Final de 2025, aquele momento em que, entre luzes de natal e a perspectiva de mudança que o réveillon traz consigo, refletimos sobre tudo que aconteceu no decorrer do ano. Entre uma suposta revolução da IA, crise política e climática, acredito que o cyberpunk chegou pra gente com menos estética e mais capitalismo tardio. 

No texto reflexivo de final de ano, quero falar sobre IA, morte da internet, ficção científica e o universo que temos dentro de nós.

 

IA matando a internet

Você sobreviveu ao ano de 2025 sem ter feito um “ensaio fotográfico” de IA? Talvez sim, mas certeza que viu na sua timeline textos, fotos e vídeos feitos por IA e, mesmo que por alguns segundos, duvidou se “isso é verdadeiro?” Sim, estou falando de você, canguru de apoio sentimental que não conseguiu entrar no avião. 

(imagem 1, cena do vídeo de IA com um canguru pequeno no aeroporto segurando suas passagens, fonte link)

A inteligência artificial tomou conta da internet no decorrer do ano. Gostando ou não, em algum momento fizemos uso dessa ferramenta no nosso dia a dia seja na geração de imagens, no auxílio da construção de textos, nos estudos ou até mesmo em uma busca simples no Google, em que a primeira resposta que aparece é gerada por IA.

Uma vez que esse tipo de ferramenta funciona via machine learning (aprendizado de máquina) — ou seja, utiliza todo o conteúdo da internet como fonte de sua “inteligência” —, chega um momento em que a IA alimenta a própria IA, gerando a chamada internet morta.

Embora não seja possível determinar com exatidão quando essa teoria surgiu, ela vem ganhando cada vez mais espaços nos fóruns online. De forma geral, a Dead Internet Theory” (Teoria da Internet Morta) propõe que a internet passou a ter uma quantidade significativa de “bots” (robôs que curtem, comentam, compartilham e extraem informações cibernéticas) além de conteúdos gerados automaticamente, o que, de forma geral, reduz consideravelmente as interações humanas genuínas no meio online ( 1,2 ). 

(imagem 2, esqueleto atrás da tela do computador, fonte link)

Dessa forma, a internet passou a ser dominada por bots e inteligência artificial que, em grande parte, moldam nosso consumo, pensamentos e opiniões. Um dos exemplos mais claros é o Jesus Camarão. Ao pesquisar essa expressão na internet, você encontrará no Facebook dezenas de imagens misturando a figura religiosa com o crustáceo, contendo milhares de likes e comentários (link). 

Tá mas acho que você deve estar pensando “não é porque tem milhares de imagens de um Jesus Camarão que as pessoas vão passar a acreditar nisso”. É verdade, porém o modo como a internet morta funciona é muito mais sutil e está interferindo no nosso dia a dia. 

Influência e engajamento são palavras-chave na internet atualmente. Um vídeo, ao tornar-se popular, pode moldar a opinião pública e até pautar políticas públicas. Dois exemplos que ocorreram no decorrer deste ano foram o vídeo sobre uma mentirosa taxação do pix e o vídeo sobre adultização de crianças na internet. 

Os exemplos vão além e podem entrar no âmbito científico com remédios milagrosos, discurso antivacina e até canetas emagrecedoras. Tais discursos ganham destaque na internet, impulsionados por notícias maliciosas geradas por IA e engajadas por curtidas de bots. Isso se torna ainda mais crítico quando sabemos que mais de 70% da população Br  se informa por meio das plataformas digitais.

Dessa forma, presenciamos o início do fim da internet, um meio social que, de certo modo, por bastante tempo estimulou as relações sociais. Tenho bons amigos cuja amizade começou por lá. Estou escrevendo e publicando esse texto por causa da internet.  

Redes sociais, junto ao meio online como um todo, perderam a graça, tornando-se uma mistura de conteúdo gerado por IA, propagandas e jogos do tigrinho. Em frente a tudo isso, qual o sentido de continuar aqui? Escrevendo esses textos? Tentando construir conteúdos de qualidade e embasados cientificamente no meio de uma internet morta? Para o início da construção dessa resposta, temos que buscar na literatura.

