Não. (In)felizmente esse não é outro texto sobre dinossauros. O foco aqui será nos interessantíssimos baurussuquídeos, um grupo bastante diverso de crocodilianos que rondava pelo Gondwana no final do período Cretáceo, há uns 88 milhões de anos atrás. Seu registro fóssil é bastante rico no Brasil, principalmente nas rochas do Grupo Bauru que afloram nos estados de São Paulo e Minas Gerais.

Fósseis destes animais são conhecidos desde meados do século passado com a descoberta do Baurusuchus pachecoi (Figura 1) pelo grande paleontólogo brasileiro Llewellyn Ivor Price, e seu nome significa “crocodilo do Bauru”, em alusão às rochas do Grupo Bauru, onde são encontrados. Mais recentemente, já a partir dos anos 2000, vários outros registros deste grupo de crocodilianos foram documentados, incluindo outros espécimes e espécies de Baurusuchus, bem como outros baurussuquídeos como Stratiotosuchus, Pissarrachampsa, Campinasuchus e Aplestosuchus.

Figura 1: Crânio do Baurusuchus pachecoi, descrito por Price em 1945. É possível notar características que o faziam um grande predador, como as mandíbulas fortes e os grandes dentes que são curvados para trás e serrilhados. Créditos da imagem são da página do Facebook do Serviço Geológico do Brasil – CPRM disponível aqui

 

A partir destes novos fósseis, alguns deles bem completos com praticamente todo o esqueleto preservado, muito se agregou ao conhecimento de como era a paleobiologia destes animais, além de suas interações paleoecológicas. Desta forma, é possível inferir com bastante clareza que estes baurussuquídeos poderiam chegar a até 4 metros de comprimento, e que possuíam uma postura mais ereta do que a observada nos crocodilos e jacarés de hoje em dia. Mas o fóssil do Aplestosuchus chama muita atenção por outra razão. O esqueleto deste baurussuquídeo foi descoberto com conteúdo estomacal preservado! E pasmem…o que havia na barriga dele eram restos do crânio de um outro tipo de crocodiliano de pequeno porte, onívoro, conhecido como esfagessaurídeo (Figura 2). E essa evidência de predação direta entre diferentes grupos de crocodilianos fósseis da época deixa claro uma suspeita bastante óbvia de que os baurussuquídeos seriam de fato predadores de topo da cadeia alimentar de seu tempo.

Figura 2: Fóssil do Aplestosuchus sordidus (A) com zoom do conteúdo estomacal (B). C é uma reconstituição em escala do tamanho corporal do predador e da preza. Retirado de Godoy et al. (2014). Escala em C equivalente a 50 cm.

Notavelmente, este último dado nos faz pensar nos dinossauros terópodes, corriqueiramente tidos como os grandes predadores terrestres da maior parte do Mesozoico. Será que isso quer dizer que naquela época os baurussuquídeos desempenhavam este papel ecológico de grandes predadores com dinossauros terópodes? Possivelmente sim…provavelmente não! Pode parecer conversa mole, mas o registro fóssil aponta para um caminho bastante incomum neste caso dos baurussuquídeos, já que, na esmagadora maioria das outras rochas do Cretáceo Superior em todo o mundo, os terópodes são os grandes predadores.

Ao passo em que as pesquisas paleontológicas avançam, mais e mais fósseis de baurussuquídeos são encontrados nas rochas do Grupo Bauru, enquanto os de dinossauros terópodes praticamente inexistem, exceto por algumas ocorrências bastante fragmentárias, como apenas alguns ossos ou dentes. E para explicar esse cenário algumas hipóteses foram levantadas. As mais interessantes são:

(1) baurussuquídeos e terópodes eram os grandes predadores da época, mas por algumas razões (por exemplo, os crocodilianos viviam em ambientes mais propensos aos fenômenos de sedimentação e portanto sua fossilização era mais provável que a dos terópodes) os baurussuquídeos se preservaram e os terópodes não;

(2) simplesmente não havia muitos terópodes por perto porque até eles poderiam se sentir intimidados pelos baurussuquídeos. Mas por mais que seja complicado testar estas e outra hipóteses, a melhor resposta talvez fosse um pouco de cada uma delas.

Mas se estes baurussuquídeos foram predadores tão bem sucedidos assim, o que os tornava especial? Ou melhor, como seriam seus métodos de predação? Eram ágeis? Tinham mordidas potentes? E foi pensando um pouco sobre isso que uma grupo de paleontólogos brasileiros e do Reino Unido resolveu aplicar a Análise de Elementos Finitos para saber um pouco mais sobre estes predadores. Essa técnica foi desenvolvida pelos campos da engenharia como um método numérico utilizado em computadores para resolver problemas estruturais, como áreas que sofreriam mais ou menos tensão por conta do peso, entre outros.

O pulo do gato é que alguns paleontólogos resolveram aplicar essa metodologia para testar como seria, por exemplo, a força de mordida de animais extintos, e no caso da pesquisa referida aqui, para investigar a força de mordida dos baurussuquídeos. E para a análise, leva se em conta um modelo tridimensional do crânio (Figura 3), diversas medidas da anatomia craniana e a força estimada para cada um dos músculos encarregados pela abertura e fechamento da mandíbula (essas estimativas têm como base a musculatura de animais de hoje em dia, como aligátores, por exemplo).

Figura 3: Modelo 3D do crânio de um Baurusuchus utilizado na investigação da força da mordida destes crocodilianos. Retirado de Montefeltro et al. (2020). Escala de 10 cm.

E os resultados foram bastante surpreendentes. Aposto que ao olhar para um crânio de Baurusuchus, como os das Figuras 1 e 3, você pensou em uma mordida de força esmagadora, como a de um Tyrannosaurus rex. Mas o que foi observado é que esses baurussuquídeos tinham uma mordida relativamente fraca, algo em torno de 600 N de força. Para se ter uma ideia, alguns terópodes, como o T. rex, poderiam alcançar até 50.000 N de força de mordida. E até a mordida de um aligátor atual é mais poderosa que a de um baurussuquídeo (por volta de 1.000 N).

Entretanto, há uma hipótese bastante interessante que explicaria o sucesso de um predador como esse, com uma mordida tão mais fraca como a de um terópode. Segundo os autores deste estudo, a arquitetura craniomandibular deste crocodiliano, além de seus grandes dentes curvados e serrilhados, e de sua musculatura cervical bastante forte promoveriam condições para que os baurussuquídeos cravassem seus grandes dentes e chacoalhasse ou rodasse sua cabeça para dilacerar ainda mais as suas presas. Ou ainda, os baurussuquídeos poderiam ser mais especializados na predação de animais menores, como os pequenos esfagessauros, que assim como eles, eram bastante comuns nos ambientes semiáridos retratados pelas rochas do Grupo Bauru. E o Aplestosuchus que o diga!

 

Bibliografia

– Godoy, P. L., Montefeltro, F. C., Norell, M. A., & Langer, M. C. 2014. An additional baurusuchid from the Cretaceous of Brazil with evidence of interspecific predation among Crocodyliformes. PloS one, 9(5).

-Montefeltro, F. C., Lautenschlager, S., Godoy, P. L., Ferreira, G. S., & Butler, R. J. (2020). A unique predator in a unique ecosystem: modelling the apex predator within a Late Cretaceous crocodyliform‐dominated fauna from Brazil. Journal of Anatomy.

-Price, L.I. 1945. A new reptile from the Cretaceous of Brazil. Departamento Nacional da Produção Mineral, Notas Preliminares e Estudos. Rio de Janeiro. 25: 1–8.