Provavelmente você clicou no título esperando ler um artigo que te conduza à resposta “sim”. Sua hipótese está correta. Este é, de fato, um texto que vai elencar alguns motivos que nos permitem dizer que a literatura tem serventia na nossa sociedade, concluindo com “sim, a literatura serve para muitos propósitos”. Falarei sobre o prazer da leitura, explicarei brevemente alguns conceitos que usamos no estudo da literatura, e mencionarei alguns teóricos e críticos importantes. Mas antes de chegarmos a isso, convido você a se questionar comigo: a literatura realmente precisa “servir” para alguma coisa?

 

O contexto social

Muitas vezes, quando se fala de utilidade, a tendência é pensar pragmaticamente, olhando para questões como ganhos financeiros, obtenção de vantagem sobre a concorrência, aplicação no mercado de trabalho, etc. Tem-se uma visão utilitarista das coisas, querendo que elas atendam a interesses bem específicos da sociedade capitalista.

O problema é que a literatura, em si, não se encaixa nessas expectativas. Claro, existe o mercado editorial, com best-sellers e alguns autores que se tornam milionários vendendo seus livros e licenciando sua propriedade intelectual para adaptações e para a produção dos mais diversos itens: camisetas, canecas, cadernos, brindes de fast-food. Quem vende no mercado editorial tem ganhos. Mas, e o leitor? O que o leitor pode tirar de proveito da literatura?

Na perspectiva utilitarista da nossa sociedade, a literatura não serve para nada. Talvez no máximo apresente-se como uma espécie de troféu, com uma estante cheia dos clássicos do cânone literário representando uma suposta superioridade intelectual (só pensar nas estantes falsas que certas “autoridades” usam em lives e reuniões por vídeo). Mas em termos práticos, ter lido Jane Austen, Baudelaire, James Joyce, Homero, Clarice Lispector e Jorge Luis Borges não faz tanta diferença nesse contexto.

Do ponto de vista capitalista, a literatura não contribui em nada, porque ela não nos torna financeiramente mais ricos, nem mais aptos a produzir riquezas materiais. E esse “não servir para nada” é, possivelmente, um dos melhores atributos da literatura: ao não servir para os objetivos capitalistas, a literatura passa a servir para outras coisas. E é disso que vou tratar agora.

Fruição literária

O primeiro propósito da literatura é o mais imediato: lemos poemas, contos e romances porque queremos entretenimento. É divertido acompanhar Simão Bacamarte em “O Alienista”; nos compadecemos de Fabiano e sua família em “Vidas Secas”; e quando lemos Manuel Bandeira sonhando em fugir para Pasárgada, nós mesmos fugimos de nossa realidade.

A leitura de fruição é a leitura por prazer, acima de tudo. Ela não gera lucro, mas ela nos ajuda a recuperar nossas energias, consumidas pelo dia a dia.

Catarse

No século IV a.C, Aristóteles definiu em sua poética alguns conceitos-chave sobre o que hoje chamamos de literatura. Entre eles, encontramos a catarse, “propriedade da obra literária de, mediante a criação de situações humanas fortes e comoventes, promover uma espécie de purificação ou clarificação racional das paixões” (SOUZA, 2007, p. 25). Em outras palavras, podemos dizer que a literatura serve para nos ajudar a lidar com questões profundas, ajudando a libertar os sentimentos que guardamos.

Pense em algum livro ou poema que você leu e que mexeu com você, porque, de alguma forma, o texto trazia elementos que se relacionavam com coisas que estavam aí dentro do seu cérebro ou coração. Talvez você tenha sentido como se finalmente alguém te entendesse, talvez você tenha até chorado. O que você vivenciou foi a catarse que a obra literária (e a arte, em geral) promove.

Quando a literatura nos auxilia a lidar com questões profundas, ela serve para nos humanizar um pouco mais. Humanizar-se pode ser perigoso num mundo que nos explora e exige que sejamos máquinas. Mas humanizar-se é lutar contra essas opressões.

