Milhares de mulheres morrem todos os anos por causa abortos clandestinos. Diariamente, em torno de 4 mulheres perdem suas vidas em decorrência de tais práticas, segundo estimativas do Ministério da Saúde. Apesar desses dados tão dramáticos, as discussões sobre o aborto ainda são, por vezes, pautadas por opiniões religiosas ou senso comum, como visto na audiência pública organizada pelo Supremo Tribunal Federal no início de agosto. Em tais debates notamos que as argumentações contrárias à interrupção da gravidez são frequentemente baseadas em crenças religiosas e não em informações técnicas e científicas.

Em uma entrevista recente à Globo News, nos primeiros dias da campanha eleitoral de 2018, bem como no primeiro debate presidencial, promovido pela TV Bandeirantes, a candidata à Presidência da República, Marina Silva*, afirmou ser contra a descriminalização do aborto. Para a candidata o tema é complexo por envolver questões morais e religiosas.

Fig.1: Aborto, religião e política, uma relação que não é de hoje: Em 2015, Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e integrante da bancada evangélica, propôs uma lei para dificultar o aborto legal mesmo em casos de estupro.

Contudo, a discussão secular sobre o aborto não é um tema religioso. A moral religiosa é uma questão pessoal e individual, a qual jamais deve ser generalizada e forçada a um coletivo heterogêneo, como é a população de um país. O aborto legalizado é uma pauta essencialmente de saúde pública. O direito ao aborto, feito por profissionais capacitados, representa uma maneira de evitar mortes de mulheres em situação de gravidez indesejada. Isto é, este procedimento médico nunca foi, nem nunca será, defendido como um método contraceptivo (conforme equivocadamente concebido pela candidata na entrevista e debate mencionados anteriormente).

A criminalização não impede as mulheres de fazerem abortos. Só em 2016, aproximadamente 500 mil mulheres praticaram um aborto no Brasil. Nesta situação, as mulheres precisam recorrer a clínicas clandestinas e medicamentos ilegais, com absoluta falta de suporte social e hospitalar quando algo dá errado.

Assim, em termos de políticas estatais, impedir uma mulher de fazer um aborto é tão imoral quanto obrigá-la a fazer um: ambos os casos são restrições de liberdades individuais. Em geral, quando o Estado impõe uma visão religiosa aos seus cidadãos, ele não está preocupado com a saúde de sua população, mas sim com os votos que tais medidas podem dar ou tirar.

Imagine o mesmo cenário, porém com relação à proibição do uso da camisinha pela Igreja Católica: o Estado deveria considerar que o uso de preservativo é uma “questão moral e religiosa”, em vez de um problema de saúde pública, e proibir seu uso para toda população? O Estado deve garantir a liberdade dos católicos de não usarem camisinha (ou outros métodos contraceptivos), caso assim desejem; mas jamais deve obrigar toda a população (com seus diferentes sistemas de crenças) a fazer sexo sem proteção.

Uma vez que a discussão sobre aborto trata de um problema de saúde pública, e não de imposição de crenças, o que caberia eticamente a uma pessoa religiosa dizer é: “Eu não faria um aborto, e o abomino, por minhas convicções religiosas”. Expressar isto é direito básico assegurado por lei. Entretanto, o que vemos rotineiramente no atual debate são instituições religiosas tentando obrigar o Estado a fazer aquilo que os seus dogmas não conseguem: mais de 80% das mulheres que praticam aborto no Brasil são cristãs (católicas: 56%; protestantes: 25%); apenas 11% não possuem religião.

Imagine, leitor, que a minha religião (por exemplo, o pastafarianismo ou discordianismo) obrigue que as suas fiéis abortem os seus primogênitos, em uma espécie de prova de fé abraamica. Será que eu deveria lutar para que o Estado aplique o meu dogma a você e ao restante da população que não segue a minha religião? Ou, ao contrário, deveria almejar que o Estado garanta a liberdade de cada um seguir o seu próprio sistema de crenças, seus dogmas, suas convicções e suas visões de mundo?

Você pode não estar ainda totalmente convencido de que a maioria dos argumentos de pessoas religiosas são baseados em suas crenças. Para ilustrar, um argumento recorrente para muitos religiosos é a noção de princípio da vida. Para algumas religiões, a vida humana começa no momento da fecundação. Ou seja, quando os gametas, o óvulo e o espermatozoide, se fundem, dando origem a uma nova célula: o zigoto. Isto é uma crença muito influenciada pela ideia de que a alma do novo ser passa a estar presente na fecundação. Tal crença deve ser respeitada, obviamente. No entanto, para a imensa maioria dos cientistas e médicos, o conceito de vida não depende de alma, abrangendo outros animais, além de vegetais e bactérias, dentre outros. Por isso, a “controvérsia” religião-ciência também é expandida para temas como as pesquisas com células-tronco embrionárias e certos métodos de reprodução assistida.

Em uma perspectiva bioética, quando se defende a liberdade feminina de interromper uma gestação, leva-se em consideração a possibilidade do feto sentir dor e, consequentemente, o seu desenvolvimento do sistema nervoso; este é um fator determinante – vide a jurisprudência nos casos de fetos anencéfalos (com prejuízo na formação do sistema nervoso). Certamente até a 20ª semana de gestação, nenhum feto apresenta um sistema nervoso desenvolvido o suficiente para haver qualquer dor, sofrimento ou consciência.

Parte do conservadorismo social exacerbado e crescente que acompanhamos atualmente no Brasil e no mundo se alimenta do obscurantismo e da falta de informação. Chamar um pequeno agrupamento celular, de apenas 20 mm (na 8ª semana de gestação), de “bebê” ou “criança” é uma crença única e exclusivamente religiosa (a qual deve ser respeitada), mas o nome correto é embrião – ou feto, após a nona semana de gestação. Mesmo assim, um embrião é uma “vida humana em potencial”, defendem alguns. Certamente uma semente não é a mesma coisa que uma árvore, a não ser que a sua religião acredite nisto; neste caso, a semente será uma árvore… para você.

Não acredito que a Marina derrubaria uma árvore, como uma castanheira ou uma araucária, mas também não acho que ela consideraria que o ato de comer um punhado de castanhas ou pinhões se equivale a devastar uma pequena floresta.

Fig.2: Pinhões e Araucárias

* Gostaríamos de deixar claro que o nosso objetivo não foi atacar a candidata Marina Silva, apenas discordar de uma opinião recorrente. Embora discordemos respeitosamente da sua opinião sobre o aborto, concordamos com muitas outras pautas defendidas pela candidata. Discordar é absolutamente natural e desejável em uma democracia.


Carol Tatsch. Oceanóloga, mestre e doutoranda em Oceanografia Biológica pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Integro o Laboratório de Ecologia e Conservação da Megafauna Marinha (ECOMEGA). Oceanografia, mamíferos marinhos, feminismo, ciência, bioética, aleatoriedades, meu gato Darwin, literatura e natureza são alguns dos assuntos que ocupam meus quase 100 bilhões de neurônios todos os dias.

 

João Centurion. Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do Laboratório de Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento (LPNeC). Além de ser pesquisador/doutorando em tempo integral e divulgador de ciência nas (poucas) horas vagas, sou um curioso patológico buscando entender a natureza do comportamento humano.