artigo é bastante otimista e acaba sendo fonte para chamadas sensacionalistas, uma vez que o experimento em si está muito longe da forma em que metais são utilizados em aplicações rotineiras.

O experimento foi realizado com uma folha de platina policristalina de 40 nm de espessura e repetido nas mesmas condições utilizando cobre. E por que isso é um problema? Pois materiais em escala nanométrica tendem a apresentar diferentes propriedades em relação ao mesmo material em escala macro.

Então não é porque uma nanofolha metálica apresenta a propriedade de autocura que é possível afirmar que o metal em escala macro irá se comportar da mesma forma. Utilizando a movimentação do contorno de grão que vimos no começo do texto, podemos imaginar a diferença dessa movimentação podendo ocorrer de “forma 3D” num material macro, em contraste com a movimentação praticamente limitada ao plano (2D) em um material nanométrico.

As simulações indicam que a cicatrização ocorre por soldagem a frio das faces da trinca, devido à influência das tensões internas geradas pela migração localizada dos contornos de grão, assim como ocorria no estudo publicado em 2013.

A soldagem a frio é um processo já bastante conhecido e é basicamente uma “colagem” que ocorre entre duas peças através de uma pressão intensa que é aplicada sobre elas. Para que isso ocorra, entretanto, há a necessidade de que essas superfícies estejam limpas, sem óxidos, o que foi possível no experimento, uma vez que este foi realizado em alto vácuo e sob um fluxo de elétrons.

Nesse caso, o autor diz que as aplicações poderiam ser em veículos espaciais ou em trincas de superfícies que não ficam expostas à atmosfera. Mas em estruturas do dia a dia, que sofrem majoritariamente falhas por fadiga, talvez não será tão aplicável.

Então, ainda que o resultado desse artigo seja bastante inovador, não sabemos sequer se é possível reproduzir esse tipo de resultado em escala macro. Ainda há muito o que ser estudado sobre a propriedade encontrada na escala nanométrica e, posteriormente, em maneiras viáveis de repeti-la em escala macrométrica.

Por isso, diferente do que vem sendo reportado por aí, ainda estamos muito longe de ter um metal que se regenera sozinho sendo utilizado.

Gif 3: T-1000 olhando com cara de reprovação e fazendo sinal de não com o dedo indicador levantado.

 

Referências:

BARR, C.M.; DUONG, T.; BUFFORD, D.C. et al. Autonomous healing of fatigue cracks via cold welding. Nature, 2023.

CALLISTER, W. D.; RETHWISCH, D. G. Ciência e Engenharia de Materiais: Uma introdução. 8ª edição, LTC, 2013.

XU, G. Q.; DEMKOWIZ, M. J. Healing of Nanocracks by Disclinations. Physical Review Letters, 2013.

Self-healing metal? It’s not just the stuff of science fiction