Agenor Tupinambá é um jovem estudante de agronomia e influenciador digital que, até recentemente, era quase um desconhecido. Até o final do ano passado, o único destaque notável foi a sua ascensão no TikTok feita pelo portal de notícias NoAr (link), um site de notícias locais do Amazonas. Natural de Autazes, uma cidade à beira do Rio Preto do Pantaleão, onde ele dividia seu tempo entre trabalhar numa fazenda e estudar em Manaus. Na internet, vivia de publicar sua rotina na fazenda, incluindo esquetes de humor, reflexões pessoais e outros conteúdos relacionados à vida no campo. Tudo mudou, no entanto, quando em fevereiro de 2023 Agenor ganhou exposição nacional diante dos vídeos dele junto à Filó, sua capivara de estimação, pelo portal G1 (link). Ainda no início daquele mês ela já havia alcançado 700 mil seguidores no TikTok, chegando a ser convidado ao programa da apresentadora Eliana, no SBT, no qual compareceu pessoalmente para falar de sua história.

Porém, a fama e o glamour foram substituídos por um amargor quando, em 18 de abril, Agenor publicou que havia sido multado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) em R$ 17 mil por suposto abuso, maus tratos e exploração contra animais (link), o que viria a suceder uma longa briga jurídica entre o IBAMA e o rapaz, sendo a capivara apreendida (link) e posteriormente liberada ao rapaz (link) em virtude de uma decisão judicial do juiz da 9ª Vara Federal Cível, Dr. Márcio André Lopes Cavalcante.

O processo corre em Segredo de Justiça então, infelizmente, eu não posso disponibilizar a decisão aqui. Mas o teor da decisão, ainda que de forma parcial, pode ser encontrado facilmente na internet. Em poucas palavras, o juiz do caso entendeu que Agenor é ribeirinho e, com isso, “seu quintal é a própria Floresta Amazônica”. Nas palavras do juiz, não é a Filó que mora na casa de Agenor, mas o contrário, de modo que a vida em “perfeita simbiose”, nas palavras do juiz, justificariam o retorno do animal à guarda do estudante de agronomia.

Com todo respeito ao nobre Doutor Cavalcante, eu devo discordar tanto judicialmente quanto de forma prática.

Manter em cativeiro espécie da fauna silvestre brasileira sem permissão, licença ou autorização é crime, na forma do artigo 29, § 1º, inciso III, da Lei nº 9.605/1998 (link), considerados como fauna silvestre qualquer animal de espécie nativa ou migratória que tenham parte do ciclo de vida no território brasileiro. Circunstância similar é tratada no Decreto nº 6.514/2008 (link), o qual determina as infrações administrativas ambientais, especialmente o que consta no seu artigo 24, § 3º, inciso III.

É verdade que a própria Lei citada, no § 2º do mesmo artigo, diz que o juiz pode deixar de aplicar pena à guarda doméstica de animal não ameaçado de extinção (e, de igual forma, o Decreto citado tem a mesma exceção). Mas isso depende de análise das circunstâncias.

Até prova em contrário, Agenor é inocente de maus tratos à Filó. Mas, até que ponto condicionar animais ao convívio humano pode ser algo aceitável?

É bom dizer que a mesma Lei prevê, no artigo 32, que a prática de abuso também é considerado crime.

Ora, manter consigo um animal silvestre e impor a esse condicionamento à uma vida doméstica é tirar dele a possibilidade de uma vida selvagem completa, com todos os prós e contras que isso oferece. Condicionar um animal, retirando-lhe as experiências necessárias para sua sobrevivência em ambiente selvagem, não seria, em si mesmo, um abuso?

Eu sei que muita gente vai ser contra o que estou propondo aqui por acreditar em uma visão romântica do assunto. Porém, devemos lembrar dos efeitos práticos que uma tolerância como essa, que está sendo empregada ao Agenor, pode passar aos olhos da sociedade.

Cabe dizer que, aliás, que nem tudo é romântico. Pelas informações que foram divulgadas, Agenor detinha consigo uma preguiça, outro animal silvestre, que acabou morrendo enquanto estava sob seus cuidados. Não estou acusando ele de nada, mas será que não faltou ao animal atenção veterinária adequada? Será que o mesmo não pode ocorrer com a Filó?

Já dizia o ditado popular. Quem abre uma porta, abre uma porteira. Por mais que seja realidade o relacionamento humano, especialmente de povos de zona rural, com animais silvestres, inclusive como pets, e por mais que sobre tal comportamento pode ser afastada eventual pena em caso de animais sem risco de extinção, podemos estar dando as exatas condições para que danos à populações de animais e ao ecossistema possam emergir.

Estamos diante de um mundo onde informação e “modinhas” de Internet levam as pessoas aos mais absurdos comportamentos. A exemplo, influenciadores tem visitado zonas de catástrofes históricas para a realização de fotos ou vídeos buscando viralizar em suas redes.

Dois casos recentes merecem destaque.

O primeiro foi a invasão de turistas às zonas de contenção em Chernobyl. Como publicado pelo jornal El País em 2019 (link), após o sucesso da série da HBO, houve uma explosão de turistas na região, os quais ignoram normas de segurança, adulteram locais e até levam objetos como souvenires, objetos esses ainda capazes de emitir radiação.

Outro caso é a visitação de pessoas ao Memorial de Auschwitz, que recentemente emitiu uma nota (link) após uma foto de uma influenciadora fazendo poses sensuais sobre os trilhos dos trens do local para registro em suas redes.

Levando essa mesma questão ao caso da Filó, acreditar ser aceitável se remover um animal silvestre do seu habitat ou, mesmo que nele mantê-lo, domesticá-lo, é dar carta branca a que outras pessoas façam o mesmo, quer porque, como Agenor, queiram ficar famosas na Internet, quer simplesmente por acharem o animal bonitinho.

Devemos lembrar que atitudes assim podem e efetivamente impactam na vida de animais. Da mesma forma que, em 2017, matavam-se macacos por medo da epidemia de febre amarela (link), podemos estar diante de um impacto na população de diversos animais silvestres para que se tornem pets exóticos.

Comportamentos como esse é o que propicia o tráfico de animais, o que impacta não apenas as espécies alvo, mas todo o ecossistema, na medida em que sua representatividade, seja como predador, presa ou dispersor de sementes, por exemplo, pode ser muito importante para a manutenção do ciclo da vida da região.

Sobre macacos, aliás, que falamos há pouco, a Sociedade Brasileira de Primatologia divulgou em 2021 uma cartilha (link) em que tratou, inclusive, de como a exibição dos animais, principalmente na internet, estimula o tráfico.

Então, com todo respeito ao Agenor e à Filó, não questiono o carinho e cuidado que um tenham pelo outro. Mas bicho da floresta tem que ficar lá, no cantinho dele. E nós, como sociedade, não podemos fechar os olhos para o perigo de permitir essa prática só porque é bonitinho e dá likes nas redes.

Sejamos conscientes. Afinal, não somos nós animais racionais?

 


Imagem de Capa. Arte por João Vitor Dias. Perfil do(a) autor(a) disponível em <https://www.instagram.com/jvgdias/>.