Quem nunca cortou o dedo com uma faca e, com o sangue escorrendo, por instinto, tentou estancá-lo com a boca? E, além disso, acabou sentindo o gosto metálico do líquido?

Já sentiu?… Sangue?… Qual o gosto?

Como esse líquido composto por água e células – além de proteínas e eletrólitos – pode ser fundamental para nossa existência?

Nosso foco sanguíneo hoje será com relação às queridinhas avermelhadas, que sem elas o oxigênio não chega até nossos tecidos, os quais são compostos por células. Além disso, essas células anucleadas vermelhas (sem núcleo) são as responsáveis por inundar nosso paladar com o tal gosto metálico.

Mas, antes de começar, é importante lembrar – ou aprender – onde as hemácias são produzidas. Primeiro, quando você está na barriga de sua mamãe o seu fígado (que é enorme nessa fase) inicia a produção. Posteriormente, ainda na fase fetal (6 a 7 meses), a produção se dá na medula óssea (não na medula espinal, esse contém o líquor, ou Líquido Cefalorraquidiano) localizada em ossos longos, como o fêmur e úmero.

A constituição da hemácia madura é “simples”, pois não apresenta núcleo e outras organelas. Por esse motivo ela precisa estar pronta para a ação quando sair da medula óssea, pois sem núcleo não há produção de novas proteínas.

Sua fase de multiplicação e maturação é fundamental e se inicia em células-tronco pluripotentes (que tem a potencialidade de virar qualquer célula sanguínea). Um exemplo dessa importância é com relação ao ácido fólico (suplemento obrigatório em grávidas), pois sua falta causa uma anemia chamada de megaloblástica. Nesses casos as hemácias se tornam maiores que o normal (> 8 µm). Esse fato se dá, pois o ácido fólico está diretamente relacionado com a divisão celular, por isso é fundamental em ser dado às grávidas, carregam uma nova vida, com muitas células se dividindo.

Da mesma forma que sua comida (oxigênio) chega até sua casa (suas células) ao pedir um delivery (ao necessitar de energia), ela precisa de uma moto (hemácia) e um motoboy (hemoglobina) para a entrega.

OS GASES IDEAIS PARA A HEMOGLOBINA

Hemoglobina, molécula de extrema importância para nossa vida. Sua função principal é transportar gases. Ao chegar ao pulmão o dióxido de carbono (CO2) se “desliga” (por diferença de pressão) da hemoglobina e o oxigênio (O2) se “liga”, também por diferença de pressão. Porém, se a hemoglobina não estiver perfeita ou o gás não forem esses, pode dar “xabu”.

Primeiro, se o gás não for o ideal, como já vimos em casos infelizes (mortes acidentais ou até suicídio), o monóxido de carbono (CO) pode ser um vilão cruel e inodoro. Um exemplo é o caso em que a família resolveu acender a churrasqueira para se proteger do frio em São Paulo. Ao queimar carvão, pela queima incompleta do material, CO foi liberado e inundou o pulmão dos pais e do filho de dois anos. A morte chega aos poucos, a pessoa não percebe. A respiração parece estar normal, mas o CO apresenta uma capacidade que, ao se ligar à hemoglobina, ele não desliga mais. Desse modo, então, ocupa o local onde deveria ser preenchido por oxigênio.

ESTRUTURA DA HEMOGLOBINA

Segundo, se a hemoglobina não apresentar sua estrutura completa (dividida em fração heme + globina) ou apresentá-la alterada de alguma forma, a oxigenação dos tecidos pode ser prejudicada.

A parte heme é produzida por uma sucessão de reações químicas dentro da célula até formar a porção heme, que é composta por uma molécula chamada protoporfirina e o ferro (Fe) (aí ó, o gosto metálico). A outra fração, a globina, que consiste em quatro proteínas (em adultos são conhecidas como 2α e 2β), as quais se ligam com a fração heme. Formando, assim, a hemoglobina A (em adultos).

Um exemplo de alteração na fórmula da hemoglobina é uma doença genética chamada talassemia alfa. Como o nome diz, há alteração nos genes (são 4 genes) que produz a proteína α (alfa) da fração globina. Nesses casos há 3 tipos de variantes possíveis, do ponto de vista clínico. O traço talassêmico α (alteração de 1 ou 2 genes), doença da hemoglobina H (HbH) (alteração de 3 genes) e a síndrome da hidropisia fetal (quatro genes afetados).

