A frase cunhada pelo autor Ernest Hemingway, em 1926, pode nos ajudar a compreender como interpretamos e percebemos (ou não percebemos) as crises econômicas e políticas no Brasil e no mundo.

gif de uma bomba relógio

A melhor forma de escapar de uma bomba relógio é sendo capaz de ouvir seu tique taque.

Uma breve explicação sobre a crise econômica de 2008

Recentemente, me encontrei pesquisando as maquinações por trás da crise econômica (americana e portanto, global) de 2007-2008, algo que nunca havia entendido completamente, apenas me lembrava da minha mãe assistindo o jornal e das pessoas a minha volta temendo que a recessão afeta-se o Brasil.

A crise econômica em questão teve início com uma crescente bolha imobiliária. Em resumo, vários bancos utilizaram de um incentivo governamental para a criação de hipotecas subprime (empréstimos imobiliários com taxas de juros mais altas, concedido a pessoas com pontuação de crédito baixa), originalmente criado para facilitar a obtenção de moradia para famílias menos favorecidas.

Entretanto, o mercado imobiliário expandiu o número de casas disponíveis em uma proporção muito superior à demanda para aproveitar-se desse incentivo governamental. Em retrospecto, haviam vários sinais de que uma crise estava se desenhando. Para elencar três:

  1. A maior parte dos compradores não eram famílias, mas investidores comprando moradias com intuito especulativo (expectativa de que os imóveis valorizassem com o tempo).
  2. Apesar da demanda extensivamente maior do que a procura, o preço das moradias não reduziu, pelo contrário, aumentou constantemente por anos.
  3. Ligação direta de bancos com o mercado imobiliário: as hipotecas faziam parte considerável dos rendimentos dos maiores bancos do país e do mundo, em caso de crise, a bolha se espalharia por todo o mercado, não apenas no setor imobiliário.
Capitalização total de mercado das empresas listadas em relação ao PIB no mundo todo, a queda no ano de 2008 é de mais de 50%.

Capitalização total de mercado das empresas listadas em relação ao PIB no mundo todo, a queda no ano de 2008 é de mais de 50%. Fonte.

Eventualmente, entre 2007 e 2008, o preço (somado aos juros) tornou-se alto demais para proprietários e especuladores conseguirem pagar. O resultado? Crise econômica mundial, espalhada por todos os setores. Em pouquíssimo tempo, a capitalização do mercado mundial caiu pela metade, diversos bancos faliram e vários governos precisaram intervir em seus países para evitar o colapso econômico e social.

Bush se diz otimista sobre a economia, 20 de setembro de 2007

Bush se diz otimista sobre a economia, 20 de setembro de 2007. Fonte.

O fato curioso é: no ano anterior, em 2007, o mercado financeiro atingiu seu auge histórico e, para a maior parte da população, a crise econômica foi súbita e aterradora. Algo que beira o absurdo, quando analisamos a situação pelas lentes do presente.

Como o público (leigos e especialistas) falharam em perceber sinais tão óbvios antes da crise?

A resposta se encontra em um romance publicado em 1926.

“De duas maneiras”, Mike respondeu. “Devagar, e então de repente.”

The Sun Also Rises (1926) é um romance de Ernest Hemingway que captura o espírito da Geração Perdida — um grupo de expatriados americanos e britânicos vivendo na Europa após a Primeira Guerra Mundial. A história segue Jake Barnes, um jornalista americano em Paris, e seu amor não resolvido por Lady Brett Ashley, uma mulher sedutora e independente. O romance explora temas como alienação, masculinidade, desilusão e a busca por significado em um mundo pós-guerra. A escrita minimalista e objetiva de Hemingway reforça a melancolia da história, enquanto a jornada dos personagens simboliza a fragilidade emocional de uma geração perdida.

A frase famosa, entretanto, centra-se em volta de um personagem secundário, Mike, que perdeu tudo devido a crise motivada pela guerra, ao ser questionado “Como você faliu?”.