 

Alta da ficção científica

(imagem 3, cena clássica do filme Blade Runner 1982 das lágrimas na chuva, fonte reprodução)

Um dos meus gêneros favoritos da literatura é a ficção científica. Por meio dela temos vislumbres de uma realidade às vezes extrapolada, que não está tão distante da nossa. Por meio da ficção entramos em mundos onde sistemas totalitários comandam o mundo (distopias), vemos como as mudanças climáticas podem impactar na nossa vida (cli-fi) e até como a evolução da tecnologia sem uma estabilidade para o ser humano pode acabar com a sociedade (cyberpunk). 

De acordo com a escritora Aline Valek, por meio das histórias de ficção científica:

Podemos entender como lidar com nossas angústias e medos através das escolhas dos personagens e na forma que eles encontram de sobreviver em mundos autoritários, ou em pandemias, ou em grandes catástrofes. Diante do absurdo, em que nos faltam palavras para entender o que está acontecendo, a ficção é o melhor lugar para ir buscá-las.

Não sou muito dos videogames, parei de jogar no Playstation 2, mas lembro das notícias do jogo Cyberpunk 2077 que falavam que a precarização dos trabalhadores que desenvolveram esse jogo era mais cyberpunk do que o próprio jogo (link). 

O cyberpunk é um subgênero da ficção científica que tem, como raiz, a exposição das relações desumanizadas da sociedade frente a um mundo de alta tecnologia. Ou seja, a tecnologia evolui, mas as questões humanas, não (link). 

Talvez um dos principais representantes do cyberpunk seja o filme Blade Runner: O caçador de Andróides (1982) dirigido por Ridley Scott (adaptação do livro de Philip K. Dick “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, de 1968), que mostra uma espécie de policial caçando androides que roubaram uma nave no espaço e vieram para Terra na busca do seu criador. No decorrer do longa, observamos o processo das máquinas tornando-se mais humanas, enquanto as pessoas passam por um processo de desumanização.

(imagem 4 cena do jogo cyberpunk, vista da cidade cheia de luzes característica do gênero, fonte link)

Esse é apenas um dos diversos exemplos encontrados no meio da ficção científica que, de certa forma, ajuda a nos preparar para um futuro. Não necessariamente o que acontece nesses livros se tornará real, mas por meio dela entendemos, ou pelo menos, estaremos mais preparados para entender o que está por vir. 

O mercado editorial considera que houve um aumento do consumo de livros de ficção científica na pandemia de COVID-19, o qual se mantém até os dias atuais. Romances como o “Conto da Aia”, de Margaret Atwood, até clássicos como “1984”, de George Orwell, sempre estão entre os mais consumidos nos últimos anos. Juntando-se a esses também temos “O Problema dos Três Corpos” e “Duna”, ambos embalados por suas adaptações cinematográficas que tiveram destaques recentemente (link). 

A ficção científica está em alta, refletindo um mundo que parece cada vez mais louco: a IA toma conta da internet, a incerteza sobre a veracidade do conteúdo online cresce e tudo isso acontece às vésperas de um ano eleitoral.

 

A IA que não é inteligente e nem artificial

É assustador pensar em tudo que vivemos nos últimos anos, de distopias políticas a cenários quase que pós apocalípticos, momentos e mais momentos históricos. Pandemia cujos efeitos ainda não foram bem mensurados, crise política normalizando golpes ditatoriais, guerras e genocídios, crise climática trazendo um dos anos mais quentes já registrados, discursos de ódio crescentes e normalizados na internet.

Nós, enquanto humanidade, buscamos respostas por caminhos errados, procurando criar uma inteligência artificial que resolva todos os nossos problemas, mas a perspectiva é apenas o cyberpunk na vida real, uma evolução tecnológica sem uma evolução das questões humanas. 

