Centauros (人馬 – Jimba) é um mangá de Ryo Sumiyoshi (também conhecido como Ryo Suzuri – que fez MADK) publicado pela editora East Press, e lançado no Brasil pela ressuscitada Editora Conrad, completo em 3 volumes.

O primeiro volume conta a história de Kohibari e Matsukaze, dois centauros escapando de uma situação horrível. Mas mais do que isso, nesse mundo existem centauros e, durante uma guerra no feudalismo, meados de 1550, humanos caçavam e usavam centauros como montaria. Se o centauro fosse muito feroz ou temperamental, os humanos amputavam os braços dele. 

Então é a história de Matsukaze, que é capturado por humanos quando seu filho pequeno vai pegar comida muito perto de uma vila humana, e de Kohibari, montaria sem braços de um grande general e que estava desesperado para um centauro forte, um garanhão, um “iwatora”, ser capturado para ajudar ele mesmo a fugir dessa situação, já que ele sabia que o grande Iwatora não seria mutilado e teria mãos para abrir o portão.

Eles conseguem embebedar os humanos e fugir e o primeiro volume é uma história completa com começo, meio e fim. É trágico e romântico e lindo e sensível. É tudo à flor da pele, a natureza e a guerra, os conhecimentos da floresta e a perseguição sem fim de dois centauros nas montanhas por um grupo armado. A história termina de forma melancólica e triste, mas com possíveis futuros melhores para todos.

 

O terceiro volume é a história prévia desses dois, a infância deles até o começo do volume 1. Não é necessária, per se, mas eu gosto. Sempre gosto de reencontrar meus personagens favoritos em outros contextos. Leio fanfics com esse intuito, então esse volume 3 foi bom, a construção da guerra em torno dessa caçada a centauros, com o Matsukaze perdendo o pai, e o desespero do Kohibari preso, são narrativas fortes. Pesadas. A sutileza sempre vai aumentando e fazendo crescer um contexto, uma cultura. 

 

Já o segundo volume é o foco desta conversa minha com vocês.

Eu acho esse segundo volume extremamente japonês, de um jeito negativo. Mas espero que vocês leiam esse texto de coração aberto, pois criticar culturas é uma coisa delicada, e eu fiz o meu melhor.

Qualquer pessoa racional que vive em países que tiveram escravidão de pessoas negras sabe que o volume 2 desse mangá está um tanto “inocente”.

 

Como assim? — você me pergunta.

 

O volume dois se passa depois de 30 anos do primeiro, o filho do Kohibari quer descer a montanha para encontrar humanos e o filho do Matsukaze vai atrás, para proteger o adolescente.

Na base da montanha tem uma cidade e lá humanos e centauros vivem e coexistem; centauros são especializados em alguns tipos de trabalho braçal em construção civil, enquanto humanos ficam com as partes mais técnicas e artesanais. Tem até uma centaura baixinha que era casada com um humano e que faz a ponte cultural entre os grupos, ensinando os “centauros selvagens a se vestir”, por exemplo.

O roteiro do volume dois é sobre o adolescente se ferindo gravemente e descobrindo seu lugar entre os humanos, fazendo cestos de palha, e se apaixonando por uma centaura que é dançarina num templo. Enquanto que o filho do Matsukaze precisa aprender a não sentir mais ódio pelos humanos, para ser capaz de deixar o menino para trás quando retornar à montanha.

 

Minha nossa SENHORA. *gritos e berros intraduzíveis*

 

Na primeira página do volume 1 diz:

“As guerras humanas transformaram os centauros em meras ferramentas”. 

 

Essa objetificação de criaturas sencientes e, principalmente, o ódio mútuo entre os grupos; humanos literalmente mutilando centauros e tratando eles como intelectualmente ineptos e como armas; a compra e a venda de centauros… É impossível não traçar paralelos com a escravatura.

Esse volume 2, num time skip de meros 30 anos, com personagens que perderam pessoas e lares nessas guerras, existindo centauros mutilados ainda vivos, com as feridas desses traumas ainda abertas… e daí o personagem problemático é o cara que ainda sente esses traumas?! Sei lá, parece desonesto. Parece “insincero”. Parece que o autor entende que racismo é uma opinião individual de odiar outras pessoas individuais.