A progressão de uma crise, seguindo aquela ideia do “devagar, e então de repente”, pode ser dividida em duas fases bem distintas. A primeira fase, o “devagar”, é marcada pelo acúmulo gradual de problemas que já estavam ali, as tendências que começam de forma discreta e os sinais de alerta que, muitas vezes, são ignorados. Essa etapa pode durar anos, até décadas, com questões e desequilíbrios que persistem e, pior, aumentam.

Por exemplo, na economia, isso pode aparecer como uma dívida pública que cresce lentamente, a formação de bolhas de preços em certos setores ou uma fiscalização que vai ficando mais frágil, sem muita gente perceber. Na política, a situação é parecida: a confiança nas instituições vai diminuindo aos poucos, a polarização entre as pessoas aumenta, ou aquelas reclamações da sociedade que nunca são resolvidas vão se acumulando.

Aí, de repente, vem a segunda fase, o “tudo de uma vez”. É quando acontece algum evento, um gatilho, que aproveita todas aquelas fragilidades que já existiam. É nesse momento que ocorre o “ponto de inflexão”. Uma situação crítica em que uma pequena mudança pode gerar uma série de outras mudanças que se retroalimentam, levando a um resultado bem diferente. No sistema financeiro, pode ser uma perda repentina de confiança dos investidores, que causa uma queda forte no mercado ou uma corrida aos bancos. Na política, poderia ser um evento como um grande escândalo, uma eleição muito disputada ou algum acontecimento externo que piora a insatisfação popular, levando a protestos ou até a mudanças de governo. O que define essa fase é a rapidez e a intensidade da mudança, que pega muita gente de surpresa e pode ter consequências importantes e, às vezes, irreversíveis.

As crises do passado

A história oferece inúmeros exemplos de crises econômicas que se desenrolaram dessa maneira. O colapso da União Soviética em 1991 e a crise financeira da Argentina em 2001 são frequentemente citados como casos em que anos de fraquezas econômicas subjacentes e políticas insustentáveis culminaram em colapsos repentinos e dramáticos.

Da mesma forma, as várias crises financeiras experimentadas nas últimas décadas, como o crash da bolsa de valores de 1987, a crise financeira asiática do final da década de 1990, a implosão das pontocom do início dos anos 2000, a Grande Recessão de 2007-2009 (já discutida) e o colapso financeiro da COVID-19 de 2020, todos exibiram um padrão de acúmulo gradual de vulnerabilidades seguido por uma rápida reação do mercado. Até mesmo eventos aparentemente isolados, como a significativa queda de mercado observada em várias classes de ativos em um curto período, podem refletir a percepção repentina de preocupações econômicas que estavam se desenvolvendo lentamente.

Na esfera política, o colapso da União Soviética, mencionado anteriormente no contexto da falência econômica, também serve como um excelente exemplo de um sistema político que experimentou um longo período de decadência interna antes de sua dissolução. O trágico colapso de Nagorno-Karabakh em 2023 ilustra vividamente esse padrão, com décadas de conflito latente e confrontos intermitentes culminando em uma ofensiva azerbaijana rápida e decisiva que levou a um êxodo em massa da população armênia. A própria natureza de sistemas políticos instáveis, caracterizados pela incapacidade de atender a demandas persistentes e generalizadas, sugere um enfraquecimento gradual que os torna vulneráveis a um colapso repentino sob a pressão de uma crise.

O conceito também encontrou seu caminho na análise política. É usado para descrever como períodos de aparente estabilidade política podem mascarar rigidez e fragilidade subjacentes que tornam o sistema vulnerável a mudanças repentinas e significativas. A transformação da identidade política de uma região, o potencial para mudanças rápidas nos cenários geopolíticos e o impacto tardio, mas eventual, dos avanços tecnológicos na sociedade são todos enquadrados sob essa perspectiva. Isso indica um reconhecimento crescente de que transformações políticas significativas são frequentemente o resultado de pressões acumuladas, em vez de eventos puramente repentinos.

