Sempre ouço a pergunta: “Por que estudar História?” Quem foi meu aluno já conhece a resposta que dou, ano após ano:

Estudamos História não para tomar conhecimento de fatos do passado por mera curiosidade. Estudamos História porque os fatos do passado impactam, ainda hoje, a nossa vida. E por isso os estudamos na intenção de construir um cenário que nos ajude a entender a dinâmica da sociedade e os problemas inerentes à vida social e, com isso, compreender a nossa própria existência em um espectro mais amplo.

Resumindo: estudamos História para compreender por que as coisas são como são!

Posto isto, é importante reforçar que compreender não significa necessariamente aceitar. Compreender pode ser um primeiro e fundamental passo para operar mudanças!

Estamos testemunhando um período histórico bastante conturbado. Algumas piadas nas redes sociais brincam que, caso Eric Hobsbawm estivesse vivo, seu próximo livro, depois de “A Era dos Impérios”, “A Era das Revoluções”, “A Era do Capital”, etc, se chamaria simplesmente “WTF?” Mas, com certeza, o velho e bom Hobsbawm saberia nos ajudar a compreender o período pelo qual estamos passando. E sabe como ele faria isso? Analisando o passado e os fatos que nos trouxeram até aqui.

Eric Hobsbawm

Não chego nem perto de ser um Eric Hobsbawm, mas creio que posso aproveitar esse espaço privilegiado de fala que minha formação e o Portal Deviante me possibilitam para tentar dar os meus 20 centavos de contribuição. Sem achismos. Vamos procurar construir nosso cenário com base em pesquisas. Vamos lá!

Mas por que vivemos esse período tão complicado? Bem, simplificando bastante, podemos dizer que é porque está ocorrendo um embate entre visões antagônicas de sociedade. Mais precisamente, uma disputa entre hegemonia e diversidade. Um embate que sempre ocorreu e ocorre, mas de tempos em tempos, fica mais evidente.

A civilização ocidental se reconhece como legítima herdeira das civilizações da antiguidade clássica, principalmente dos Gregos e Romanos. De fato esses povos legaram à nossa civilização, entre outros valores sociais, a base do direito civil, modelos de organização social, algumas técnicas e, principalmente, uma visão de mundo que deve muito à filosofia grega. Ainda hoje ensinamos em História Geral uma sequência linear de desenvolvimento da civilização que começa no oriente médio e logo depois passa para a Grécia, colocando este primeiro como o local de surgimento das sociedades organizadas (cidades, escrita, comércio, religiões, etc.) e a segunda como o local onde o pensamento humano se aperfeiçoou (filosofia, política, democracia, etc), desprezando completamente outras civilizações também pioneiras, como as do vale do Rio Indo, da China, etc.

Saindo da antiguidade e avançando até o final do período medieval, vamos encontrar uma Europa que, enquanto herdeira da civilização greco-romana e da cosmogonia judaico-cristã, começa a se espalhar hegemonicamente, impondo sua visão de mundo a outras regiões menos “civilizadas” pelo planeta à fora. Desde as cruzadas até as grandes navegações, já na idade moderna, o que vemos é a Europa se tornando uma hegemonia. Todos os povos impactados por essa expansão, com suas visões de mundo e concepção da vida que lhes eram peculiares porque desenvolvidas ao longo de milênios, se viram subjugados por formas de se relacionar com o mundo, e com a sociedade, tipicamente europeias. Estamos falando aqui de uma sociedade dividida em estamentos, em que o lugar de cada indivíduo está definido pela sua posição social ao nascer, e também da compreensão do ser humano com o ápice da criação divina, legadas em grande parte pela religião cristã. Esses pensamentos foram predominantes na Europa até o Iluminismo, já no século XVIII, tendo seu grande momento de ruptura na Revolução Francesa.

Porém essa nova compreensão das relações sociais trazida pelo Iluminismo, que postulava que todos os homens nasciam iguais em direitos, era válida somente na Europa (e mesmo assim com restrições. Onde se lê “homem” leia-se “macho-adulto-branco”). Culturas mundo afora foram tornadas subalternas em contraponto com a cultura dominante. Junto com a desvalorização dessas outras “versões” da humanidade, aprofunda-se o processo de desumanização desses povos. Asiáticos, Africanos, Ameríndios, populações aborígenes da Oceania, ou seja, diversas culturas em várias partes do mundo foram colocadas em segundo plano, como se fossem menos humanas que os Europeus.

Com a colonização e conquista desses outros ambientes sociais essa sociedade de origem europeia espalha-se pelo mundo formando, quase sempre, aristocracias compostas pelos colonizadores e seus descendentes. Os povos que já habitavam esses locais, por serem “um pouco menos humanos” se tornaram apenas instrumentos para a empreitada colonizadora, quando não vítimas de extermínio por oferecerem resistência ao domínio estrangeiro. Extermínio esse que chegou mesmo a ser defendido abertamente, como é o caso de Domingo Sarmiento, na Argentina, século XIX.

