Os dinossauros dominaram os ecossistemas terrestres por mais de 150 milhões de anos durante a Era Mesozoica. Mas, enquanto os dinossauros andavam por aí, um grupo de répteis voadores dominaram os céus, os pterossauros. Leia novamente as duas primeiras frases. É isso mesmo! Apesar do que muitos pensam, os pterossauros não são dinossauros. Muito menos são os pterossauros os parentes dos morcegos ou aves (essas sim são dinossauros). E dessa forma, quem são os pterossauros?

Fósseis de pterossauros são encontrados em todos os continentes, exceto na Antártida. No Brasil, a localidade mais famosa com fósseis destes animais fica na Chapada do Araripe na divisa dos estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, datadas do Cretáceo Inferior. O registro fóssil dos pterossauros mostra cerca de 150 milhões de anos de história evolutiva. E essa linhagem se diversificou de forma surpreendente. Havia pterossauros muito pequenos, como o Nemicolopterus que tinha 25 cm de envergadura e vivia em áreas mais florestadas e se alimentavam de inseto. Formas mais famosas, incluindo os brasileiros Tapejara e Anhanguera, eram animais de grande porte que viviam em áreas litorâneas e possuíam adaptações para captura de peixes.

 O primeiro relato de um fóssil de pterossauro foi feito pelo naturalista italiano Cosimo Alessandro Collini, em 1784. Apesar de a espécie encontrada por Collini ser hoje conhecida como o famoso Pterodactylus (Figura 1), Collini e seus contemporâneos não conseguiam muito bem decifrar o parentesco daquele animal. Mas por que aquele bicho encontrado por Collini era tão misterioso?

Figura 1: Esqueleto do Pterodactylus, um dos pterossauros mais conhecidos de todo o mundo. Fonte

Os pterossauros possuem uma anatomia bastante esquisita quando comparada às de outros grupo de animais conhecidos na época. A característica mais marcante é o quarto dedo da mão muito alongado, mais longo até mesmo que o restante do braço do bicho. Outra coisa interessante nestes animais é a presença de um osso que só se conhece neste grupo, o pteróide (Figura 2).

Figura 2- Comparação da anatomia das mãos e estruturas básicas das asas do (A) pterossauro Pteranodon, (B) do dinossauro primitivo Herrerasaurus, (C) do dinossauro terópode Coelophysis, (D) de um morcego, e (E) de uma galinha. Cores e números representam estruturas homólogas. A sigla “pt” representa o osso pteróide, exclusivo dos pterossauros. Fonte: Tokita, 2015.

Localizado na região de junção entre a mão e o punho, o pteróide provavelmente tinha função de sustentação da parte anterior da asa membranosa. Essas e outras características,tornavam difícil a vida dos naturalistas que queriam entender quem eram os parentes mais próximos destas estranhas criaturas.

Em um tempo em que nenhum animal similar já tinha sido visto, Collini sugeriu que os pterossauros eram criaturas que viviam nos oceanos, o único lugar em que algo tão bizarro poderia se esconder! – lembre-se que estamos aqui falando de um tempo ainda antes da publicação do famoso livro de Charles Darwin. Mas como explicar aqueles membros tão alongados? Collini e outros contemporâneos sugeriram tratar-se de nadadeiras, as quais ajudavam na locomoção aquática do animal –como em mosassauros, um grupo de répteis marinho das eras dos dinossauros. Somente anos depois foi que o zoólogo alemão Johann Georg Wagler propôs que o membro anterior de um pterossauro era na verdade uma estrutura adaptada ao voo, e não a natação.

O famoso naturalista francês Geoge Couvier foi o primeiro a propor que os pterossauros seriam animais da linhagem dos répteis. Como naquela época os pesquisadores ainda não reconheciam a natureza “dinossauriana” das aves, os pterossauros eram então o único grupo de répteis voadores conhecido. Isso gerava certa desconfiança para alguns. Além de pterossauros, outras duas linhagens de vertebrados terrestres possuem representantes voadores, a das aves e a dos morcegos. Como a anatomia de um pterossauro de “certa forma” parecia mais a de um morcego do que de uma ave (ambos possuem asas membranosas sustentadas por dedos também alongados), uma hipótese concorrente era de que os pterossauros seriam então um grupo de mamíferos extintos, provavelmente marsupiais. Entretanto, após a descoberta de novos fósseis de pterossauros, incluindo algumas feitas pela famosa paleontóloga britânica Mary Anning, ficava cada vez mais claro que os pterossauros possuíam um esqueleto mais similar ao de outros répteis do que dos mamíferos.

