No final do longínquo ano de 2023 eu tive a ideia de escrever um texto sobre um assunto que acabei me deparando e que casava totalmente com a proposta do Portal Deviante. Ele versaria sobre um incidente que ocorreu em Boston em Janeiro de 1919 e ficou conhecido como “O Grande Derramamento de Melado” (Great Molasses Flood). Basicamente um tanque de quase 9 milhões de litros de melado rompeu e um bairro inteiro da cidade foi devastado resultando em 21 mortes e 150 feridos.

O aroma devia estar agradabilíssimo

O texto seria uma ótima oportunidade para a divulgação científica: fortemente interdisciplinar; teria uma boa mistura de história e engenharia; seria suficientemente bizarro para ser levemente engraçado mas também contribuiria para uma discussão sobre segurança em processos.

Porém, a situação piorou quando eu descobri que haviam mais casos de “inundações” de líquidos “estranhos”: inundação de uísque em Dublin (com direito a incêndio); inundação de cerveja em Londres; de chocolate derretido em Nova Iorque; Vinho em Portugal e por fim um dos mais bizarros de todos, uma inundação de CO2 que foi expelido de um lago no Camarões em 1986.

Graças a minha extensa procastinação pesquisa acerca desses assuntos, acabei postergando a escrita desses textos por um certo tempo até que…

Descrição da imagem: notícia do portal da USP com título “Chuvas no Rio Grande do Sul devastam o Estado, provocando mortes e o deslocamento de populações

Foi um momento muito sensível para mim, pois sou Gaúcho e naquele momento não estava residindo no estado, enquanto grande parte de meus amigos e familiares estavam. Logicamente desisti do texto de inundações, pois não havia clima algum para tratar de inundações de uma maneira bem humorada.

No entanto, inspirado no excelente trabalho realizado pelo IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS) e dos agentes do DMAE (Departamento Municipal de Águas e Esgotos de Porto Alegre) e o não tão genial e por vezes displicente trabalho dos poderes municipal e estadual, decidi escrever um texto sobre a enchente no calor do momento, comparando com a lendária ocorrência de 1941, explicando o funcionamento do sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre e discutindo as implicações de tratar o Guaíba como lago ou rio. Como uma rápida pesquisa no portal revela, esse texto também não foi para frente.

A vontade de escrever esses dois textos ainda existe e eles poderão ver a luz do dia. Entretanto, algo me incomodava na estrutura dos dois. A minha área de maior interesse na engenharia é a mecânica dos fluidos e o meu preciosismo excessivo Fenymaniano não me permitiria comentar nenhum derramamento de fluidos sem explicar rigorosamente o conceito de Viscosidade, por exemplo, ou mesmo tratar sobre o que de fato é considerado um fluido. Com isso os dois textos se perderiam em explicações teóricas comuns a eles e perderiam o foco das coisas mais importantes.

Como pretendo escrever vários outros textos sobre mecânica dos fluidos, pois acho que ela tem a chance de se tornar a próxima disciplina de exatas pop, da mesma maneira que a Astronomia é hoje, vou escrever um texto inicial para tratar sobre os principais conceitos teóricos. Vou tentar me ater à parte técnica e deixar para comentar sobre a história do desenvolvimento da área em um texto separado.

Portanto, após mais de 500 palavras de introdução muito pouco relacionadas com o assunto do texto, vamos aos conceitos mais importantes para entendermos como se movem os fluidos!

O que é um Fluido?

Para começar do mais básico de tudo: o que é um fluido? Geralmente dividimos a matéria em três fases: sólido, líquido e gasoso. Porém, quando tratamos de movimento da matéria, os gases e líquidos se comportam de maneira muito mais parecida entre si do que com os sólidos e portanto acabamos juntando os dois na categoria Fluido. A definição mais correta seria de materiais que se deformam continuamente quando submetidos a uma fricção. Isso é justamente o que dá origem ao escoamento, que é o movimento dos fluidos, em compartimentos (como em tubulações) ou em cavidades abertas (como canais e rios).

