A genealogia musical é um universo fascinante. Assim como o estudo da evolução das espécies pode nos levar a descobrir que o temível Tiranossauro Rex era muito mais próximo de uma galinha do que muitos gostariam de acreditar, o estudo das sucessões de diferentes gêneros musicais através do tempo pode, por vezes, revelar parentescos nem um pouco óbvios entre diferentes sons, culturas e épocas.

Eu já pincelei um pouco desse assunto em meu texto sobre a história da MPB e da Tropicália, bem como em diversos vídeos do canal O Que É Música?. Mas ele ganhou novos ares para mim ao longo dos últimos meses, quando decidi transcrever integralmente o álbum Paranoid (1970), um clássico da banda britânica Black Sabbath.

https://youtu.be/ab-ZNU76UDE

Fairies Wear Boots, Black Sabbath, 1970

Pelo bem de nossa analogia biológica, podemos equiparar o procedimento de se transcrever uma canção ou um álbum ao de se dissecar minuciosamente um ser vivo. Ao transcrever uma música, primeiro mimetizamos. Buscamos tocar ou cantar aquilo que estamos ouvindo, da forma mais fiel possível ao material base, para então passar tudo para o papel, e, enfim, analisar.

O objetivo fundamental dessa prática é permitir que tenhamos um contato mais direto e aprofundado com as ideias do artista que estamos transcrevendo. Assim, podemos conhecer seu processo criativo de dentro para fora, transformando-o em conhecimento ativo e, porque não, incorporando algumas de suas ideias pelo caminho.

É sabido que o Black Sabbath é tido como uma das pedras fundamentais daquilo que posteriormente se convencionou chamar de heavy metal. E mesmo uma audição rápida de um álbum como Paranoid não deixaria muitas dúvidas a respeito das razões disso. Estão lá as temáticas ocultistas, as letras raivosas, as guitarras distorcidas… Embriões para muito do que seria feito posteriormente por bandas como Metallica, Slayer e Iron Maiden.

E ainda assim, ao transcrever (ou dissecar) as canções desse álbum, não pude deixar de notar que ele me ensinou menos sobre o heavy metal, que ramificaria a partir dele, e mais sobre o blues, do qual ele descende.

Não que o parentesco entre blues e heavy metal seja um segredo. Mas assim como é chocante imaginar um Tiranossauro coberto de penas, é interessante oferecer uma análise mais aprofundada a um álbum que é tido como marco do heavy metal, e perceber que sua proximidade com seu ancestral musical é muito maior do que o senso comum nos permitiria imaginar.

Sim, pois muito embora a sonoridade por vezes mais escura e agressiva de Paranoid sirva como prenúncio ao que ainda estava por vir, muitas de suas escolhas de notas e acordes, interpretações melódicas, e até mesmo o ritmo, por vezes ainda swingado e dançante, fazem referência a algo muito mais primordial, e que se veria cada vez mais diluído daquele ponto em diante.

Características essas que estiveram presentes em parte significativa da obra dos Beatles, assim como no Rock N’Roll de Chuck Berry, no Rhythm And Blues de Little Richard, no Swing Jazz de Duke Ellington, e assim por diante.

It Don’t Mean A Thing (If It Ain’t Got That Swing), Duke Ellington, 1943

E se insistirmos nesse raciocínio, eventualmente seremos capazes de traçar uma linha que conecta diretamente os protestos agressivos de Ozzy Osbourne e Tony Iommi aos lamentos resignados de negros anônimos, que tentavam sobreviver no Sul rural dos Estados Unidos do Século XIX. Estes, por sua vez, estavam munidos apenas de suas próprias vozes, e de instrumentos acústicos, rudimentares. Mas de alguma forma, seus cantos ecoaram, e, gerações após, ajudaram a dar origem a alguns dos gêneros musicais mais eletrificados de que se tem notícia.

Crossroad, Robert Johnson, 1936

E assim como a dissecção e a comparação de seres vivos podem revelar longas histórias de ancestralidades e parentescos perdidos, análises mais aprofundadas desses elementos culturais não deixam a desejar em seu poder de contar histórias que vão muito além da superfície.