A natureza reptiliana dos pterossauros não é contestada hoje em dia, e, a partir da década de 80, análises de parentesco evolutivo, ou filogenéticas, baseadas em grandes matrizes de dados dão cada vez mais suporte a hipótese de que os dinossauros seriam seus parentes mais próximos. Então, apesar do parentesco próximo a dinossauros ser consensualmente aceito, a origem dos pterossauros e a identificação de seus parentes mais próximos segue como um dos maiores enigmas da Paleontologia nos últimos 200 anos.

Os pterossauros mais antigos conhecidos, como o Eudimorphodon, são oriundos de rochas de cerca de 215 milhões de anos em regiões da Europa, que antes correspondia a porção norte do supercontinente Pangeia. Assim como Eudimorphodon, os pterossauros mais antigos conhecidos já são formas totalmente adaptadas ao voo, e formas apresentando morfologias intermediárias entre os pterossauros e outros bichos ainda eram desconhecidas. Porém, um estudo recém publicado trouxe pistas importantes para resolver esse enigma, trazendo evidências convincentes de que os parentes mais próximos dos pterossauros são um grupo pouco conhecido de pequenos répteis (1-1.5 m de comprimento) chamados lagerpetídeos (Figura 3), que viveram no antigo supercontinente do Pangeia durante a maior parte do Período Triássico (cerca de 237 a 210 milhões de anos atrás) e que até então eram considerados precursores dos dinossauros.

Figura 3 – Aspecto geral do esqueleto de um lagerpetídeo. Fonte: Ezcurra et al. 2020.

Os lagerpetídeos são conhecidos desde a década de 70, com a descrição do fóssil Argentino Lagerpeton chanarensis. Porém, apesar de serem conhecidos há bastante tempo, os fósseis de lagerpetídeos encontrados até então correspondiam principalmente aos ossos do quadril e dos membros posteriores. Descobertas recentes em lugares diferentes do mundo como Argentina, Estados Unidos, Madagascar e Brasil, revelaram partes do esqueleto até então muito pouco conhecidas dos lagerpetídeos, como crânios, membros anteriores e vértebras. Esses achados preencheram uma lacuna muito importante no registro fóssil.

Figura 4 – Dentário (osso anterior da mandíbula) direito do lagerpetídeo Ixalerpeton do Triássico Superior do Sul do Brasil. Fonte: Ezcurra et al. 2020.

As semelhanças entre lagerpetídeos e pterossauros estão distribuídas por todo o esqueleto. Para você ter ideia, o estudo de Ezcurra et al. (2020) encontrou mais de 30 sinapomorfias (características exclusivas e compartilhadas por ambos) para o grupo que inclui pterossauros e lagerpetídeos, denominado Pterosauromorpha. Listar todas essas características seria muito cansativo. Então, vamos focar em algumas das mais interessantes.

Assim como os mais antigos pterossauros, os lagerpetídeos possuíam mandíbulas com muitos dentes (geralmente mais de 20). Além disso, os dentes desses animais também eram bastante similares, sendo alongados e dotados de duas cúspides acessórias (tipo duas pequenas projeções) além da cúspide principal. Essa morfologia dentária pode estar relacionada a uma alimentação insetívora (Figura 5).

Figura 5 – Reconstrução do lagerpetídeo Ixalerpeton. Fileira de muitos dentes pequenos pode ser uma característica de um animal insetívoro. Fonte: Ezcurra et al. 2020

Outra característica compartilhada entre esses dois grupos é um alongamento do antebraço, mais longo que a porção superior do braço, além dos dedos alongados. Entretanto, os lagerpetídeos não possuíam o quarto dedo mais alongado que os outros, a característica clássica dos pterossauros. Apesar do reconhecimento de várias estruturas em comum, nenhuma das partes do esqueleto dos lagerpetídeos ajudam a entender a origem das asas dos pterossauros. Mas, semelhanças entre esses animais não se limitam somente a estruturas do esqueleto.

