
Salve, salve gente amiga!
Em agosto de 1346, os cavaleiros, tanto franceses como ingleses, sonham com a batalha, com ataques furiosos, de lança em riste, cada qual com a flâmula de seu senhor, combates corpo a corpo com as espadas após o primeiro choque. Seria a ocasião para adquirir a glória, preconizada pelo ideal medieval.
Em quase dez anos de hostilidades entre França e Inglaterra, eles estão privados de um combate dessa natureza. Até então, os dois soberanos – Felipe VI e Eduardo III – manobram para limitar os embates a simples escaramuças ou guerra de cerco, menos mortífera e mais vantajosa em termos estratégicos.
A diferença entre os efetivos salta aos olhos: eram cerca de 14 mil combatentes ingleses contra mais de 50 mil franceses. Entretanto, a força francesa foi mobilizada às pressas e encontrava-se extenuada, em razão da longa marcha empreendida para surpreender os inimigos. Eduardo III, monarca inglês, para compensar a inferioridade numérica, prepara a batalha escolhendo e explorando o terreno que conhece a fundo.
Para vencer, ele sabe que não deve respeitar as regras do jogo cavalheiresco. Evita, portanto, colocar sua cavalaria na primeira linha e deixá-la enfrentar o choque do ataque franco. Caso assim o fizesse, não resistiria por muito tempo.
Os franceses encontrarão, diante deles, além de um terreno em aclive, trincheiras, uma infantaria que se protege por detrás de paliçadas, bem como o elemento principal da primeira linha britânica, os arqueiros galeses.
Além de não ter menos do que três comandantes – afora o próprio Felipe VI, rei da França, há o rei cego da Boêmia, João de Luxemburgo, e Carlos de Valois, o conde de Alençon –, o exército francês estava “inchado”, com cavaleiros e nobres. Paradoxalmente, há comandantes mas não há comando.
Os franceses dispõem de um corpo de besteiros genoveses que, devido às condições climáticas da marcha empreendida, encontram-se praticamente fora de combate – uma tempestade molhara as cordas das bestas – apesar de constituírem a primeira linha franca. Os cavaleiros franceses, no entanto, querem combater na primeira linha, segundo as regras da honra militar. Eles atacarão: não é a mesma batalha que é preparada nos dois campos. Logo…
Tudo se passa como Eduardo III previu. A cavalaria inglesa, retida por ordem do rei, permanece muito tempo imóvel – quase não será utilizada, em verdade. Os franceses, que finalizavam sua esgotante marcha, preparam-se para a contenda sem mesmo alinhar-se convenientemente.
Os besteiros, como não conseguem fazer funcionar suas armas, fogem assim que os arcos longos galeses entram em ação – os arqueiros haviam recolhidos suas armas, durante a tempestade que vitimara as balestras genovesas. Felipe VI, acreditando tratar-se de traição, ordena o massacre dos mercenários genoveses e logo os confiantes cavaleiros franceses avançam.
Relatos de cronistas contemporâneos descrevem que neste momento, o céu ficara escuro, em razão da chuva de flechas inglesas sobre os cavaleiros francos. Pânico e confusão tomaram os franceses.
Sem comando e sem liderança, os cavaleiros sobreviventes à saraivada investem direta e deliberadamente contra as linhas inglesas – sem tentar qualquer outra estratégia ou manobra, como um movimento flanqueante.
Some-se à falta de coordenação e ação, um terreno com grau de dificuldade impróprio para uma carga em montaria. “Algo de errado não estava certo”, literalmente.
Quando acontece a luta corpo a corpo, os cavaleiros e infantes ingleses garantem a vitória para Eduardo III.
Combinando a ação de seus cavaleiros e arqueiros com uma posição defensiva forte, Eduardo III obteve a surpresa tática contra um inimigo muito mais forte que sabia o que esperava, mas foi levado, por força das circunstâncias, a perder o embate.
De um lado, uma cavalaria muito bem adestrada e comandada; do outro, uma cavalaria suntuosamente equipada, arrogante, impaciente, sem coordenação alguma e que subestimara seu adversário.
A sangrenta batalha de Crécy marcaria mais do que a derrota de um exército, marcaria o malogro do cavaleiro montado, da sua função militar e de todo o ethos que o sustentava.
Vale a pena lembrar: A tática de batalha tradicional da época era que os cavaleiros atacassem as linhas inimigas. No entanto, o alcance e a potência do arco longo tornaram essa tática suicida. Em vez disso, os exércitos começaram a usar formações de lanceiros para proteger os arqueiros, criando uma muralha defensiva contra as cargas de cavalaria. Essa mudança tática marcou o início do fim da era da guerra de cavalaria e a ascensão dos exércitos baseados em infantaria. Outra inovação significativa durante a Guerra dos Cem Anos foi a introdução da pólvora. Embora tenha sido usada na China por séculos, foi durante essa guerra que a pólvora começou a ter um impacto significativo nas contendas europeias. Os primeiros canhões e bombardas eram rudimentares e pouco confiáveis, mas podiam romper muralhas imunes às máquinas de cerco tradicionais. Com o tempo, a tecnologia melhorou e, ao final da guerra, a artilharia tornou-se um recurso comum no campo de batalha.
Sugestão de leitura:
AYTON, Andrew; PRESTON, Philip. The Battle of Crécy, 1346. Woodbridge: The Boydell Press, 2007.
COSTA, Ives Leocelso Silva. A Cavalaria na Guerra dos Cem Anos: a campanha militar de Crécy (1346). São Cristóvão: Editora UFS, 2023.
DEVRIES, Kelly. Batalhas Medievais: conflitos que marcaram uma época e mudaram a história do mundo. Rio de Janeiro: M. Books, 2009.
HOLMES, Richard; PIMLOTT, John. Atlas Hutchinson de Planos de Batalhas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2007.
LIVINGSTON, Michael. Crécy: Battle of Five Kings. Oxford: Osprey Publishing, 2022.
MINOIS, Georges. A Guerra dos Cem Anos. São Paulo: Ed. Unesp, 2024.
NICOLLE, David. Crécy, 1346: Triumph of the Longbow Oxford: Osprey Publishing, 2000. (Campaign v. 71)
ROGERS, Clifford. War Cruel and Sharp: English Strategy under Edward III 1327-1360. Woodbridge: The Boydell Press, 2014.
ROTHERO, Christopher. The Armies of Crécy and Poitiers. Oxford: Osprey Publishing, 1981. (Man-at-Arms v. 111)
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