Crises em menor escala também são explicadas pelo fenômeno. Em 2020, Joe Biden debateu contra Donald Trump pela presidência dos Estados Unidos, o político saiu do debate soando sagaz e apto, e da disputa eleitoral, como vitorioso. Em 2024 o cenário se repetiu entretanto, dessa dez, o político apresentou sinais claros de demência e, como resultado, viu-se obrigado a sair da corrida eleitoral. Claro, ele deu sinais de deterioração durante esses 4 anos, mas perante o público, o debate caracterizou o ponto de inflexão, ele se mostrava incapaz lentamente e então, de repente.

O debate presidencial de 2024 entre Trump e Biden, creditado por muitos como o responsável pela desistência do democrata e pela crise interna do partido Democrata.

O debate presidencial de 2024 entre Trump e Biden, creditado por muitos como o responsável pela desistência do democrata e pela crise interna do partido Democrata. Fonte.

Como perceber sinais de crise na economia e na política

Conseguir ouvir o tique-taque da bomba relógio não é tarefa fácil, obviamente, ainda mais quando uma multidão barulhenta está ao redor, mas aqui vão algumas dicas. Parafraseando o artigo The perception of crisis, the existence of crisis: navigating the social construction of crisis, publicado pelo Journal Of Applied Communication Research: crises são um fenômeno imprevisível, porém não inesperados.

Na economia, identificar os principais indicadores econômicos que sinalizam esse acúmulo gradual é crucial para entender e potencialmente mitigar futuras crises. Níveis insustentáveis de dívida pública ou privada são frequentemente destacados como um grande risco de longo prazo. A formação de bolhas de ativos, em que o preço dos ativos se descola de seu valor intrínseco, também representa uma vulnerabilidade que se acumula lentamente e pode estourar repentinamente. Fraquezas na regulamentação e supervisão financeira podem permitir que práticas arriscadas proliferem despercebidas até que um evento desencadeador exponha a fragilidade sistêmica. Mudanças no sentimento do mercado e na confiança dos investidores, embora muitas vezes sutis inicialmente, também podem indicar um crescente mal-estar que pode levar a uma repentina fuga de capitais ou vendas em massa no mercado. A inversão da curva de juros, onde as taxas de juros de curto prazo são mais altas do que as de longo prazo, é outro indicador que historicamente precedeu as recessões econômicas. A concentração da capitalização de mercado em algumas ações dominantes também pode representar um risco oculto, pois uma queda nesses principais players pode ter um impacto desproporcional.

Vários indicadores políticos e sociais importantes podem apontar para uma escalada gradual da instabilidade que pode preceder uma convulsão política repentina. Um declínio na legitimidade política, onde o governo perde a confiança e o consentimento dos governados, é uma vulnerabilidade crítica de longo prazo. Níveis crescentes de agitação social, manifestados por meio de protestos, greves ou outras formas de desobediência civil, indicam crescente insatisfação e um potencial para interrupções mais significativas. O aumento da polarização política, onde as divisões sociais se aprofundam e o compromisso se torna mais difícil, pode corroer a estabilidade das instituições políticas. Pressões externas, como mudanças geopolíticas ou a influência de estados vizinhos, também podem desestabilizar lentamente um sistema político, tornando-o mais suscetível a choques repentinos. Até mesmo fatores como o deslocamento ambiental, causado por desastres naturais, podem contribuir para a instabilidade política, criando pressões sociais e econômicas. A legitimação de sentimentos negativos em relação a grupos específicos dentro de uma sociedade também pode se acumular lentamente até um ponto de ruptura.

Embora a estrutura forneça insights valiosos sobre a trajetória geral das crises, a complexidade e a imprevisibilidade inerentes desses sistemas exigem uma abordagem cautelosa à previsão. O momento exato e a natureza da fase de “tudo de uma vez” podem ser difíceis de prever. Portanto, um foco em um planejamento de contingência robusto, estratégias adaptativas e o fomento da resiliência sistêmica são primordiais. Ao entender os precursores e o potencial para mudanças repentinas, formuladores de políticas, líderes empresariais e indivíduos podem se preparar melhor e navegar pelos desafios inevitáveis que surgem quando o lento acúmulo de pressões finalmente explodir.

Referências

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