Utilizando-se de dados de micro-tomografia computadorizada, foram reconstruídas estruturas da cavidade endocraniana dos lagerpetídeos, como o cérebro e parte do labirinto do ouvido interno, os canais semi-circulares. Mas, antes de falar do cérebro dos lagerpetídeos, vamos falar um pouco do cérebro dos pterossauros. Uma das características mais marcantes do cérebro desses animais é o grande desenvolvimento de uma porção do cerebelo, o flóculo.

Estudos pioneiros da neuroanatomia dos pterossauros sugerem que o grande desenvolvimento dessa estrutura pode estar relacionado a evolução do voo nesses bichos. Isso porque o flóculo está relacionado ao controle de reflexos relacionados a movimentos da cabeça e do pescoço, e relacionado a estabilização de imagem da retina quando o animal está em movimento. Outra característica interessante dos pterossauros é a presença de canais semicirculares bastante curvados. Os canais semicirculares são estruturas relacionadas ao controle de equilíbrio dos animais, além de também possuírem papel no controle visual. Neste sentido, a presença de canais semicirculares bastante curvados (o que aumenta a área e a eficiência dos canais) foi também sugerida como relacionada ao voo dos pterossauros.

De maneira interessante, o estudo do cérebro dos lagerpetídeos revelou que esses animais possuem um flóculo bastante desenvolvido – nem tanto como o dos pterossauros, porém mais desenvolvidos do que outros arcossauros (esse grande grupo de bichos que inclui os crocodilos, dinossauros, aves, pterossauros, e um punhado de parentes deles). As semelhanças não param por aí. Outras análises demonstram que os canais semicirculares dos lagerpetídeos se parecem mais com os canais dos pterossauros do que com qualquer outro arcossauro. Neste cenário, pode-se dizer de que apesar de a descoberta dos lagerpetídeos como os parentes mais próximos dos pterossauros não trazer grandes novidades quanto as mudanças do plano corpóreo relacionadas a origem do voo, o estudo da neuroanatomia desses animais sugere que mudanças dos sistemas sensoriais antecederam as mudanças na forma do esqueleto.

Mas, além do estudo da neuroanatomia, o estudo do hábito de vida dos lagerpetídeos pode ajudar a desvendar a origem do voo em pterossauros. Entretanto, inferir o hábito de vida de espécies extintas não é uma tarefa fácil. Lagerpetídeos possuíam garras bastante curvadas, o que pode estar relacionado tanto a captura de presas, como também a hábitos arborícolas. No contexto dessa última possibilidade, ganha suporte a hipótese de que as formas antecessoras dos pterossauros fossem animais arborícolas, e que a evolução do voo provavelmente ocorreu em decorrência da locomoção em estratos superiores de ambientes florestais por pequenos predadores à procura de insetos, como esses lagerpetídeos provavelmente faziam.

E agora vem aquela velha história do paleontólogo: espera-se que novos achados de lagerpetídeos ajudem a entender melhor os hábitos desses animais, ou mesmo as modificações macroevolutivas do esqueleto relacionadas a origem do voo dos pterossauros. Então, partiu pro campo!

Ah, quer saber mais? Então assista esse vídeo no Facebook do paleoartista Rodolfo Nogueira, que foi o responsável pela arte de divulgação do estudo de Ezcurra et al. 2020.

Texto de Mario Bronzati, com algumas sugestões do Júlio!

 

Bibliografia

-Ezcurra, M. D., Nesbitt, S. J., Bronzati, M., Dalla Vecchia, F. M., Agnolin, F. L., Benson, R. B., … & Irmis, R. B. (2020). Enigmatic dinosaur precursors bridge the gap to the origin of Pterosauria. Nature, 1-5.

-Tokita, M. (2015). How the pterosaur got its wings. Biological Reviews, 90(4), 1163-1178.