Com isso dito, essa suposta “evolução tecnológica” vem às custas de danos ambientais que não são bem explicados, como o uso de servidores gigantescos, que consomem grandes quantidades de água. Nesse sentido, uma reportagem publicada pela BBC intitulada “‘Não consigo beber água’ – a vida ao lado de um data center nos EUA” (link) mostra os problemas da escassez de água provocada por data centers no estado da Geórgia. 

Para o neurocientista Miguel Nicolelis, em entrevista ao Carta Capital, a IA não seria nem inteligência, por ser uma propriedade emergente dos organismos e não algo computável, nem artificial, por depender do trabalho invisível de milhões de pessoas que alimentam, treinam e validam os sistemas. Nicolelis ainda completa que o resultado final dessa tecnologia é uma visão ideológica da automação (link).

(imagem 5, dedos de um robô e de um humano se tocando levemente, fonte link)

Um futuro em que as coisas vão melhorar parece cada vez mais distante. Em 1930, o economista John Maynard Keynes previu que, em 100 anos (2030 para ser exato), a humanidade trabalharia apenas 15 horas por semana, mais especificamente de segunda a terça, com finais de semanas de 5 dias (link). 

Keynes acreditava que a evolução tecnológica nos permitiria isso, bom, não preciso nem falar muito que ele está bastante enganado. Às vésperas de 2026 a carga média de horas trabalhadas no Brasil gira em torno de 39h semanais

Conseguir idealizar um futuro melhor é um dos grandes desafios da nossa geração, porém acredito que os livros têm o poder de nos auxiliar em pensar mundos melhores.

 

O simples e complexo universo da vida de Chuck

Um dos motivos de eu ter escrito bem menos nesse ano foi a IA. Senti que não faz sentido, não importa o quanto eu pense, leia e reflita não consigo nem chegar perto de um sistema que em menos de 1 minuto consegue gerar um texto bem melhor do que esse. 

Não quero pagar de diferente ou de que nunca usarei esse tipo de sistema. Ele é, sim, útil para muitas coisas, mas acredito que estamos perdendo algo nesse caminho. Para ser mais específico, as conexões humanas.

Em muitos dos textos que escrevi aqui no Portal Deviente, em especial esses de finais de ano (desde 2020 que faço isso), falei de coisas e percepções que tive no meu dia a dia, relatos e histórias pessoais, do que senti ao assistir ou ler algo e de como tudo isso é importante para a construção do meu universo pessoal.

(imagem 6, cena do filme a vida de Chuck com o ator tom hiddleston fonte link)

O longa A Vida de Chuck (2024), dirigido por Mike Flanagan (adaptação de um conto do Stephen King), mostra dias específicos e aparentemente aleatórios da vida do protagonista, como o dia em que ele se apaixonou por dança. Ao longo do filme vemos a construção do universo que ele, uma pessoa sem nada muito especial, contém dentro de si. 

A frase “Sou vasto e contenho multidões”, de Walt Whitman, significa que tudo que sabemos, lemos, ouvimos, aprendemos e todos os que conhecemos fazem com que cada pessoa carregue dentro de si universos inteiros, aos quais nenhuma inteligência artificial conseguirá se igualar.

 

REFERÊNCIAS:

( 1 ) O’NEIL, Cathy. Weapons of Math Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy. New York: Crown Publishing Group, 2016.

( 2 )PARANHOS, Mário Cosac Oliveira. Viés Algorítmico: Uma análise sobre discriminações automatizadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

SILVA, Roni França; PANIAGO, Rosenilde Nogueira. A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NÃO É INTELIGENTE NEM ARTIFICIAL: A CRÍTICA DE NICOLELIS E A ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA PARA DESVELAR A NATUREZA DESSA TECNOLOGIA. Revista Interinstitucional Artes de Educar, v. 11, n. 1, p. 411-425, 2025.

LIMA, Savio Queiroz. “É o Mesmo que ser Escravo”: Desumanização do Trabalho, Consciência de Classe e Ilegalidade da Subversão Política na empresa Tyrell Corporation da franquia Blade Runner (1982-2021).

fonte de imagem de capa link