Provavelmente você já assistiu a alguma série ou filme em que, em meio a uma investigação, uma amostra é colocada num equipamento e, em questão de segundos, encontra-se a composição da amostra. Inclusive com a fórmula estrutural da molécula apresentada na tela do computador! Mas será que hoje em dia já é tão fácil assim isolar e identificar substâncias em uma amostra?

A resposta é: infelizmente não. Determinar a estrutura química dos compostos presentes em uma amostra é uma tarefa muito mais complexa do que isso.

Para começar a entender como esse tipo de determinação funciona, precisamos saber que, de forma a facilitar os estudos, a química é dividida em alguns ramos, sendo que um deles é a Química Analítica. Esse ramo da química atua na separação, identificação e quantificação dos componentes de uma amostra e, portanto, seus conceitos serão utilizados nesse tipo de caso.

Os princípios da Química Analítica começaram lá na época em que a Química começou a ser vista como uma ciência em separado da medicina. Os antigos alquimistas tinham uma classificação bastante vaga para as diferentes (e poucas!) substâncias conhecidas, com as quais eles faziam seus experimentos. Por exemplo, se uma substância era capaz de dissolver metais, precipitar enxofre e outros compostos que haviam sido anteriormente dissolvidos em álcalis e mudar a coloração de certos extratos vegetais para vermelho, a solução era classificada como um ácido. Para ser classificado como um álcali, a substância deveria mudar a coloração dos extratos vegetais para azul ou verde. Com esse tipo de técnica e por meio de comparação com o que já era conhecido, eles iam aumentando sua gama de substâncias identificadas. Ou seja, esses primeiros químicos já realizavam a separação e a identificação dos componentes de uma amostra, ainda que de forma bem simples aos olhos de hoje.

#ParaTodosVerem: imagem em movimento de um personagem do South Park misturando reagentes num laboratório.

 

Você deve estar pensando que essa forma de identificação ficou obsoleta com o passar do tempo… porém, 500 anos depois, ainda utilizamos desse tipo de procedimentos experimentais, no que chamamos atualmente de Química Analítica Clássica.
Nesse tipo de análise, os sentidos do químico são muito utilizados, uma vez que, em sua maior parte, as técnicas se tratam de testes simples de serem executados, com resultados que são observados ao olho nu, como mudança de coloração de uma mistura, geração de gases e precipitação de compostos, por exemplo. Geralmente em laboratórios industriais, esse tipo de procedimento é raramente utilizado, porém ter o conhecimento sobre tais métodos é imprescindível para entender algumas das técnicas instrumentais mais modernas.

Além de identificar compostos (Química Analítica Qualitativa), também é possível determinar as quantidades dos componentes presentes numa amostra (Química Analítica Quantitativa), se utilizando de procedimentos que resultam também em fenômenos observáveis, porém aliados a medições simples de volume ou massa.

“Mas isso é coisa de 500 anos atrás? Como chegamos no que temos hoje?”

Bom, com uma quantidade maior de novos elementos e substâncias sendo isoladas, as técnicas clássicas de identificação e quantificação foram evoluindo, porém se mantendo naquela forma mais simples até por volta de 1800. Isso porque alguns conhecimentos que levaram à evolução da análise química de forma mais substancial são relativamente recentes:

– até 1828 acreditava-se que compostos orgânicos só poderiam ser obtidos como produto proveniente de algum processo biológico num organismo vivo e isso, consequentemente, não ajudava na evolução da análise desse tipo de composto. Apesar de hoje em dia haver historiadores que discordam disso, o marco que ocorreu e levou a essa mudança de pensamento foi a síntese de uréia em laboratório, pelo químico alemão Friedrich Wöhler. Além de sintetizar o composto, ele percebeu que a uréia tinha a mesma proporção entre seus componentes elementais que o cianato de amônio (nessa época, a proporção entre os elementos era o máximo que se conseguia determinar de uma possível estrutura química). Assim passou-se a estudar de forma mais efetiva os compostos orgânicos e as substâncias com mesma fórmula molecular, mas com características diferentes (os chamados isômeros).

– a base para a química orgânica estrutural só se deu a partir da compreensão de que o carbono é tetravalente, a qual só foi enunciada em 1857, pelo químico alemão Friedrich Kekulé.

– somente em 1861, foi afirmado pelo químico russo Aleksandr Butlerov que as propriedades físicas e químicas das substâncias seriam determinadas não somente pelo quantidade e tipo dos átomos, mas também pelo seu arranjo.

