Você já reparou que a textura de uma gelatina é similar à textura da clara de um ovo cozido (ou mesmo frito, sem considerar aquela casquinha crocante marrom saborosa, que merece por si só um outro texto)? Não é por acaso.

Primeiramente, vamos à gelatina: um produto comercializado como alimento desde o final do século XIX e que se popularizou principalmente nos anos 1950, na era de ouro da economia norte-americana, justamente por ser palatável às crianças (com a importante colaboração dos corantes e aromatizantes artificiais e do açúcar) e por ter uma preparação rápida, fácil e barata, o que era perfeito para as “donas-de-casa-mães-urbanas-de-muitos-filhos” no baby-boomdo período pós-guerra.

Gelatina: fornecendo receitas rápidas, fáceis e baratas desde 1897 (propaganda de 1953: fonte).

Para entender a consistência e textura da gelatina, é preciso conhecer do que ela é constituída. A gelatina comum é um derivado do colágeno, tradicionalmente obtido do tutano dos ossos, em especial das patas de bovinos e suínos (segue receita de geleia de mocotó tradicional, para quem curte gelatina raiz).

Mocotó, a matéria-prima da gelatina tradicional. (fonte)

Industrialmente, os ossos dos animais abatidos são subprodutos da produção em larga escala da carne de bovinos e suínos. Porém, a obtenção de gelatina a partir do tutano dos ossos não é suficiente para atender a demanda e, por isso, a maior parte da gelatina obtida industrialmente provém do colágeno da pele desses animais, outro subproduto dos frigoríficos. O fato de ser extraído de subprodutos da indústria frigorífica justifica o baixo preço da gelatina.

Para vegetarianos e veganos, nem tudo está perdido. A gelatina comum pode ser substituída por agar-agar, substância gelatinosa derivada de certas algas vermelhas e velha conhecida do pessoal dos laboratórios de biologia. Por não se tratar de um subproduto, ao contrário da gelatina comum, o preço desse produto já não é tão competitivo. Outra substância que pode ser usada como substituto é a pectina, extraída de cascas de diversas frutas, principalmente das cítricas. Na verdade, tanto o agar-agar quanto a pectina são polissacarídeos, sendo, portanto, mais próximos de mingau de maisena do que de gelatina de colágeno, pelo menos quimicamente falando. Podemos falar de estruturas formadas por polissacarídeos em um texto futuro.

Voltando à gelatina, para a sua produção, a proteína colágeno é hidrolisada (de forma resumida, entenda isso como “quebrada quimicamente”), formando assim cadeias de peptídeos menores que nunca voltarão a ser colágeno novamente (lembre-se disso na próxima vez que alguém disser que consumir gelatina ou colágeno é a solução para recuperar a elasticidade da pele).

Quando estamos preparando a gelatina, as moléculas de peptídeos são dissolvidas na água, processo que é facilitado pelo fato de a água estar quente. Ao resfriar, com a diminuição da energia, as moléculas de peptídeos vão se religando, “tentando” refazer as ligações que tinham sido quebradas na hidrólise. Se houver moléculas em quantidade suficiente, o resultado dessa tentativa é uma rede tridimensional que aprisiona moléculas de água por capilaridade. Temos, então, o que chamamos de hidrocoloide (sem acento, conforme as regras ortográficas da língua portuguesa de 2009, diferente do que você vai encontrar por aí se pesquisar por esse termo), ou hidrogel. Para se ter uma noção da força química dessa rede, perceba que se usa 500 ml de água para um pacote de 30g de gelatina, ou seja, apenas 30g de uma rede molecular segura mais de 10 vezes o seu peso em água!

Mais um fato importante para se entender as gelatinas é que as moléculas que compõem a sua rede são hidrossolúveis em temperaturas um pouco mais elevadas (como vimos bem durante a preparação com água quente). Por isso, se a gelatina, mesmo já pronta, for aquecida, as moléculas de peptídeos se dissolvem na água que elas mesmas estão retendo. Por isso não existem pratos quentes com gelatina – outras substâncias seriam utilizadas nesse caso.