A civilização europeia estabeleceu sua hegemonia pilhando, destruindo, matando e escravizando outros povos ao redor do mundo. Europeus são os grandes vilões da História? O mal encarnado? Sem querer aliviar a barra de ninguém, a resposta é não! Esse modus operandi é quase que natural do ser humano (quem já jogou “Civilization” ou “Age Of Empires” sabe disso). Então os povos ao redor do mundo já disputavam território, já se matavam em guerras e já tinham o costume de escravizar seu semelhante. A diferença é que o Europeu fez isso em grande escala, o que nos remete a um termo surgido pouco depois, no final do século XIX: o “fardo do homem branco”. Em um entendimento básico, essa justificativa significa que era obrigação das culturas mais “civilizadas” imporem aos outros povos “menos desenvolvidos” sua cultura e sua forma de organização social, religião, etc. como um benefício ao desenvolvimento destes. Hoje nos parece um pensamento bastante hipócrita, mas, para não fazermos uma análise anacrônica, precisamos compreender esse entendimento no contexto de seu surgimento.

O Fardo do Homem Branco”, na verdade é um poema: “The white man’s burden”. Ele pode ser lido em português e inglês aqui. Foi publicado em 1899 pelo poeta britânico Rudyard Kipling (1865-1936), nascido na Índia em uma família aristocrática inglesa. Nesse poema o imperialismo é justificado como uma obra quase que de caridade, retratando o bem que as nações ocidentais faziam ao levar sua “civilização” aos lugares mais “atrasados” do planeta. Essa visão traduzia o pensamento do final do século XIX, que via a Europa (e os Estados Unidos) como o ápice do desenvolvimento da civilização. Naquele contexto soava bastante justa, uma vez que teorias como darwinismo social e eugenia eram vistas como científicas.

Charge com apologia ao poema de Kipling mostrando um britânico carregando seu fardo. Nos personagens retratados está escrito: Zulu, China, Egito e Índia. As pedras no caminho trazem escrito: brutalidade, escravidão, ignorância, canibalismo, crueldade.

Em suma, a Europa (e mais tarde seu filhote, os Estados Unidos) espalhou, e espalha, sua influência econômica, política e religiosa pelos quatro cantos do mundo. E quando falo em economia e política, não estou me referindo apenas ao capitalismo que se tornou hegemônico. A União Soviética também fez muita lambança a partir da Guerra Fria.

Imperialismo na África

Mas eu contextualizei, de forma bem resumida, até aqui para chegarmos ao ponto principal dessa reflexão: os antagonismos que vemos evidentes no mundo de hoje.

Bem, se formos colocar em foco a América do Sul, que nos interessa sobremaneira porque é onde vivemos ou, no mínimo, onde estão nossas raízes, podemos dizer que a hegemonia europeia por aqui chegou no século XVI. Ao contrário do que muitos pensam, as populações que por aqui se desenvolviam, em diferentes estágios tecnológicos, não foram 100% exterminadas. Elas se amalgamaram a outros elementos formando a base da população mais pobre, cuja força de trabalho é ainda hoje a base econômica das nações que se formaram a partir dessa colonização.

A chegada dos estrangeiros significou a perda da territorialidade política para esses povos, já que esse espaço passou a pertencer “oficialmente” às monarquias europeias sem a consideração de qualquer direito para essas pessoas que aqui habitavam há milênios. Tiveram que lutar por sua sobrevivência e pelo direito à terra e, por isso mesmo, passaram a ser considerados invasores em seu próprio mundo. Isso sem falar de sua cultura, sua cosmovisão e seus modos de vinculação à natureza, que passaram a ser marginalizados. A introdução do elemento africano nesse meio trouxe mais um protagonista que, chegando a esse espaço sem possuir qualquer direito, mesmo após o período de escravização, quando teoricamente deixou de ser cativo, continuou em situação de subalternização e marginalização, indo formar com aqueles primeiros nativos uma massa populacional vista com diversas restrições pela elite que aqui se estabeleceu e, em grande parte, descende dos europeus que para cá vieram em levas sucessivas e que ainda mantém uma mentalidade, por assim dizer, “colonial”.

Em seu livro “Nostalgia Imperial”, Ricardo Salles, falando especificamente do Brasil, coloca que:

Do ponto de vista da constituição histórica de uma classe dominante no país, formou-se um setor desta classe que, ao exercer sua hegemonia sobre os demais setores (definidos por suas atividades econômicas e por seus domínios comerciais geográficos), realizou a hegemonia de toda a classe sobre o conjunto das classes exploradas e subalternas da sociedade.

Ou seja, a despeito de uma formação diversa das classes dominantes no país, uma classe ainda mais abastada, cujo poder e fortuna são históricos, age como um norte a ser seguido, o que, de certa maneira, atinge até a classe média, formando uma mentalidade elitista que se coloca como contraponto a tudo aquilo que é característico das classes populares. Mesmo quando há mobilidade social, o preconceito com relação às origens populares persiste, principalmente se aquela pessoa é descendente de escravizados ou de povos nativos. Notem que esse preconceito está muito mais ligado à origem cultural do indivíduo do que propriamente questões raciais, conforme pontua Ricardo Salles. Por descenderem de escravizados ou de nativos “não civilizados”, esses indivíduos são vistos com ressalvas por essa elite.