– o físico alemão Joseph von Fraunhofer descobriu as “linhas escuras” no espectro do Sol em 1814, o que iniciou os estudos sobre a interação da luz e a matéria, o que chamamos de espectroscopia. Mas somente por volta de 1860 essa interação se tornou um tipo de método de análise química, devido aos trabalhos do físico Gustav Kirchhoff e do químico Robert Bunsen.

 #ParaTodosVerem: resultado de teste de chama para o lítio (rosa), sódio (amarelo), potássio (azul), cálcio (laranja), estrôncio (vermelho), cobre (verde). [Ref.]

Apesar de bem simples, o teste de chama não é um dos procedimentos que compreendem fenômenos observáveis que eram utilizados lá no início da Química por volta de 1500. Somente após os estudos entre a interação da luz com a matéria, entendeu-se a possibilidade de identificar os elementos a partir da coloração de uma chama queimando a amostra. Um detalhe é que esse teste é muito útil de forma didática, porém não de forma prática, devido aos interferentes, uma vez que todos os cátions metálicos presentes na amostra irão mostrar um resultado. Em geral, é muito difícil retirar totalmente o sódio de uma amostra, por isso um erro bastante frequente nesse tipo de técnica é a observação da chama amarela, já que ela acaba encobrindo a observação do resultado do cátion de interesse. De forma didática, os testes são realizados com reagentes puros, apenas para observação das cores de cada cátion, como mostrado na imagem.

“Poxa, mas até agora ainda não entendi como isso tem a ver com determinar a estrutura química de uma molécula de uma amostra.”

A partir, principalmente, dos estudos da espectroscopia começaram a ser desenvolvidos novos métodos e instrumentos para analisar substâncias.

Um dos primeiros equipamentos criados foi o refratômetro, que mede o índice de refração de uma substância. A partir do valor obtido para uma amostra desconhecida é possível identificar o composto, conhecendo os valores tabelados de substâncias conhecidas já medidas. Essa comparação com padrões conhecidos é um procedimento geral na interpretação de resultados para a identificação de substâncias até hoje, independente do equipamento utilizado. E apesar de ser uma técnica simples desenvolvida em 1869 e ter se tornado comercial em 1881, o refratômetro é utilizado até hoje na indústria alimentícia para a medição de açúcar.

Até por volta dos anos 1940 os laboratórios em geral contavam em sua maioria com poucos instrumentos, como o próprio refratômetro, polarímetros e microscópios. Estes associados à Química Analítica Clássica eram as ferramentas que os químicos tinham para a identificação e quantificação das substâncias.

Fotografia do laboratório de química pertencente ao conjunto de laboratórios de testes do antigo Departamento de Água e Energia de Los Angeles em 1932. [ref.]

Aliás, para ter mais uma noção de quão recentes são alguns conhecimentos, sobre a quantificação de substâncias, o método clássico mais utilizado (inclusive bastante utilizado ainda hoje) é a titulação e essa só começou a ser estabelecida com a sua teoria entendida em 1907.

Mas voltando ao nosso problema… até aqui ainda não conseguiríamos pegar uma amostra desconhecida e “montar” sua fórmula estrutural.
Assim como muitos outros conhecimentos científicos, infelizmente o que impulsionou o desenvolvimento de equipamentos para análise química foi a Segunda Guerra Mundial. A partir dos anos 1950, equipamentos que antes só apareciam em laboratórios específicos que trabalhavam justamente no desenvolvimento de novas técnicas de análise, começaram a se tornar comuns.

Atualmente, existem diversas técnicas instrumentais, que funcionam de formas bastante diferentes uma das outras, sendo utilizadas para determinações específicas. Algumas são mais comumente utilizadas para análise qualitativa, outras quantitativa, outras para ambos os casos.

Geralmente, numa pesquisa o químico tem uma ideia do que foi sintetizado (afinal de contas, o pesquisador conhece os reagentes de partida e tem o conhecimento teórico da reação que deveria ocorrer). Ou mesmo numa investigação criminal, por exemplo, o químico responsável pela análise de um material encontrado em uma perícia não parte do total zero conhecimento do que o material é ou pode conter. Dessa forma, para determinar o componente do material investigado ou, de forma ainda mais aprofundada, determinar a fórmula estrutural da molécula sintetizada, o químico deve escolher a(s) técnica(s) mais apropriada para seu objetivo.

“Mas o que esses equipamentos fazem para os químicos conseguirem ‘montar’ a estrutura da molécula?”

De forma geral, os instrumentos utilizados na análise química se baseiam na interação da matéria com algo que pode ser: luz em seus diferentes comprimentos de onda, um feixe de elétrons ou a aplicação de um potencial elétrico, por exemplo. A matéria então irá responder a essa interação e o equipamento irá fazer algum tipo de medição.