O primeiro caso (o traço talassêmico α) é praticamente assintomático, mas o individuo é portador da mutação. Já o segundo caso o portador desenvolve uma HbH (apresenta 4 cadeias β), diferente da Hemoglobina A (HbA) dos adultos (que apresenta 2α e 2β). Porém, também apresenta uma hemoglobina chamada de Hemoglobina de Bart, que apresenta quatro cadeias γ (gama) e essa é incompatível com a vida. Por esse motivo, na Síndrome da Hidropisia Fetal, há morte intrauterina ou morte após o nascimento, pois o bebê apresenta apenas a Hemoglobina de Bart. Essa, por sua vez, tem a capacidade de se ligar ao oxigênio e nunca o deixar ir, da mesma forma que o banco não larga você, caso esteja devendo em seu cartão de crédito.

A INCRÍVEL FLEXIBILIDADE DA HEMÁCIA

Outra característica incrível, quando a hemácias está 100%, é a sua deformabilidade. O eritrócito (sinônimo para hemácia) apresenta um tamanho que varia de 6 a 8 µm, já os vasos mais finos (capilares) do corpo apresentam um diâmetro que pode chegar a 2-3 µm. Então imagina o quanto o glóbulo vermelho precisa se ajustar, o espaço é ínfimo. Além disso, outros componentes estão presentes, como a água.

Para que essa flexibilidade seja possível, a forma da hemácia é importante. Não comentei ainda, mas essa célula apresenta a forma de um disco bicôncavo (figura 01), pois esse formato ajuda a aumentar a superfície de contato e, por consequência, distribuir mais oxigênio para os tecidos ou capturar mais dióxido de carbono para ser jogado fora.

Figura 01: Hemácia bicôncova

Uma doença que afeta a estrutura e a capacidade de deformação do eritrócito é a anemia falciforme. Essa doença hereditária altera a hemoglobina (Hemoglobina S), e quando há pouco oxigênio dentro dessa hemácia, a hemoglobina altera de forma (polimeriza) e ocorre o processo chamado de falcização, tornando a célula em forma de foice (dai o nome da doença).

Para saber mais sobre a biomecânica da hemácia, deixo abaixo um artigo que analisa, inclusive, as alterações que ocorrem na hemácia em casos de malária (apresenta capacidade de alterar a forma e deformabilidade da célula).

Com essas considerações, podemos ver a importância de uma hemácia e hemoglobina saudável. Por esse motivo, ao perdermos muito sangue, uma das consequências é a falta de oxigenação nos tecidos, pois poucas hemácias estão nos vasos sanguíneos.

Uma das formas de ajudar e fortalecer a comunidade sanguínea é por intermédio da transfusão de sangue, que tem várias peculiaridades, muito além do conhecido sistema ABO e o Rh.

FIM, POR ENQUANTO

Para recapitular um pouco sobre o que vimos, segue o resumo:

  • Hemácias são células sem núcleo que transportam gases (principalmente CO2 e O2);
  • Hemoglobina é uma molécula composta pela parte Heme (protoporfirina e Ferro) e a parte Globina (2α e 2β, em adultos). É ela que se liga com os gases;
  • Monóxido de carbono pode se ligar na hemoglobina de forma irreversível, não deixando espaço para a que o oxigênio se ligue;
  • Doenças podem alterar a hemoglobina (talassemia alfa) e alterar o transporte de gases ou alterar a estrutura dos eritrócitos (anemia falciforme);
  • Mobilidade e deformidade para os glóbulos vermelhos é fundamental para que sejam bem sucedidas em suas tarefas;
  • Doenças como a malária alteram essa mobilidade e deformidade;

 

REFERÊNCIAS

 

A.V. Hoffbrand & P.A.H Moss. Fundamentos em Hematologia. 6ª edição. 2013.

Cançado, RD. Talassemias Alfa. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia. 2006.

B.M. Koeppen & B.A Stanton. Berne & Levy: Fisiologia. 6ª edição. 2009.

Diez-Silva, et al. Shape and biomechanical characteristics of human red blood cells in health and disease. MRS Bull. 2010.