Dessa definição também decorre o fato que fluidos são capazes de tomar a forma do recipiente onde estão contidos. Isso foi tema de um estudo vencedor do prêmio Ig Nobel de 2000 em Física, onde Marc-Antoine Fardin discutiu a possibilidade de um gato ser classificado como sólido ou líquido.

Imagem real do artigo do cara com gatos se conformando a diversos espaços.

Viscosidade

A viscosidade é um termo usado de maneira corriqueira mas que guarda uma importância vital para o estudo dos fluidos. A definição de viscosidade é relativamente moderna (levando em conta que tentamos mover fluidos de maneira eficiente pelo menos desde a antiguidade, ela só apareceu com Newton no século XVIII) e envolve a proporção entre a deformação e a fricção aplicada no fluido.

Sabemos que o mel escoa mais devagar do que a água, por exemplo. Isso significa que o mel tem uma viscosidade maior que a da água, pois oferece mais resistência quando aplicada a mesma força (é mais fácil passar água no pão do que mel).

A viscosidade geralmente é analisada do ponto de vista macroscópico, por exemplo, quando se quer analisar a vazão que pode ser obtida em uma tubulação com uma certa pressão fornecida para um tipo de fluido. Mas ela também pode ser interpretada de maneira molecular, como a fricção interna entre as moléculas do fluido.

Newton realizou seus experimentos com alguns fluidos e constatou que a relação entre essas duas quantidades era linear. Hoje, sabemos que existem diversos fluidos que se comportam de maneira diferente, que ficaram conhecidos como Fluidos Não-Newtonianos, enquanto os que respeitam a relação proposta por Newton ficaram conhecidos como Fluidos Newtonianos. A maioria dos fluidos utilizados na nossa vida podem ser considerados newtonianos (água, ar, óleos, álcoois e petróleo) porém os fluidos não-newtonianos têm aplicações específicas muito importantes, geralmente ligados às suas características, citando como exemplos o Ketchup, a pasta de dente, quase todas as tintas, o sangue e a lava. O estudo desses fluidos e suas características é chamado de Reologia e será tema de um futuro texto.

Hipóteses necessária para o escoamento

Um dos usos mais importantes dos conceitos da mecânica dos fluidos está na simulação e modelagem de fenômenos físicos. Para isso, as considerações que fizemos precisam ser colocadas de maneira matemática para poder ser resolvidas e nos fornecer informações úteis. Para criar essas equações temos que partir de quatro princípios fundamentais: Conservação da Massa, Conservação do Momento, Conservação da Energia e Hipótese do Contínuo. Vamos ir mais a fundo em cada um deles.

A conservação da massa é uma hipótese que parece razoável de se propor: a quantidade de massa do nosso fluido não irá mudar. Precisamos porém, limitar espacialmente nosso fluido, pois de outra forma teríamos que levar em conta toda a massa do universo. Utilizamos um artifício teórico chamado Volume de Controle. Escolhemos um volume arbitrário do nosso fluido e escrevemos as equações para ele e estendemos para todas as outras partes do fluido em análise. Dessa forma, a massa até pode mudar localmente, mas deve ser compensada com alguma massa entrando pelas fronteiras.

A conservação do momento tem um nome que pode parecer estranho mas é apenas a aplicação da segunda lei de newton para um volume do nosso fluido. No colégio aprendemos as formulações das leis de newton a partir do conceito de forças, mas sua derivação original foi usando o momentum que é o produto da massa pela velocidade. Portanto, também parece razoável assumir que em um volume de controle a soma das forças deve ser igual à sua resultante.

Nos primórdios da mecânica dos fluidos, essa consideração causou alguns problemas, tendo em vista que os únicos parâmetros utilizados na conservação de momento eram a velocidade de escoamento do fluido e a diferença de pressão. Isso levou ao Paradoxo de D’alambert, no qual matematicamente se prova que não há arrasto para um corpo cilíndrico em um fluido em movimento constante, o que é facilmente contrariado por experimentos. Esse problema seria resolvido mais adiante com a injeção da Viscosidade como um termo amortecedor na equação da conservação de momento, como veremos na próxima seção.