Desautomatização

Na primeira metade do século XX, surgiu na Rússia uma importante corrente de estudos literários conhecida como Formalismo Russo. Um dos principais textos do Formalismo Russo é “A arte como procedimento”, de Viktor Chklovski. Nele, o autor aponta como nossa compreensão do mundo a nossa volta funciona a partir de um reconhecimento automatizado das coisas, em razão do que ele chama de “economia de energia”: buscamos inconscientemente reduzir o tempo e o esforço necessário para executar nossas ações cotidianas, e isso inclui a forma com que nos comunicamos.

Chklovski aponta que, no texto literário, os autores modificam a forma com que as ideias são apresentadas. Muda-se a perspectiva pela qual uma ação é narrada, palavras inesperadas são combinadas para expressar algo que, normalmente, é dito de outra maneira. Com isso, o leitor passa pelo que os formalistas chamam de estranhamento. O leitor já não pode operar na base do reconhecimento automático quando lê um texto literário; pelo contrário, o texto exige que o leitor gaste tempo para entender aquilo que o autor expressa, e isso permite a alegria da descoberta e do aprendizado.

É como explica Ivan Teixeira (1998, p.37), “Numa palavra, a finalidade da arte é gerar a desautomatização, mediante o estranhamento ou a singularização da estrutura que o artista oferece à contemplação. (…) Ao contrário do convívio cotidiano com as coisas, o convívio com a arte deve ser particularizado, dificultoso e lento.”

Assim, podemos dizer que a literatura serve para nos tirar das nossas repetições cotidianas, abrindo espaço para que nós enxerguemos o mundo com outros olhos, a partir de novas perspectivas. E quando fazemos isso, nós somos capazes de enxergar as contradições do mundo à nossa volta.

E então: serve para alguma coisa?

Os pontos que eu apresentei não são, de forma alguma, os únicos que podemos trazer para essa discussão. Mas eu escolhi abordá-los neste texto porque são conceitos que eu gosto e que eu acredito que são mais fáceis de entender.

A literatura nos dá prazer, nos liberta interiormente, nos apresenta novos pontos de vista. E a literatura faz muitas outras coisas que não têm a ver com as demandas da vida pragmática, mas sim com as questões interiores daquilo que nos faz humanos.

Para encerrar o texto, responder a pergunta do título e para cumprir a promessa do primeiro parágrafo, eu digo: sim, a literatura serve para muitos propósitos.

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Se você quiser explorar um pouco mais a ideia da função da literatura, sugiro a leitura deste artigo (https://ciencia.ufla.br/todas-opiniao/652-a-literatura-na-pandemia), escrito pela prof. Andréa Portolomeos, minha orientadora de mestrado.

 

REFERÊNCIAS:

 

CHKLOVSKI, Viktor. A Arte como Procedimento. In: EIKHENBAUM, Boris; CHKLOVSKI, Viktor; JAKOBSON, Roman; TOMACHEVSKI, Boris; TROTSKY, Leon; JIRMUNSKI, Viktor; PROPP, Vladimir; BRIK, Ossip; TYNIANOV, Yuri; VINOGRADOV, Viktor. Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, [1973]. p. 39-56.

SOUZA, Roberto Acízelo Quelha de. Teoria da Literatura. 10. ed. São Paulo: Ática, 2007. 88 p. (Princípios).

TEIXEIRA, Ivan. O Formalismo Russo. Fortuna Crítica. In: Revista Cult. Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Lemos Editorial, ago., 1998, p. 36-39.

 

Imagens:

Imagem da capa (https://pixabay.com/pt/photos/livros-estante-de-livros-biblioteca-2463779/) (modificada)

Contexto social (https://pixabay.com/pt/photos/multid%c3%a3o-hong-kong-pessoas-2612037/)

Fruição literária (https://pixabay.com/pt/photos/urso-teddy-urso-de-pel%c3%bacia-urso-2855982/)

Catarse (https://pixabay.com/pt/photos/livros-prateleiras-porta-entrada-1655783/)

Desautomatização (https://pixabay.com/pt/photos/engrenagens-m%c3%a1quina-maquinaria-1236578/)