Reduzindo há um só aspecto (porque há muitos outros a serem considerados que não são o nosso foco aqui) o que estamos vendo nos últimos tempos, no Brasil e no mundo, é uma disputa de visões de mundo: De um lado uma “elite” calcada na mentalidade colonial europeia, conservadora nos costumes elitistas e exclusivistas e profundamente rancorosa com a contestação de alguns de seus privilégios e também com benefícios sociais voltados às populações mais carentes, pois, em sua mentalidade tacanha, são eles mesmos os “cidadãos de bem”, os que realmente deveriam conduzir o país em detrimento da democracia. Essas são as classes mais abastadas, cujo pensamento é pautado por um radicalismo ultraliberal e pelas religiões neopentecostais. Que não hesitam em bater às portas dos quartéis clamando por uma suposta “ordem social” todas as vezes que sentem seus privilégios ameaçados. Do outro lado vemos grupos políticos, ligados às classes mais populares, que reivindicam para si a defesa de um aspecto mais igualitário na distribuição dos recursos oriundos da dinâmica capitalista e das políticas públicas de acesso à escolarização e aos meios de produção (principalmente a terra), mas que não se mostram competentes para levar esse discurso e esse entendimento para a própria população subalternizada que diz defender. Esse antagonismo tem pautado a disputa política desde a crise econômica iniciada em 1998, tendo ocorrido em alguns momentos vitórias das lideranças mais progressistas e a radicalização cada vez mais evidente de uma ultradireita que se diz nacionalista e conservadora nos costumes.

Esse é o momento atual, no qual vemos o fenômeno dessas ultradireitas cada vez mais evidente em diversos países e seus antagonistas sem capacidade para fazer chegar às massas esse debate. Basta alguns minutos de conversa nos locais de concentração das camadas mais populares para percebermos que o pensamento geral se assemelha bastante ao da elite. A eleição do atual presidente, um radical de extrema direita, é um indicador preciso dessa sincronia de pensamento.

É bastante temeroso, e até desaconselhável, a tentativa de uma análise histórica precisa de uma conjuntura estando no olho do furacão, vendo notícias cada vez mais desesperadoras sempre que se acessa a internet. É possível que os próximos acontecimentos políticos tornem essa análise incoerente. Mas vamos aguardar o que o futuro (principalmente as eleições de 2022) nos reserva para vermos o caminho que a política brasileira (e mundial) seguirá.

Finalizando, gostaria de deixar para vocês com os versos da música “Quadro Negro” de Lenine e Carlos Rennó, que em 2002, fazia uma análise poética do embate que discutimos ao longo do texto:

No sub-imundo mundo, sub-humano

Aos montes, sob as pontes, sob o sol

Sem ar, sem horizonte, no infortúnio

Sem luz no fim do túnel, sem farol

Sem-terra se transformam em sem-teto

Pivetes logo se tornam pixotes

Meninas, mini-xotas, mini-putas

De pequeninas tetas nos decotes

Quem vai pagar a conta?

Quem vai lavar a cruz?

O último a sair do breu, acende a luz

No topo da pirâmide, tirânica

Estúpida, tapada minoria

Cultiva viva como a uma flor

A vespa vesga da mesquinharia

Na civilização eis a barbárie

É a penúria que se pronuncia

Com sua boca oca, sua cárie

Ou sua raiva e sua revelia

Quem vai pagar a conta?

Quem vai lavar a cruz?

O último a sair do breu, acende a luz

O que prometeu não cumpriu

O fogo apagou

A luz se extinguiu.

Ouça aqui: https://open.spotify.com/track/0NLe8emvo5hQfh17lamt5i?si=5d9f42f21aa44128

Ps.: Esse ensaio é dedicado à Memória do Professor Ricardo Salles (1950-2021) – Historiador, escritor e professor titular de História Contemporânea da Escola de História da UNIRIO, universidade na qual me formei. Infelizmente, Ricardo nos deixou, aos 71 anos, no último dia 1º de novembro. Fica registrado o meu pesar e a minha homenagem ao mestre.

Prof. Ricardo Salles

Referências bibliográficas:

Referências das Imagens:

1.https://beduka.com/blog/exercicios/questoes-sobre-expansao-territorial-brasil/

2.https://jacobin.com.br/2021/06/eric-hobsbawm-tinha-razao/

3.https://historiacsd.blogspot.com/2017/06/o-mundo-do-trabalho-nas-sociedades-da.html

4.https://universoracionalista.org/por-que-devemos-defender-o-iluminismo/

5.https://br.rbth.com/ciencia/84071-povos-nativos-americanos-baikal

6.https://ensinarhistoria.com.br/o-fardo-do-homem-branco-exaltacao-do-imperialismo/

7.http://eroneducador.blogspot.com/2013/10/a-divisao-social-e-de-poder-na-colonia.html

8.http://www.esquerdadiario.com.br/Muito-de-direita-e-pequena-a-manifestacao-de-direita-em-Sao-Paulo

9.http://www.faperj.br/?id=4364.2.4