Apenas com as formulações matemáticas dessas duas primeiras leis (que eu vou poupar vocês de tentarem entender pelo bem da divulgação científica) é possível explicar e modelar a maior parte dos casos de mecânica dos fluidos. Entretanto, a energia também deve ser conservada, como nos manda a termodinâmica. A necessidade da conservação de energia é levada em conta quando fenômenos com grande variação de temperatura são estudados. Essa variação geralmente pode ser desconsiderada, entretanto, a densidade e a viscosidade mudam com a temperatura, geralmente de maneira não linear. Isso cria um complicador a mais na resolução simultânea das equações.

A última, e talvez mais abstrata hipótese a se considerar é a Hipótese do Contínuo.

“Eu sou um ex-contínuo, e você é um…”

Há muito tempo sabemos que as coisas materiais que vemos são compostas por partes menores microscópicas (moléculas, átomos, partículas subatômicas, etc). Será que podemos assumir propriedades para as coisas materiais macroscópicas sem levar em conta as características microscópicas? Essa foi mais uma das áreas de debate da mecânica ao longo dos séculos XVII a XX. Para nossas análises, precisamos levar em conta que os materiais com que lidamos (no caso os fluidos) têm uma continuidade observável, mesmo que microscopicamente eles sejam formados por moléculas discretas. Dessa maneira não há problema em considerar as propriedades como densidade e velocidade como médias em um dado volume de fluido.

Equação de Navier Stokes e uma chance de virar milionário

Em 2000 o Instituto de Matemática Clay ofereceu um prêmio de 1 milhão de dólares para a resolução de 7 problemas abertos na matemática pura. São problemas considerados complexos e que suas resoluções (ou seja, provas que são verdadeiros ou refutação das conjecturas) teria grande impacto em diversos ramos da matemática. Até o momento, apenas um dos problemas foi resolvido (por um Russo, que negou o prêmio e o escrutínio da mídia, o que daria um belo texto) e dentre os não resolvidos está o problema da Existência e Suavidade da equação de Navier-Stokes. E o que é a equação de Navier-Stokes? Bom, ela tem essa cara:

É mais feia do que eu! Descrição da imagem: Equação vetorial de Navier-Stokes para conservação de momento em um fluido. No lado esquerdo, o termo ∂u/∂t representa a variação temporal da velocidade (inércia por volume) e (u · ∇)u corresponde à aceleração convectiva, associada ao transporte de momento pelo próprio escoamento. No lado direito, –∇w indica a fonte interna de momento, relacionada ao gradiente de pressão; ν∇²u representa a difusão viscosa, associada à dissipação de momento pela viscosidade; e g corresponde às forças externas atuantes, como a gravidade. Acima de cada termo, a imagem apresenta identificações didáticas destacando sua natureza: variação, aceleração convectiva, fonte interna, difusão e fonte externa.

E o que ela faz num texto sobre mecânica dos fluidos? Basicamente essa equação é aplicação da Conservação do Momento e da Massa para um fluido com densidade e viscosidades constantes. O problema da existência e suavidade dela reside no fato de não sabermos se é possível resolver essa equação de forma exata para todos os casos em três dimensões. Isso é muito interessante e ressalta a complexidade dos fenômenos envolvendo o movimento dos fluidos.

E, apesar dessa dificuldade teórica no âmbito matemático, essa equação é a base para todos os desenvolvimentos da mecânica dos fluidos, servindo como ponto de partida para estudar tudo, desde escoamentos em tubulações até o voo de aviões. Com algumas simplificações podemos resolver exatamente a equação e comparar com experimentos no mundo real e para vários casos mais complexos conseguimos utilizar soluções aproximadas numéricas que têm uma utilidade prática incomensurável (tópico para outro texto, inclusive).

Turbulência

Um dos problemas mais complicados e importantes da mecânica dos fluidos é o fenômeno da Turbulência. No senso comum a palavra turbulência nos remete a situações caóticas ou desordenadas e estamos mais acostumados a ouvir quando falamos sobre voos comerciais. Essa definição não está muito longe da utilizada na mecânica dos fluidos.