Um dos instrumentos mais comuns em laboratórios é o espectrômetro UV-vis. Nesse tipo de equipamento, a amostra é solubilizada e colocada entre a saída de um feixe de luz (na região do ultravioleta e do vísivel) e um detector. A amostra irá interagir com a luz de diferentes formas: a luz pode ser toda transmitida, caso não haja interação; pode ser absorvida em diferentes proporções dependendo da concentração da amostra e dos comprimentos de onda da luz; pode ser espalhada; pode ser absorvida e interagir com as moléculas de forma a gerar a emissão de outro comprimento de luz (que pode ser medido também caso o equipamento seja um espectrômetro de fluorescência). A partir da detecção da luz que passou pela amostra, o equipamento exibe como resposta um espectro, que é um tipo de gráfico onde temos no eixo y a absorbância e no eixo x o comprimento de onda. A principal utilização dessa técnica é para a análise quantitativa de soluções.

Espectro na região do UV-vis de um corante alimentício vermelho. O maior pico fica em 524 nm (o chamado comprimento de onda máximo, que é como o nome sugere, o comprimento de onda que mais foi absorvido) e este identifica a amostra. Mas o maior uso desse tipo de análise se dá com a intensidade (o tamanho) desse pico, uma vez que ele é proporcional à quantidade dessa substância na solução. Mas para medir a quantidade numa amostra precisamos ter medidas de pelo menos três soluções de concentrações conhecidas para que possamos calcular a concentração desconhecida. [Ref.]

Uma técnica interessante usada para amostras sólidas é a Espectroscopia de Raios-X por Dispersão de Energia. Aqui a amostra interage com um feixe de elétrons e libera os raios-X que serão medidos pelo equipamento. Como os elementos químicos emitem raios-X com energias características, com essa análise pode-se determinar quais elementos estão presentes em uma amostra. Além disso, a intensidade do sinal, ou seja, o tamanho do pico é proporcional à quantidade do elemento na amostra. Dessa forma, essa técnica é uma análise qualitativa e quantitativa.

Espectro de raios-X da carapaça de uma espécie de camarão, Rimicaris exoculata. Como as energias liberadas pelos átomos são características, a posição dos picos no espectro identificam o elemento (no espectro da figura os elementos já estão identificados e as marcações Ka, Kb e La são relacionadas ao “tipo” de emissão de raio-X). Enquanto isso, a intensidade do sinal corresponde à concentração do elemento. [Ref.]

 

Agora falando especificamente de técnicas analíticas que nos auxiliam a “montar” a estrutura química de um composto, temos por exemplo, a espectroscopia no infravermelho. Numa molécula de um composto orgânico, os átomos são conectados por meio das chamadas ligações covalentes que estão constantemente em movimento vibratório em frequências específicas.

Exemplos de diferentes conformações geradas pela vibração das ligações moleculares. Uma mesma molécula vibra de diferentes formas, devido às diferentes frequências da energia com a qual ela interage, como esses exemplos da imagem. E assim cada forma pode ser observada em um espectro. #ParaTodosVerem: imagine que sua cabeça e suas mãos sejam átomos, enquanto seus braços são as ligações entre eles. As diferentes conformações são como movimentações dos braços, para cima ou para baixo, para frente ou para trás ou para os lados.

 

A luz na faixa do infravermelho é do “tamanho” ideal para interagir com essas vibrações e, é com base nisso, que a técnica funciona. O uso mais comum da espectroscopia no infravermelho é combinada com uma técnica matemática chamada de Transformada de Fourier (FTIR) que basicamente transforma os dados medidos num espectro mais “fácil” de ser analisado.

Espectro de FTIR da cafeína. Um espectro de FTIR pode ter unidades diferentes das representadas aqui (eixo x: número de onda em cm-1; eixo y: transmitância em unidades arbitrárias), mas o eixo x irá representar a energia necessária para que aquela ligação ou conjunto de ligações químicas vibrem de uma forma ou de outra. O eixo y representa quanta luz passou direto pela amostra (ou quanto foi absorvida, dependendo de como o espectro esteja representado). [Ref.]

O que é identificado com um espectro de FTIR são as funções orgânicas, que são conjunto de átomos que estão sempre ligados da mesma forma numa molécula. Cada função tem diferentes formas de vibração e, consequentemente, cada uma delas apresenta uma banda em região específica do espectro. Independente da molécula em que se encontra a mesma função orgânica, a banda correspondente irá aparecer naquela região, com algum deslocamento dependendo de outras funções presentes na molécula, mas aqui entra o trabalho do químico em interpretar o resultado (muitas vezes em conjunto com o resultado de outra técnica analítica).