Vamos agora falar de outro hidrocoloide: o ovo cozido. A clara do ovo é basicamente uma mistura de água (entre 87% e 90%) e proteínas (10% a 12%), destacando-se a ovalbumina, uma albumina que compõe mais da metade dessa quantidade de proteína (vale ressaltar que albumina é uma classificação genérica de proteínas solúveis em água). As proteínas são longas cadeias peptídicas: a ovalbumina dos ovos de galinha, por exemplo, é composta por 385 aminoácidos.

Aqui já deu pra entender onde vamos chegar, não é verdade? Essas proteínas no ovo vão formar aquela rede, similar à que descrevemos no caso da gelatina. A diferença aqui é que as proteínas não foram hidrolisadas (não estão em sua forma de cadeias peptídicas menores) e a formação da rede ocorre durante o aquecimentodevido à desnaturação dessas proteínas. A alta temperatura faz as proteínas alterarem as suas estruturas secundária e terciária (conjunto de ligações de uma molécula grande com outras porções dela mesma), que é justamente o que define a sua forma tridimensional. Dessa forma, podemos afirmar que as proteínas se deformam e, com isso, uma molécula encontra outra, recriando as ligações estruturais que tinham sido desfeitas com a deformação, mas agora entre uma macromolécula e outra, e não apenas entre partes distintas de uma mesma proteína. Desse modo, a rede tridimensional de peptídeos é formada.

Uma boa analogia da desnaturação das proteínas do ovo, comparadas a clipes de papel que são deformados e então se unem devido ao seu novo tamanho. (fonte)

Com a gema, ocorre o mesmo processo, porém mais lentamente se comparado com a clara. Podemos dar dois motivos para isso. Primeiro devido à posição da gema: por estar no meio do ovo, a gema só se aquece depois de a transmissão de calor atravessar toda clara, que foi aquecida primeiramente. O segundo motivo é sua composição: a gema possui 27% a 32% de lipídios contra 16% de proteínas. Os lipídeos atrapalham o encontro entre uma proteína e outra na desnaturação, retardando o processo. Outra consequência do alto teor de lipídeos, que forma uma emulsão com a água da gema, é a textura diferente e macia da gema cozida (isso se você não interrompeu o cozimento antes do tempo e a gema ficou mole).

Qual o seu tempo de cozimento favorito? (fonte)

Voltando à comparação inicial, o fato de tanto a clara do ovo cozido quanto a gelatina serem dispersões coloidais de água em redes de peptídeos, ou simplesmente hidrocoloides, é o segredo por trás da sua semelhança em textura, embora os processos de formação dessas redes se deem de formas distintas e cada um a partir das suas cadeias peptídicas específicas. São apenas dois exemplos do vasto mundo das proteínas!

 

REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LIMA, Urgel de Almeida. Matérias-primas dos Alimentos. 1ª Ed. São Paulo: Blucher, 2010.

WOLKE, Robert L.; Tradução Helena Londres. O que Einstein disse a seu cozinheiro: a ciência na cozinha. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

Blog do Dr. Victor Sorrentino – “O Mito do Colágeno” 

Compound interest – “Science Hits the Bar – The Chemistry of Cocktail Gelification”

Recipe Reminiscing – “The History of Jell-O”

Scientific American® – “What is Jell-O? How does it turn from a liquid to a solid when it cools?” 

Wikipedia – “Denaturation (biochemistry)”

Wikipedia – “Egg white”

Wikipedia – “Gelatin”

Wikipedia – “Yolk”


Rodrigo Braga. Engenheiro químico de formação, gosta de dar pitacos em química dos alimentos. Curte os bons e velhos RPG e jogos de tabuleiro com a galera. E tem uma paixão inexplicável por produção teatral!