Parece um texto feito por um japonês que não entende o que é racismo.

Alguns exemplos de racismos que acontecem no Japão HOJE e que eu recomendo que você dê uma olhada depois: os povos Ainu ainda sofrem preconceito sistêmico e apagamento cultural; os descendentes de imigrantes coreanos sequestrados na segunda guerra mundial ainda são tratados como estrangeiros; pessoas negras no Japão frequentemente contam que japoneses encostam na pele deles e puxam seus cabelos sem perguntar nada; leis contra discurso de ódio foram implementadas pela primeira vez em 2016 e não existe nenhum tipo de punição se você propaga ódio; existe uma insurgência de grupos de ódio contra chineses no Japão desde os anos 2000. E por aí vai.

E você está me dizendo que esse mangá tem uma paz perene num pulo de meros de trinta anos?

Isso só seria verdade se os centauros fossem “japoneses”. O que o autor parece entender que sim, são. Então a reintrodução deles na sociedade seria uma mera formalidade. É só a guerra acabar que a paz retorna.

O autor não parece entender que racismo é irracional e estrutural. No momento em que o homem japonês monta num centauro, ele se coloca numa posição superior. Ponto. Fim. Os centauros não têm direitos, porque os centauros não são pessoas. E isso não se reestrutura socialmente, ou se desconstrói, em uma geração. 

 

Sei lá gente.

A abolição no Brasil foi em 1888 e a gente tem racismo até hoje. Isso porque o racismo que a gente tem, na REALIDADE, é baseado na cor da pele, mesmo sendo todos humanos. Se, por acaso, os povos escravizados fossem curupiras (algo não-humano), os opressores teriam uma base de justificativa muito mais forte para propagar esse racismo. Não importa se o curupira sabe ou não falar a nossa língua ou se veste nossas roupas.

Assim, eu até engoliria o roteiro do volume dois se tivessem passado duzentos anos. As memórias de guerra ficam diferentes, lendas de centauros e humanos sendo amigos podem ter sido propagadas pelo governo… Tem jeitos de eu acreditar nessa história. Mas do jeito que foi feito eu senti sensações muito esquisitas. Isso porque eu nem sou negra, eu só gosto de estudar culturas. O mangá mostra que um japonês comum, mesmo sendo uma pessoa sensível aos problemas do mundo, não compreende o racismo estrutural opressor. Possivelmente porque não convive com isso no dia a dia.

E eu genuinamente não acho que o autor fez por mal. Tirando esse contexto todo, os personagens têm narrativas interessantes e os conflitos são engajantes. Os diálogos são bons e a arte é maravilhosa. Desenhar cavalos já é uma habilidade de respeito, agora desenhar centauros de roupinha? Maravilhoso, espetacular. Fazer olhares que passam ódio e rancor e amor e dor? Mande meus cumprimentos ao chefe. O mangá tem sutilezas nas culturas dos centauros que eu queria poder estudar a fundo, porém não existem, e eu choro de tristeza.

Mas o volume dois tem um problema com racismo. Porque ele é cego ao próprio racismo e, para mim, estragou completamente a suspensão de descrença, me impedindo de realmente me divertir e aproveitar a obra. Depois do volume dois eu precisei de um mês para me motivar a ler o volume 3. Mas fiquei feliz que eu li. O volume três constrói a guerra um passo de cada vez e é assustador de ler, é palpável e realista. Acho que é justamente porque a construção do mundo é tão boa que o volume dois incomodou tanto.

No fim das contas, eu recomendo a leitura. Justamente por mostrar esse lado da cultura japonesa, cega aos próprios problemas sociais, mas também porque é uma obra linda. A história vale a pena. Os personagens valem a pena. A arte vale muito a pena. E a edição da Conrad está maravilhosa. 

(Avisando que optei por pronomes masculinos, mas Ryo Sumiyoshi não divulgou seu gênero publicamente na internet)