Outra técnica é a Espectroscopia de Ressonância Magnética Nuclear (RMN), que se utiliza da propriedade de alguns átomos agirem como pequenos imãs e tenderem a se alinhar com a aplicação de um campo magnético. Para “montar” moléculas orgânicas essa técnica é excelente, uma vez que, além de determinar a quantidade de átomos de hidrogênio e carbono, também é possível identificar quais átomos são “vizinhos”, ou seja, quais estão ligados entre si.

Existem vários métodos dentro da técnica de RMN, na imagem abaixo temos como exemplo o método chamado de HETCOR (sigla em inglês para espectroscopia de correlação heteronuclear). O químico faz uma identificação prévia dos hidrogênios da molécula e dos carbonos (em seus respectivos espectros de RMN) e, então, com a junção desses dois resultados temos a correlação neste método de quais e quantos hidrogênios estão ligados a quais carbonos identificados anteriormente.


Espectro HETCOR do extrato de um tipo de planta (Deguelia rufescens var. urucu). À direita temos o espectro de RMN obtido da medida de carbono (C13) e acima temos o espectro de RMN obtido da medida de hidrogênio (H1). A correlação entre os átomos é mostrada como os riscos no campo central do espectro HETCOR. Para a interpretação desse tipo de espectro é necessário que a análise dos espectros (C13 e H1) em separado tenha sido realizada previamente. Além disso, o uso em conjunto com outros métodos dentro da própria técnica de RMN auxilia na elucidação da fórmula estrutural da molécula. [Ref.]

Esses são somente alguns poucos exemplos de instrumentos utilizados na análise química, mas já deu para perceber que os resultados entre eles são bastante diferentes entre si e a identificação de uma amostra não é tão fácil quanto parece na TV.

Outro ponto que vale mencionar é que é impossível uma amostra ir para o equipamento assim como veio da rua. Existe toda uma área de pesquisa sobre preparo de amostras, sendo necessários diferentes métodos para cada uma das diversas técnicas de análise para minimizar o efeito de possíveis interferentes. Pense numa amostra de solo, por exemplo, você consegue imaginar a quantidade de coisas diferentes que tem ali no meio da terra? Agora imagine colocar tudo isso junto num equipamento, quando você só quer saber se existe algum determinado agrotóxico ali.

Agora vamos pensar nas séries e filmes onde ocorre algum problema no mundo, por conta de alguma substância nova que foi sintetizada por uma grande instituição do mal. Para chegar ao ponto de se elucidar a fórmula estrutural da molécula igual vemos normalmente na TV, após o tratamento da amostra ter sido feito, o trabalho do químico seria como um grande jogo de quebra-cabeça investigativo. Somente após a interpretação do resultado de diversas técnicas em conjunto com o conhecimento teórico, seria possível chegar à fórmula estrutural… e com certeza isso demoraria mais do que 40 minutos de um episódio!

#ParaTodosVerem: imagem em movimento do personagem Walter White de Breaking Bad dizendo “I simply respect the chemistry. The chemistry must be respected.” (“Eu respeito a Química. A Química deve ser respeitada.”, em inglês).

 

Esse texto é complementação à resposta dada a ouvinte do Scicast, que enviou uma pergunta com “coisas que sempre quis saber, mas tinha vergonha de perguntar” lida no Derivadas #63.

Infelizmente é impossível se aprofundar mais em cada uma das técnicas analíticas no texto (que já ficou bem pesado), pois são muitas e cada uma tem diversas peculiaridades. Mesmo dentro de um curso de química nem todas são apresentadas, algumas até são bastante detalhadas em disciplinas de Química Analítica, Química Orgânica e Química Inorgânica, porém outras acabam sendo discutidas somente em disciplinas mais específicas da área de Ciência dos Materiais. Mas espero que tenha suprido ao menos parte da sua dúvida e que tenha deixado a curiosidade para procurar mais sobre o assunto (ou quem sabe até vir para o lado químico da Força!).

Lembrando que se você também tem dúvidas científicas, envie para [email protected] que a Debbie, a Guardiã do Portal, encaminhará a missão de responder para algum dos colaboradores.

 

Referências:
SZABADVÁRY, F. History of Analytical Chemistry. Traduzido do húngaro para inglês por Gyula Svehla. Pergamon Press, 1st ed. 1966

GREENBERG, A. Uma Breve História da Química: Da Alquimia às Ciências Moleculares Modernas. Blucher, 2009

MUKHOPADHYAY, R. The Rise of Instruments during World War II. Analytical Chemistry, 80, 15, 5684–5691, 2008

On the artificial production of urea

Brief history of refractometers

Capa: Sherlock