Há muito tempo foi percebido que sob certas condições o escoamento da água ocorre de uma maneira “suave” e sem perturbações. Como podemos ver na foto abaixo (e no vídeo linkado), o fluxo da água parece estático, como se estivesse congelado. Esse tipo de escoamento se deve ao movimento paralelo das camadas de água e por isso ficou conhecido como escoamento laminar.

Imagem mostrando água saindo de um furo em um balão, formando um fluxo constante e suave. O efeito é visto mais facilmente no vídeo.

No entanto, a maioria dos fenômenos que vemos na vida corrente não estão nesse regime. Mesmo uma torneira aberta não apresenta esse comportamento, parecendo muito mais caótico e desordenado. Esses outros casos denominamos turbulentos.

Os escoamentos turbulentos são caracterizados pela formação de vórtices em direções diferentes ao escoamento e também pela quebra das camadas laminares do escoamento. O aparecimento da turbulência foi estudado experimentalmente no final do século XIX e depende de uma relação entre a densidade, velocidade e viscosidade do fluido e do formato e dimensões do local onde está escoando.

Com isso podemos medir o grau de turbulência dos escoamentos e utilizá-los para aplicações. A principal delas é a melhor distribuição de calor devido aos vórtices formados em diversas direções. Entretanto, não temos até hoje uma fundamentação completa da aparição da turbulência e de seu funcionamento microscópico, além de que não conseguimos completamente analisar a turbulência junto com a equação de Navier-Stokes, o que deveria ser possível. Portanto, essa ainda é uma das áreas de maior estudo dentro da mecânica dos fluidos.

Além da questão da turbulência ter sido factualmente dita pelo prêmio Nobel de Física e mestre da divulgação científica Richard Fenyman como o maior problema não resolvido na física, há também uma história apócrifa atribuída as vezes à Einstein, Heinsenberg, Sommerfield, Von Neuman ou Von Karman pela qual, em um suposto encontro com Deus, eles pediriam apenas duas explicações, uma sobre a relatividade e outra sobre a turbulência e terminavam dizendo que imaginavam fortemente que Deus teria a resposta para a primeira mas não para a segunda.

Aplicações

Depois de todos esses devaneios sobre fenômenos físicos estranhos, equações não resolvíveis e complicações em coisas que deveriam ser simples, será que existe algum uso ou aplicação para essas coisas?

O estudo da mecânica dos fluidos é interessante pois ele partiu primeiro de uma necessidade técnica: o ser humano sempre precisou movimentar os fluidos — o principal deles sendo a água — para a irrigação, sanitização e diversas outras funções. Foi de observações e estudos empíricos que foram desenvolvidas as primeiras teorias sobre os fluidos, ainda na antiguidade clássica.

Outra coisa que sempre intrigou o ser humano era a capacidade anatômica que as aves tinham para voar e que os peixes tinham para nadar, o que impulsionou estudos do que viria a se tornar a aerodinâmica, uma subdisciplina da mecânica dos fluidos.

A turbulência também perpassa a nossa história, com o grande Leonardo da Vinci estudando e representando extensamente os vórtices que a água causava quando em contato com sólidos.

Além disso, as representações matemáticas dos fenômenos físicos da mecânica dos fluidos foram estudados por grandes matemáticos puros como Euler, Lagrange e Cauchy por sua aparente beleza e complexidade analítica.

Hoje em dia usamos a mecânica dos fluidos aplicada para dimensionar tubulações e bombas; modelar os efeitos aerodinâmicos em veículos, navios e aviões; estudar a dispersão de poluentes no ar e nos corpos hídricos e também modelar a subida de nível de rios como foi feito pelo IPH-UFRGS durante a enchente de 2024 em Porto Alegre.

Essa modelagem da imagem foi feita a partir de dados da topografia da cidade de Porto Alegre e da vazão das chuvas, usando softwares de simulação de fluidos.

Dessa forma, acredito ter dado um bom panorama dessa área de estudo e espero ter colocado alguma curiosidade na cabeça dos leitores. Há vários temas interessantes de serem abordados, desde implicações no mundo real até fenômenos curiosos e discussões filosóficas sobre a origem de certos comportamentos que os fluidos apresentam.